(1947 – )
Formado em filosofia, ciências políticas e economia, assessor durante o governo de Miterrand, conselheiro de estado e membro do Alto Comissariado para a Francofonia, ensaísta e escritor, Erik Orsenna começa a publicar em 1973 com Loyola’s blues, conhecendo em 1988 o prémio Goncourt com o romance L’Exposition coloniale. Autor de cerca de uma dezena de romances, já em 1978 tinha recebido o prémio Roger Nimier por La Vie à Lausanne. No domínio do ensaio, Voyage au pays du coton (2006) receberá a Lettre Ulysses Award e o prémio Livre d’Économie. Em 1998, é eleito para a Academia Francesa, ocupando o lugar deixado vago por Jacques-Yves Cousteau. Interessando-se profundamente pelas viagens e pelo mar, interesses que de resto marcam a sua obra, Erik Orsenna preside ainda ao Centre de la Mer, em Rochefort e pertence à associação Les Écrivains de Marine que tem por vocação a difusão e preservação da cultura e herança marítimas.
A importância do mar na vida e na obra de Erik Orsenna está desde logo presente no portal pessoal do autor – L’archipel d’Erik Orsenna –, representado cartograficamente em forma de arquipélago, no qual cada ilha é um livro. A Empresa das Índias, obra que, publicada em 2010, faz parte desse arquipélago, toda ela se ergue em torno do mar – abrindo ainda espaço para uma reflexão em torno da ilha –, através de uma rememoração pessoal dos momentos que antecederam a viagem de descoberta da América e dos seus preparativos. Com efeito, contrariamente ao que poderíamos esperar num primeiro contacto com o título da obra, não se trata da narrativa da viagem de Cristovão Colombo, a tomá-lo como protagonista de um tempo das Descobertas, mas outrossim a narrativa desnovelada por um cartógrafo, Bartolomeu Colombo seu irmão, dando lugar a uma voz e a um olhar ignorados, trazendo para a ribalta um espaço de bastidores e um período desconhecido e olvidado pela História oficial ou, como aponta o próprio autor, trata-se de dar a ver o que ficou na sombra: “L’ombre m’a toujours fasciné. Les gens de lumière s’appuient toujours sur les gens de l’ombre. Comme conseiller de ministres et d’un président, j’ai à ma manière été un Bartolomé”. Bartolomeu que, na sua velhice em La Hispaniola pratica um “quotidiano de memória”, dirá: “(…) saio do meu papel: não estava previsto eu contar”. (Orsenna, 2011: 268 e 306) A importância dada às invisibilidades da História, às vozes sem voz, encontra-se de igual modo na atenção votada, em A Empresa das Índias, às mulheres-viúvas dos navegadores.
Apostando na personagem e na história (Viart & Vercier, 2008: 376), A Empresa das Índias dá testemunho do “retour au récit” e da sedução do récit que algum romance das duas últimas décadas do século passado redescobre e de que falam Dominique Viart e Bruno Vercier (idem: 363). Não sendo propriamente um romance histórico, mas conjunto de memórias e reflexões situados num tempo histórico de expansão marítima portuguesa e espanhola, A Empresa das Índias contribui inegavelmente para a construção e perpetuação de uma presença de Portugal e da cultura portuguesa na literatura francesa contemporânea, na continuidade de um imaginário em circulação em torno de um país, outrora de navegadores e caravelas, com a figura tutelar do Infante D. Henrique a emergir, a espaço, ao longo da narrativa (Orsenna, 2011: 35, 75).
Diegeticamente situada sobretudo no Portugal do século XV, Lisboa será o cenário maior das histórias narradas por Bartolomeu Colombo que chega a Lisboa “[Contentando-se] em seguir o fluxo: [pois] de toda a Europa se acorria a Lisboa” (idem: 23). Em A Empresa das Índias, a capital do “(…) reino de Portugal [que] fez escola” (idem: 196) apresenta-se como espaço de curiosidade criadora na Europa de então ou, na analogia traçada pelo próprio Erik Orsenna em entrevista: “la Sillicon Valley des Découvertes” (Orsenna, 2010). A expansão marítima portuguesa é aqui grandemente trabalhada no que teve de progresso no conhecimento e no cuidado com o mundo (Orsenna, 2011: 119) e não na sua dimensão imperial ou de proveito económico. Esta Lisboa surge não apenas como porto de partida e de chegada de naus, mas também porto de abrigo para muitos e espaço que, à época, antecipa não só a contemporânea migração multicultural mas também dinâmicas de mundialização: “(…) a minha Lisboa, é, por si só, um arquipélago que vale bem os Açores ou as Canárias em diversidade e mistério. Cada um dos povos que aqui vive é uma ilha. À ilha principal, a dos Portugueses da velha cepa, outras ilhas se foram juntando ao longo dos séculos.” (Orsenna, 2011: 83)
Não recusando um imaginário vulgarizado quando não estereotipado de Portugal, o país que aqui se deixa entrever é um país de brandos costumes que por vezes também conhece a irracional e injustificável violência a atravessar a história humana: “– E Lisboa, tão branda de costume? Qual a razão desta loucura actual?” (Orsenna, 2011: 287) “As violências que tinham ensanguentado a nossa ilha espanhola e que eu não pudera ou não quisera impedir durante os anos em que a governei, eis que volto a encontrá-las, na mesma, os mesmos gestos e vítimas iguais, nesta Lisboa branda, tão branda: a porta de uma casa rebentada, uma mole humana que se precipita para o interior (…)“ (idem: 289).
A comum referência à melancolia como traço caracterizador do povo português não ocorre em A Empresa das Índias; encontramos, porém, a presença inexplicada da tristeza que por vezes se abate sobre Lisboa, surgindo então a música como arma que combateria essa tristeza, incorporando-a. Não é questão de fado na obra de Orsenna; de resto, lembrar esse género musical tipicamente português seria profundamente anacrónico, contudo o leitor não pode deixar de mentalmente convocar relações que com ele se estabeleceriam e, nessa medida, o estereótipo da representação cultural de novo atravessa subliminarmente a escrita sobre Portugal em A Empresa das Índias, prolongando um imaginário transnacional partilhado em torno do espaço cultural português.
Passagens
Portugal, França, Espanha, Alemanha, Bélgica, África.
Citações
Esse ritual imutável é a respiração de Portugal. Uma caravela avança lentamente, impelida pela maré a encher. As suas velas mais não são que trapos remendados, os mastros parece que só se mantêm de pé por milagre. Que guerra travou ela, contra que inimigos? Várias das pranchas do casco foram arrombadas, o castelo da popa não é mais dói que uma ruína. (A Empresa das Índias, p. 35)
– Não será mais que ilusão, esta tendência de velho para ver os tempos da juventude mais belos do que foram, mas quer-me parecer que a ambição do lucro rápido não era a principal força a puxar para o Sul os marinheiros portugueses. Para já, soprava em Lisboa um vento forte de curiosidade. (…) a palavra vem do latim cura que quer dizer ‘cura’, ‘cuidado’. O curioso é um médico, cuida do mundo. (idem, p. 119)
Há climas que são maus, mesmo mortais, para certas plantas e bons para outras, mas atmosfera de Lisboa era, na época em que conheci, a mais favorável à espécie humana. Homens e mulheres iam para lá para encontrarem um terreno favorável à vida, porque em todo o resto da Europa estavam proibidos de viver. (idem, p.84)
Habitantes de um país amável, e quão temperado, muitas vezes até tranquilo de mais, os Portugueses não podiam deixar de se apaixonar pela vida selvagem. Quais criancinhas, maravilhavam-se com tudo o que fosse bizarria mais ou menos monstruosa, animal ou vegetal, trazida de África. Em que outras igrejas da cristandade foi possível ver crocodilos gigantescos suspensos por cima do altar?” (idem, p. 54)
Em certos dias, chuva e tristeza parecem conluiadas: caem juntas sobre Lisboa. Qual traz qual? É a chuva que cria tristeza? Ou a tristeza que, sentindo-se muito só, chama a chuva para lhe fazer companhia? E a tristeza atinge então um ponto tal que Lisboa não a pode suportar. Então ela fornece a única arma possível contra a chuva: a música. (…) A primeira estranheza destas melodias, sejam elas cristãs, ou judias ou mouras, é que são ainda mais tristes que a tristeza. (idem, p. 92)
Bibliografia Ativa Selecionada
ORSENNA, Erik (2010), L’Entreprise des Indes, Paris, Stock/Fayard.
— (2011), A Empresa da Índias, trad. Telma Costa, Alfragide, Teorema.
Bibliografia Crítica Selecionada
VIART, Dominique et Bruno Vercier (2008), La Littérature Française au Présent, Paris, Bordas, pp. 363-391.
Maria de Fátima Outeirinho (2011/11/18)