(1908-1972)
A carreira de professor que Adolfo Victor Casais Monteiro iniciara em 1934, no no Liceu Rodrigues de Freitas, do Porto, seria interrompida três anos depois, por prisão e condenação por “crime político”, ficando proibido de lecionar dentro do país.
“Na busca de uma atmosfera intelectual mais propícia à independência de espírito de que era cioso e a uma mais livre explanação e confronto de obras e ideias” (Sousa 1993: 222), partiu para o Brasil em 1954. Residindo primeiro na cidade de S. Paulo, depois no Rio de Janeiro de 1956 a 1962, em 1962 fixou residência em Araraquara, no estado de S. Paulo, para reger o Departamento de Teoria da Literatura na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. No tempo que viveu no Brasil – cerca de 18 anos – exerceu profícua atividade como conferencista e como professor em diversas cidades, tendo ainda lecionado como professor visitante, de agosto de 1968 a maio de 1969, em duas Universidades dos Estados Unidos: Wisconsin e Vanderbilt (Nashville, Tennessee). Embora longe da pátria, Casais Monteiro, que nunca mais voltou a Portugal, não deixou de manter, sobretudo através da correspondência com diversos amigos, como o escritor e “compadre” José Régio, um íntimo contacto com a realidade política e cultural portuguesa, tomando inclusive partido nas eleições para deputados em 1969.
Esse mesmo ano de 1969 é assinalado pela publicação, através da Portugália Editora, das suas Poesias Completas. Esse volume – que inclui também um livro até então inédito, O Estrangeiro Definitivo – parece ecoar o primeiro verso: “Talvez, estrangeiro em qualquer parte” (Monteiro 1993: 177) de “Três Poemas de Londres”, incluído no livro Noite Aberta aos Quatro Ventos (1943 e 1959), dedicado à memória de Adolfo de Paiva Monteiro: “meu Pai, o melhor amigo e o coração mais generoso de quantos conheci” (idem: 151), e com uma nota de abertura à edição de 1959, bastante esclarecedora dos princípios éticos, cívicos e literários do autor: “Esta nova edição […] inclui dezasseis poemas inéditos, escritos entre 1943, data da publicação da primeira, e 1951. A maneira como essa inclusão se me impôs significa, a meus olhos, ser este livro, ao contrário de qualquer dos outros que publiquei, como que um livro em crescimento, aberto para o futuro, e não fechado sobre uma experiência, um tema, uma situação. […] Devo pois concluir que Noite Aberta aos Quatro Ventos continua a ser uma expressão fiel de mim próprio, e do que espero da poesia, e reparo que a palavra Aberta se encontra no seu título com mais sentido do que podia supor quando o adoptei” (idem: 150).
Este sentimento de estrangeiro definitivo, de verdadeiro apátrida, parece dominar toda a sua poesia, desde o primeiro livro, Confusão (1929), e não apenas na fase brasileira do autor: “Deste modo, a poesia do autor de Sempre e Sem Fim representa um momento da consciência universal de despojamento e desalienação que, mesmo constituindo uma fase ainda predominantemente negativa, não deixa de ter significação exemplar e humanística. Poeta da desesperança e não do desespero, toda a sua negatividade é menos a de um caso pessoal ou de uma atitude individualista do que a expressão de uma desmitificação do real, um despojamento humano até às raízes mais autênticas, até à indeterminação do caos afectivo” (Rosa 1986: 64-65).
A 24 de julho de 1972, o estrangeiro na vida como na obra acabaria por falecer na sua casa de S. Paulo, no país que o acolheu e onde viveu o seu “exílio” feliz, sem nunca ser esquecido em Portugal: “Não se trata de fazer profecias duvidosas, mas apenas de observar alguma coisa que é já hoje perfeitamente constatável, […] de Fernando Pessoa a Jorge de Sena e mesmo a Manuel da Fonseca (ver um poema como Ruas da Cidade), a Raul de Carvalho, a António Ramos Rosa, a Mário Cesariny, existe um caminho que passa obrigatoriamente por Casais Monteiro” (Cruz 1999: 28).
No ano da partida definitiva para o Brasil (1954), Casais Monteiro vê publicado um novo livro de poesia, Voo sem Pássaro Dentro, que pode funcionar como uma espécie de antecipação, ou prefiguração, do voo futuro para terras de Vera Cruz, em O Estrangeiro Definitivo (1969): “a melhor integração até hoje atingida nas suas diversas tensões anteriormente definidas, esboçando-se em Voo sem Pássaro Dentro, 54, para se consumar em O Estrangeiro Definitivo” (Lopes 1987: 706).
Voo sem Pássaro Dentro é uma edição de luxo da Ulisseia, de 400 exemplares, com desenhos de Fernando Lemos, que foi para o Brasil no mesmo ano de 1954, onde ainda vive (vide verbete em Ulyssei@s): “[…] saiu em 1954 numa edição de muito cuidadoso apuramento estético e quase de bibliofilia; foi apenas de 400 exemplares, sendo 50 fora do mercado e 350 destinados a venda, todos numerados e rubricados pelo Autor. A capa é de Fernando Lemos, bem como os dez desenhos que acompanham o texto. […] parecem-nos de características sobretudo abstraizantes, nada nos dando autoridade em incluí-los taxativamente no surto surrealista de que Fernando Lemos se aproximava então […]. Os desenhos acompanham o texto poético como adjuvantes e não como subordinados” (Galhoz 1981: 262).
Muito adequado é o título deste livro e do verso final do poema “Aurora” incluído no mesmo (Monteiro 1993: 184), uma vez que a metáfora do “voo sem pássaro dentro” desenha uma direção do objeto sem uma substância que o concretize, “na medida em que sugere uma ausência de vida interior, de vida – se não anímica – ao menos animal; e o próprio voo fica grandemente comprometido em virtude dessa ausência” (Mourão-Ferreira 1980: 157).
No entanto, não deixa de haver um fora nesta poesia, associado quase sempre à tristeza: “Não quer dizer que a alegria não corra também estes poemas […], mas a maioria dos poemas […] igualmente, são, contudo, tristes, desencantados nas suas metáforas e no seu constatar da existência. Contudo essa tristeza, tal como a palavra de alegria, é envolta pela aura de uma inegável beleza atingida e é temperada nas palavras por uma quase estóica atitude de serenidade” (Galhoz 1981: 264).
O título reproduz, assim, “o “sentido” do percurso poético do Autor – de “Poeta”, primeiro poema de Confusão, a “Ouvindo Mozart”, último poema de O Estrangeiro Definitivo. […] No culto do “direcionamento” da palavra, centra-se o cultivo da poética da “disponibilidade e do pressentimento” (Gotlib 1985: 315).
O Estrangeiro Definitivo apareceu pela primeira vez na edição das Poesias Completas, da Portugália Editora, em 1969, e “contém quase exclusivamente poemas escritos no Brasil – além destes só lá não nasceram os dois últimos, escritos em Madison e Nashville, nos Estados Unidos, ambos no ano em curso” (Monteiro 1969: XI).
Da solidão irredutível a todo o ser humano em qualquer lugar recolhe O Estrangeiro Definitivo “o significado de toda uma nova dimensão para o vivido: aquela dimensão em que todas as maiores perdas se transmutam no maior, senão único, dos ganhos em humanidade, o ganho de consciência daquilo que, irremediavelmente, se não tem, mas por isso mesmo se sabe já desejar (ou ao menos ter desejado), determinando um acréscimo do ser íntimo que se é, e a alegria trágica de o afirmar” (Lopes 1987: 711).
Passagens
Portugal, Inglaterra, Brasil, Estados Unidos
Citações
“Ponha bem no pensamento que esta carta não lhe vem de Lisboa, mas sim de S. Paulo, e… S. Paulo não pode parar, como diz o slogan, que tem seu quê de infantilmente americano, mas que não deixa de ser verdadeiro. Ah Novo Mundo, estranha aventura! Você sabe que eu já penso em ir à Europa e voltar como se fosse ir ao Porto?!”
S. Paulo, de 25/9/54, a José Régio
“Também a mim não agrada em absoluto o meu desenraizamento. De certo modo, estou a deixar-me levar pelas circunstâncias. Não terei eu tentado, impedir-me até, de voltar a Portugal? E na verdade, já cá recebi avisos de que não devia voltar”.
S. Paulo, de 27/10/54, a José Régio
“Você vá pois fazendo a selecção, e eu tratarei de me pôr em contacto com o Álvaro Lins, que ainda não encontrei no Brasil – ele vive no Rio, onde não estive ainda com calma para procurar as pessoas (aliás não é fácil estar com calma no Rio, que é a coisa (não a cidade, mas a natureza) mais bela que “pode haver” no mundo, e que além disso tem uma vida febril dos diabos)”.
S. Paulo, de 12/12/54, a José Régio
“Cheguei ante-ontem duma digressão pelo sul (Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba); em cada uma destas cidades fiz várias habilidades sobre a poesia portuguesa contemporânea, Pessoa, etc. Teve isto base num convite da Faculdade de Filosofia de Porto Alegre, para tomar parte num curso de extensão universitária sobre “Fundamentos da Cultura Brasileira”, que por acaso fui eu a inaugurar. E aproveitando ter o bilhete de avião pago, no regresso fui a Florianópolis, onde estão o Eudoro e o Agostinho da Silva, e a Curitiba, onde está o nosso colega (na crítica) Wilson Martins”,
S. Paulo, de 25/5/55, a José Régio
“O facto de me ter apaixonado por uma mulher da minha idade, de cabelos grisalhos, mostra ser ela alguém tão excepcional que essas razões de idade deixaram de ter sentido. É claro que é uma mulher fisicamente jovem, mas se ela perder esta “juventude”, também eu a perderei, decerto. O importante é ser uma companheira, como a Alice nunca foi nem poderia ser; uma mulher intelectualmente à minha altura, à qual não me sinto superior, e que não me desilude, à qual não tenho de “perdoar” a indiferença ou a incompreensão por coisas que me importam muito; uma mulher que não gosta de mim “cegamente”, que conhece todos os meus defeitos”.
S. Paulo, de 30/6/55, a José Régio
“O meu “caso” com a Rachel não tem nada a ver com o meu “caso” com o Brasil. Há milagres que acontecem onde calha, e quando calha. É questão de as linhas que as vidas tecem por este mundo se cruzarem de maneira a dar-se o encontro de duas pessoas que nunca tinham encontrado o seu semelhante. E contra isto não há forças que valham – e se eu tiver a indignidade de a abandonar, nem por isso a Rachel deixará de ser a única MULHER que encontrei na minha vida – intelectual, moral, e sexualmente falando”.
S. Paulo, de 20/8/55, a José Régio
“O problema é, porém, que eu “preciso” de estar de alguma maneira separado da Alice. É o mínimo que eu devo à Rachel. Parece que a Alice não quer aceitar o divórcio. Terá que se fazer, então, uma “separação de corpos e bens”, pois isso ela não me pode impedir de fazer, segundo estou informado por um advogado nosso amigo”.
S. Paulo, de 21/12/55, a José Régio
“Pois é, agora sou carioca, e com grande satisfação. S. Paulo é realmente uma imensa… cidade da província. Tem dinheiro, e é o seu maior defeito. Mas toda a gente que pode foge para o Rio, como aliás se dá com a de todo o Brasil. Se ao menos S. Paulo tivesse as virtudes que tem por exemplo o Porto! Mas não tem: é “árida”, é fria, é desumana! O Rio deve ser das cidades mais humanas do mundo: aqui sabe bem andar na rua, o que, acho eu, é o maior elogio que se pode fazer a uma cidade. E depois, a estupidez e a ganância ainda não conseguiram estragar a paisagem assombrosa que é a do Rio. Nós tivemos a sorte de encontrar um apartamento num lugar que, além de ser um dos menos quentes, é dos mais bonitos, com o morro dum lado e o mar do outro – embora, da janela, o pobre do mar só “passe” por entre dois arranha-céus; mas está a dois passos, e isso basta”.
Rio de Janeiro, de 15/6/56, a José Régio
“Quanto aos seus votos pela estabilização da minha vida, obrigado, e parece que estamos em vias disso. Se o cruzeiro continuar a subir, como está a acontecer (não repare na gramática, o “acontecer” não se refere ao “continuar” mas ao “subir”, como aliás é óbvio) creio que poderei tapar o buraco criado aí pelo fim da tradução do Pirenne, pois a minha preocupação tem sido ganhar o suficiente para dispensar o equivalente a dois contos nossos, para o que, ainda há pouco, eram precisos seis contos brasileiros, horror! Agora já bastam 4 contos e oitocentos, mas sabe-se lá o que pode acontecer ao cruzeiro, num país onde as finanças também são surrealistas, como o resto?”.
Rio de Janeiro, de 10/10/56, a José Régio
“Tenho estado a responder, relendo a sua carta, e chego portanto ao capítulo João Paulo. Agradeço-lhe (se isto é coisa que se agradeça…) o optimismo. Mas agradeço precisamente porque a minha mãe é pessimista, ele continua a não me escrever, e o José-Augusto França (a quem pedi notícias) o considera agarrado à mãe duma maneira absorvente. Mas naturalmente tinha de ser assim mesmo, não é? O diabo é que eu penso que não seria mau para ele manter contacto comigo, e acho que ele precisa de reconhecer ao pai o direito a ter vida própria. Mas você, decerto, pensa que ele não pode aceitar isto, não é?”.
Rio de Janeiro, de 24/12/56, a José Régio
“Um grande abraço do exilado”.
Rio de Janeiro, de 2/7/57, a José Régio
“Escreverei breve sobre o estudo do Óscar Lopes, que achei muito bom”.
Rio de Janeiro, de 11/7/57, a José Régio
“Ah, como eu gostava duma boa conversa sobre tudo isto, num dos nossos cafés do Porto, que à distância me parecem ser realmente os lugares mais filosóficos do país! É engraçado, não tenho saudades nenhumas de Lisboa, nem de Coimbra. Tenho-as de Ruivães e do Porto”.
Rio de Janeiro, de 28/12/57, a José Régio
“Não devo permanecer aqui senão por mais um mês. O Lapa convidou-me para lhe tomar conta da cátedra, em Belo Horizonte, pois vai passar um ano na pátria. Isto aqui é muito bom, materialmente, mas o meio é chato, universariamente falando. Estou já com saudades de uma terra civilizada, e para isso nada melhor do que Belo Horizonte”.
Salvador da Bahia, de 13/11/59, a José Régio
“Sou desde, creio, 1962, professor de Teoria da Literatura nesta cidade do interior do Estado de S. Paulo. Não gosto de viver aqui, porque toda a vida vivi nas cidades grandes, e, mau grado os seus 80 mil habitantes, Araraquara é uma cidade da província, com todos os caracteres que você pode conhecer das nossas, já que as diferenças são apenas materiais, ou quase só. Mas vou muito a S. Paulo, pois as quase 5 horas de comboio são, para os hábitos nacionais, pouca coisa. Agora, que o João Paulo e a Maria Beatriz vivem lá, tenho duas casas, ou antes, temos, pois o João Paulo já foi professor aqui, e agora virá a Maria Beatriz, aliás Mabi, para os amigos. Nem sei se você chegou a conhecê-la, gosto muito dela, e acho que o João teve muita sorte em a conhecer”.
Araraquara, de 27/6/68, a José Régio
“Chateei-me à grande nos ditos Estados Unidos: não é país para se viver. A vida é convencional a um ponto para latinos quase inimaginável; pessoas com as quais se possa conversar é a coisa mais rara que há, nos meios universitários. Então, a gente volta de lá com os bolsos cheios de dólares – e a alma doente de solidão”.
Araraquara, de 20/10/69, a José Régio
Bibliografia Ativa Selecionada
Monteiro, Adolfo Casais (1969), Poesias Completas, Lisboa, Portugália Editora.
— (1993), Poesias Completas, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
Bibliografia Crítica Selecionada
Cruz, Gastão (1999), “Sobre a teoria poética de Adolfo Casais Monteiro”, in A Poesia Portuguesa Hoje, Lisboa, Relógio d´Água: 28-32.
Galhoz, Maria Aliete (1981), “Algumas notas a Voo sem Pássaro Dentro, de Adolfo Casais Monteiro”, in Nova Renascença, Porto, n.º 3: 262-265.
Gotlib, Nádia Battella (1985), “Uma re-definição dos caminhos”, in O Estrangeiro Definitivo, poesia e crítica em Adolfo Casais Monteiro, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda: 315-332.
Lopes, Óscar (1987), “Adolfo Casais Monteiro”, in Entre Fialho e Nemésio – II, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda: 704-718.
Mourão-Ferreira, David (1980), “Adolfo Casais Monteiro – Na publicação de “Voo sem Pássaro Dentro”, in Vinte Poetas Contemporâneos, Lisboa, Ática: 155 -158.
Rosa, António Ramos (1986), “Virtualidade e contradição na poesia de Adolfo Casais Monteiro”, in Poesia, Liberdade Livre, Lisboa, Ulmeiro: 61-90.
Sousa, João Rui de (1993), “Resenha Cronológica”, in Adolfo Casais Monteiro, Poesias Completas, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda: 221-223.
Rui Pedro Bastardo de Oliveira Vau
Estudante do MELCI (2018-2019)
Como citar este verbete:
VAU, Rui Pedro Bastardo de Oliveira (2021), “Adolfo Casais Monteiro”, in Ulyssei@s: Enciclopédia Digital. ISBN 978-989-99375-2-9.
https://ulysseias.ilcml.com/pt/termo/monteiro-adolfo-casais/