Bessa-Luís, Agustina

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Bessa-Luís, Agustina

(1922-2019)

A viagem é um terreno fértil para a escrita. Ao longo da sua vida Agustina Bessa-Luís escreveu dois notáveis relatos de viagem, Embaixada a Calígula, publicado em 1961, e Breviário do Brasil, publicado em 1991. Além destes, referência incontornável na sua arte de escritora viajante, podem citar-se algumas das crónicas de Conversações com Dimitri e Outras Fantasias (1979), em que a autora reflete sobre lugares de uma forma quase ficcionada, veja-se o caso das crónicas “Embarque em Brindisi” (Bessa-Luís 1979, 49) ou “A Hora de Termoli” (idem: 74). Menção obrigatória também para o opúsculo As Estações da Minha Vida (2002), em que a pretexto de versar sobre os painéis de azulejos de algumas estações ferroviárias portuguesas, Agustina transporta-nos para o mundo encantado da viagem de comboio. Haverá, ainda, referência a outras terras e deslocações em O Livro de Agustina Bessa-Luís, com primeira edição em 2002. Outros textos e artigos, publicados dispersamente em diversos jornais, posteriormente recolhidos em vários livros, darão testemunho de algumas viagens e lugares.

A sua obra está intimamente ligada a uma geografia, a região do Douro, de onde é oriunda. Nasceu em Vila Meã, Amarante, em 1922, e essas paragens, entre o Douro e o Minho, passando pelo Porto, ofereceram-lhe o privilegiado cenário de muitos dos seus romances, alguns transpostos para o cinema por Manoel de Oliveira. Estudou no Porto e após um interregno em Coimbra, instalou-se definitivamente naquela cidade. Estreia-se na publicação, em 1948, com a novela Mundo Fechado, mas é com o romance A Sibila que ganha reconhecimento literário. Autora profícua, contam-se ao redor de sessenta títulos na sua obra, tendo publicado o seu último romance em 2006, A Ronda da Noite.

Além da escrita assumiu a direção do jornal O Primeiro de Janeiro entre 1986 e 1987, bem como a direção do teatro nacional D. Maria II entre 1990 e 1993, tendo sido Prémio Camões em 2004.

Embaixada a Calígula surge do convite, feito em 1959, para participar num encontro de escritores europeus, sendo ela a única representante de Portugal, no âmbito do Congresso para a Liberdade da Cultura, em Aix-en-Provence que virá a ser conhecido como o “Encontro de Lourmarin”, nome do castelo onde decorreram as sessões. O texto descreve a travessia que Agustina fez num Volkswagen, com o marido, pelo sul da Europa, e que os levou numa viagem de ida e volta do Porto até Roma, atravessando algumas cidades de Espanha, sul da França e Itália. Sendo um relato de viagem, é também um exercício de reflexão e uma peregrinação intelectual, para o que contribui a sua capacidade de observação, ironia e sensibilidade.

É um atlas íntimo e ultra-pessoal que Agustina desenha, olhando para além do evidente. Viaja na história, entrecruza crónicas do passado, evoca diferentes eras e acontecimentos que tiveram palco nos lugares por si visitados e partilha do sentido de embaixada e mensagem que a viagem encerra.

O título evoca a embaixada feita ao desvairado imperador romano Calígula pelo judeu Filón de Alexandria, no ano 40 da nossa era, com o intuito de o levar a respeitar a liberdade de culto e a dignidade humana, que o tirano teimava em violar, declarando-se divino. “E se falei de Filón de Alexandria é porque esse homem, acima de todos, comandará os passos da viagem que empreendi.” (Bessa-Luís 1961: 38), e cujos atos e palavras vai desfiando ao longo do livro como exemplo máximo de racionalidade e inteligência, mas também como alguém com quem partilha um sentimento de solidão intelectual. Outras personalidades são evocadas, tornando esta viagem não só geográfica mas também intelectual, Montaigne, Stendhal, Dante, Savonarola, São Francisco de Assis entre artistas, reis e guerreiros que se juntarão, a seu tempo, à comitiva.

Por seu turno, Breviário do Brasil surge no contexto de uma viagem feita ao Brasil, na companhia de outros escritores, organizada pelo Centro Nacional de Cultura em 1989, que levará Agustina a um longo périplo pelo Rio de Janeiro, Recife, Brasília, São Luís, Porto Seguro ou Belo Horizonte, algumas das cerca de vinte cidades e regiões visitadas. Na edição consultada estão incluídos outros textos (artigos e discursos), publicados em revistas e jornais que não fazendo parte da obra principal, a autora escreveu a propósito do Brasil.

Esta viagem não foi a primeira que fez ao Brasil, nem seria a última. Um tom familiar percorre as suas ideias sobre as gentes e os lugares que visita. Esse estado de quem se sente favorita em terra alheia, advém-lhe da figura tutelar do pai que menciona em diversas ocasiões, no livro e nos textos sobre o Brasil, e que, ainda criança, foi morar para o Rio de Janeiro, por lá ficando 25 anos. Através da figura paterna, do fascínio que lhe desperta o seu passado aventureiro, e de forma “quotidiana, natural e familiar” (Bessa-Luís 1989: 220), terá o primeiro contacto, não isento de deslumbramento, com aquele país. Mas será também pela literatura, como tantas vezes ocorre no escritor viajante, que Agustina conhece o Brasil e citará, entre muitos outros, José de Alencar, cujas pegadas lamenta encontrarem-se quase desaparecidas; Raduan Nassar, um dos favoritos, e Machado de Assis “um dos meus melhores amigos na literatura.” (idem: 159).

A intimidade que desde criança, por razões familiares e literárias, cultiva com essa vastidão imensa que é o Brasil leva-a, quando em deslocação, a um particular entendimento das suas gentes não partilhando os estereótipos universais de que o seu singular pensamento nunca foi seguidora. Assim notará “uma espécie de grandiosa tristeza hereditária” (idem: 12) no brasileiro a quem não é a alegria que o salva mas uma poderosa força que se ergue do chão. Também nos lugares se sente em casa, como em Recife, “não há maneira de não sermos nativos” (idem: 23), até porque o Brasil para o português será sempre uma pátria partilhada, onde chega por diversas vezes a vislumbrar cenários que lhe evocam o Douro, como em Ouro Preto, o que de alguma forma a dececiona por encontrar familiaridade quando esperava estranheza.

No cotejamento de povos a que nenhum viajante foge ela consegue identificar-se com o brasileiro que anda próximo de um português ao contrário, embora reconheça que não é por se partilhar a mesma língua que se partilha a mesma identidade.

A comitiva é recebida na Academia Brasileira de Letras onde Agustina lê um discurso que inclui no livro e onde presta tributo à cidade adotiva de seu pai, Rio de Janeiro, que “Vista do alto é divina, e vista do chão é humana a ponto de nos instruir nas contradições” (idem: 149). Afirma não saber que livro escreve, mas o resultado, cuja redação findou no Porto, é uma visão inteligentíssima do Brasil, visto de todos os ângulos, pese embora nem sempre totalmente compreendido, como quando afirma não haver racismo no Brasil, mas sempre assombroso e sobretudo amado.

Em As Estações da Vida Agustina fará essencialmente uma viagem nostálgica ao passado, evocando as deslocações de comboio pelas linhas do Douro e Minho que tão bem conhece, agora que esse tempo, segundo a autora, já despareceu. O comboio era quase um modo de vida, marcava o horário dos dias, o ritmo das estações, transportava comerciantes, levava ao destino de férias, “O comboio esteve sempre na minha gente do Douro como um destino, um modo de vida e um pretexto de aventura.” (Bessa-Luís 2002: 19).

Numa determinada passagem de Breviário do Brasil, Agustina Bessa-Luís afirma que procura encarar os factos sempre como ficção para deles adquirir prova. Agustina escreve, em toda a sua obra, como quem viaja e quando viaja necessariamente escreve. Esse entendimento do mundo que observa nas suas deslocações é-nos dado de forma sensível através das suas narrativas de viagem, verdadeiras propostas, por vezes romanescas, de uma prática de iniciação à sabedoria.

 

Passagens

Portugal, Espanha, França, Itália, Brasil

 

Citações

A viagem é a intimidade do importuno. Tudo o que não preferimos em quaisquer outras circunstâncias de fixação prolongada – uma paisagem, as criaturas, um acontecimento – é-nos oferecido para que o tomemos com esse amor espontâneo que não se pode evitar por que vive da surpresa em que se comprometeu. Muita gente muda de lugar, passa de um a outro continente, retém na memória factos sobrevindos em diversas latitudes. Mas a viagem, com o seu mistério e a sua intimação à consciência, com as suas alegrias que nascem inexplicavelmente dum golpe de vento na poeira sobre uma ponte, duma sensação de vida isolada e profunda quando atravessamos uma terra estrangeira – ah, essa viagem poucos a podem experimentar! (Embaixada a Calígula, p. 11, 12)

Uma pátria é um sentimento e não um punhado de razões. Para nós, o Brasil é um pouco uma pátria, quer queiramos quer não. Temos uma História comum que nada pode desarticular; e há uma história original, feita pelo carácter das suas regiões, na qual ninguém pode interferir, na medida em que está preservada geográfica e etnologicamente. Mas o sentido de comparação, essencial como pilar de todas as civilizações, somos nós, os portugueses, quem melhor o exerce. Se entramos em Curitiba, alegra-nos o pinheiro de altas copas, e dele dizemos que nos lembra o pinheiro litoral ou da montanha, pinheiro sempre, emblema da paisagem portuguesa. Lembra, e é diferente. (Breviário do Brasil, p. 45)

Porquê o comboio? Porque ele sugere viagem, fuga, fadiga sob um ângulo de distracção e esquecimento. Viajar é um tique, a maior parte das vezes. Quem pratica esse tique, a viagem em si mesma, manifesta-se como a criança, sente-se interiormente jovem. Nesse sentido a estação, como hoje os grandes aeroportos, decorada e dantes mesmo ajardinada, propõe ao viajante um carácter aliciante de crianças grandes. (As Estações da Vida, p.34)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

Bessa-Luís, Agustina (2009), Embaixada a Calígula, Lisboa, Guimarães Editores, [1961].
— (1979), Conversações com Dimitri e Outras Fantasias, Lisboa, A Regra do Jogo Edições.
— (1986), Agustina por Agustina – entrevista conduzida por Artur Portela, Lisboa, Publicações Dom Quixote.
— (1991), Breviário do Brasil, Lisboa, Guimarães Editores.
— (2002), As Estações da Vida, Lisboa, Relógio D’Água Editores.
— (2014), O Livro de Agustina – Agustina Bessa-Luís, uma autobiografia, Lisboa, Guerra e Paz Editores, 2ª ed. [2007].

 

Bibliografia Crítica Selecionada

Faia, Tatiana (2010), “Embaixada a Calígula. Agustina Bessa-Luís e uma memória de Fílon de Alexandria”, Revisiones, n.º 6, pp. 85-94
Filizola, Anamaria (2003), “Agustina Bessa-Luís e o Brasil: Diário de Viagem”, Revista Letras, Curitiba, n.º 59, pp. 145-155.

Sónia Serrano Pujalrás
Estudante do MELCI (2018-2019)

Como citar este verbete:
PUJALRÁS, Sónia Serrano (2021), “Agustina Bessa-Luís”, in Ulyssei@s: Enciclopédia Digital. ISBN 978-989-99375-2-9.
https://ulysseias.ilcml.com/pt/termo/bessa-luis-agustina/