Cadilhe, Gonçalo

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Cadilhe, Gonçalo

(1968 – )

Nascido na Figueira da Foz, na reta final da década de sessenta, é desde muito cedo que Gonçalo Cadilhe vive a experiência da deslocação na sua passagem pelos escuteiros. Na verdade, a sua paixão pelas viagens e pelo surf na adolescência assume-se como fator determinante de um projeto de vida, em que o sedentarismo é olhado com displicência e desencanto, em prol da vertigem e da aventura. Neste quadro, a sua condição de viajante e de deambulador tem ancoragem na leitura de Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, obra que, aos vinte anos, impeliu o autor a viajar a Roma para poder ler os últimos capítulos na Villa Adriana. Nas palavras de Gonçalo Cadilhe, esta obra assume-se como livro matricial no seu percurso viático, no sentido em que talvez pudesse encontrar aí a raiz da sua atração pela componente literária de qualquer experiência de viagem. Por esta razão, de nada lhe valeu a licenciatura em Gestão de Empresas e a estabilidade frívola e deslumbrada de um emprego fixo, de horários rígidos. De facto, o fascínio de ler e viajar prevaleceu e está bem presente nas crónicas semanais que escreveu e enviou para a revista Única do Expresso e para a Grande Reportagem, ao longo da sua volta ao mundo, em quase todas as crónicas aparecendo referida uma obra, em sintonia com a geografia que atravessa e descreve.

Nas suas deslocações, confluem então os papéis de cronista-escritor-viajante-jornalista, num registo poroso e fluído que tão bem caracteriza a escrita de viagem. Atente-se nas palavras do autor: “O que me preocupava era escrever bem, semana após semana. Captar o leitor, conquistar o espaço do Expresso, dar uma dimensão literária à minha volta ao mundo. O objectivo final, para mim, não era terminar a viagem – era editá-la em livro. Só agora chego, por fim a casa” (Cadilhe, 2007:9). Esta dimensão de que fala Cadilhe pode ser entendida como uma prática de escrita sobre a viagem levada a cabo por um sujeito autoral inserido num contexto multicultural e multidisciplinar que corporiza a condição do homo viator eivado de um propósito estético e ontológico. Deste modo, o autor consubstancia uma escrita de viagem formatada num registo jornalístico, em partilha com um leitorado multifacetado que viaja pelas páginas dos seus livros, construídos a partir de “uma antologia pessoal escolhida entre centenas de reportagens” (Cadilhe, 2006:12).

Neste sentido, a consolidação da imagem do escritor decorre também da qualidade das obras/autores convocados. Assim, de entre uma vastíssima constelação de escritores que compõem a sua biblioteca mental, destacam-se algumas figuras recortadas de um painel polimórfico e polifónico que o ajudaram a viajar melhor pelo mundo, permitindo um profundo diálogo inter e transtextual. Assim, Il Maiale ed il Grataciello de Marco d’Eramo, lido nos Estados Unidos, na Bolívia Las Venas Abertas de América Latina de Eduardo Galeano, na Indonésia Among the Believers de V.S. Naipaul, na Índia Vislumbres da Índia de Octavio Paz e Uma Ideia da Índia de Alberto Moravia, e no Irão In Search of Zarathustra de Paul Kriwazeck, destacam-se como alguns dos exemplos citados pelo escritor-viajante, revelando a presença de um filão autobiográfico que atravessa o corpo narrativo da viagem efetivamente acontecida e da viagem textual.

Se é certo que a viagem pode realizar-se sob os mais variados processos, para Cadilhe o avião surge como o último recurso, privilegiando a caminhada como o meio de deslocação por excelência, o qual, a par da solidão, da bagagem que transporta, do alojamento que elege e dos encontros com o Outro, possibilita um melhor cruzamento de fronteiras e uma conquista no espaço editorial. Na verdade, a experiência viática cadilhiana não se confina à simples deslocação pelas paisagens humanas e geográficas, emerge como um jogo de espelhos em que o Eu e o Outro se entreolham de muito perto, propiciando viagens/deslocações outras e contribuindo para a instauração de uma poética do género numa conformação transnacional.

 

Passagens

Europa, América do Norte, América Latina, América do Sul, Extremo Oriente, Médio/Próximo Oriente, Oceânia, África.

 

Citações

Um dos livros que ando a ler, Il Grande Maré di Sabbia, fala do deserto. Foi quase uma premonição tê-lo escolhido como companheiro de viagem porque o autor, Stefano Malatesta, descreve o deserto como quem atravessa o mar – com paixão pela travessia mas com urgência na chegada. (Planisfério Pessoal, p. 23)

Viajar pressupõe o movimento, a travessia, o testemunho, o contacto visual. (A lua pode esperar, p. 243)

O Sol começa a descer no horizonte, o gado recolhe às sanzalas, e eu sinto já que Angola me vai ser muito congénita, muito emocional. (África acima, p. 93)

Magalhães, impressionado com os mocassins de pele de guanaco do selvagem, que deixavam enormes pegadas na areia, chama-lhe «patagão». E assim nasceu o nome da última região antes do fim do mundo, a Patagónia. (Nos Passos de Magalhães, p. 117)

Porquê Génova? Não saberia responder muito bem. Há razões objectivas, mas depois começa a «química» entre os homens e as cidades, e isso não se explica. É Génova a minha preferida. (Tournée, p. 163)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

CADILHE, Gonçalo (2006), A lua pode esperar, Lisboa, Oficina do Livro.
—-, (2007), Planisfério Pessoal, Lisboa, Oficina do Livro.
—-, (2007), África acima, Lisboa, Oficina do Livro.
—-, (2008), Nos Passos de Magalhães, Lisboa, Oficina do Livro.
—-, (2008), Tournée. Textos e fotografias 1991-2008, Lisboa, Oficina do Livro.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

SOARES, Maria Dulce (2009), Gonçalo Cadilhe e a Outra face do mundo: viagens sobrepostas. Tese de Mestrado em Literatura e Cultura Comparadas, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Dulce Soares (2011/11/14)