(1894-1961)
Louis-Ferdinand Destouches nasceu em 27 de maio de 1894, em Courbevoie, a oeste de Paris. Mais reconhecido por seu nom de plume, Louis-Ferdinand Céline, tornou-se uma figura que ainda ocupa lugar controverso no cânone literário francês do século XX. A trajetória de Céline, de filho único de pais comerciantes a escritor antissemita em auto-exílio na Dinamarca, adquire um caráter quase romanesco quando analisadas as numerosas deslocações empreendidas pelo autor desde a juventude.
As viagens de Céline, com múltiplos destinos e propulsores distintos, estão enraizadas no cerne temático e psicológico de sua obra, em que as fronteiras entre ficção e realidade são tênues – em especial em seu romance de maior influência, Voyage au bout de la nuit (1932). Desconsiderada a polêmica posterior em relação às publicações antissemitas produzidas por Céline durante a ocupação nazista da França, a deslocação na literatura do autor será aqui analisada com base na relação realidade/ficção em Voyage au bout de la nuit, obra em que o protagonista, Ferdinand Bardamu, é um espelho do próprio Céline – e empreende as mesmas deslocações que o escritor.
De particular importância é a experiência de combate na Primeira Guerra Mundial, assim como a ida à África colonial e o contato com o fordismo nos Estados Unidos. Os percursos de Céline, inicialmente motivados por forças externas, têm início em 1899, quando a família Destouches deixa Courbevoie pela capital francesa. Em 1908 e 1909, Céline estuda idiomas na Alemanha (em Diepholz e Karlsruhe) e Inglaterra (Rochester e Broadstairs). Em 1912, aos 18 anos, Louis-Ferdinand Destouches, para adiantar o alistamento inevitável, apresenta-se ao exército francês, dois anos antes do início da Primeira Guerra Mundial.
Em 1914, aos 20 anos, Céline passa pela experiência brutal dos primeiros combates do exército francês na Primeira Guerra, na região belga de Flandres Ocidental. Ferido no braço em Poelkapelle, recebe condecoração militar e é declarado incapaz de retornar ao combate. Seu envolvimento com o conflito é seu primeiro contato – e o do protagonista Bardamu – com o horror da guerra e o absurdo inerente às relações humanas, cuja autópsia é central em Voyage au bout de la nuit e em toda obra celiniana. Ainda, é justamente com o alistamento militar que o romance tem início. Nessa primeira viagem, a passagem de Bardamu pelo exército francês apresenta um caráter autobiográfico mais evidente, e evidencia os traumas e cicatrizes físicas e psicológicas compartilhadas por autor e personagem.
Após a dispensa do exército, Louis-Ferdinand Destouches passa um biênio em Londres (1915-1916), trabalhando no serviço consular francês, período considerado de menor relevância na trajetória do escritor e não incluso nas viagens de Bardamu. Em seguida, passa por sua segunda grande experiência formativa como viajante, em 1916, quando é enviado pela companhia florestal Sangha-Oubangui para supervisionar plantações no Camarões, onde entra em contato novamente com o horror existencial encarnado na miséria e brutalidade do colonialismo.
Na viagem à África, a experiência espelhada pelo protagonista Ferdinand Bardamu é amplificada por doença e delírio. Os conflitos da personagem fictícia operam de forma a maximizar a experiência factual de Céline – em especial na forma em que desnudam as contradições e o absurdo do ato de viver para morrer.
Retorna à França em 1917, por razões médicas. Conclui seus estudos em medicina, de 1920 a 1924, e publica sua tese “La vie et l’œuvre de Philippe Ignace Semmelweis” (1924), considerada precursora de sua obra literária. No ano seguinte, ao jovem docteur Louis Destouches é confiado o comando de uma delegação de médicos sul-americanos, com os quais cruza grande parte da América do Norte com o objetivo de estabelecer uma rede mundial em prol do desenvolvimento da saúde pública.
A viagem tem início em Cuba e inclui passagens por Luisiana, Washington e Nova Iorque, mas é a estadia em Detroit e Pittsburgh, de 5 a 8 de maio de 1925, que demonstra o papel central das deslocações físicas e psicológicas na viagem sem destino de Voyage au bout de la nuit. A experiência proposta pela equipe médica buscava verificar se um serviço de saúde fornecido aos operários industriais poderia resultar em retorno financeiro para os acionistas da indústria; é neste contexto que se dá o contato de Céline com o fordismo, experiência que o marcou profundamente, detalhada em documentos como “Note sur l’organisation des usines Ford à Detroit” (1925).
Após o espantoso contato com horrores inimagináveis, proporcionado pela imersão no contexto da Grande Guerra e do colonialismo europeu no continente africano, Céline passa pelo terceiro confronto com o que acabaria por ver como o inescapável absurdo da existência humana quando conhece as usinas Ford, cujo modelo de produção – o fordismo – é peça central do então nascente capitalismo estadunidense.
Embora o foco de suas notas sobre a experiência real seja o aspecto médico e a análise das condições de saúde proporcionadas aos trabalhadores (o escritor demonstra interesse no fato de que o alto grau de mecanização do fordismo permitia mesmo aos inválidos trabalharem em fábricas), Céline não deixa de demonstrar certo desgosto pela indústria: “Chez Ford, la santé de l’ouvrier est sans importance, c’est la machine qui lui fait la charité d’avoir encore besoin de lui” (1925: 128).
Esta mesma ideia é enunciada por Bardamu, que, ao contrário de Céline, passa pela experiência direta de trabalhar nas indústrias Ford quando parte para os Estados Unidos: “C’était vrai, ce qu’il m’expliquait qu’on prenait n’importe qui chez Ford. Il avait pas menti” (1932: 53). Ao espelhar parte das experiências reais de Céline, Bardamu (embora apresente um alto grau de autonomia em relação ao autor, com relacionamentos e experiências próprias) amplia sua vivência factual, mesclando o real e o fictício para estabelecer mais precisamente as temáticas e os objetos de análise da obra – em especial, a impotência humana diante do caos incompreensível de sua própria existência.
De fato, em Voyage au bout de la nuit, as deslocações geográficas servem como pano de fundo para a análise das metamorfoses psicológicas proporcionadas pelas experiências em locais até então desconhecidos, cada uma marcada por seus próprios horrores (a guerra, a peste, a miséria). Embora suas jornadas coincidam em diversas partes, seus efeitos psicológicos parecem ser distintos entre autor e personagem: enquanto Céline aprofundou seus conhecimentos sobre a condição humana e aguçou o olhar que o levaria a tornar-se escritor, Bardamu segue seu próprio rumo, e ao término do enredo já se encontra em um percurso – físico e psicológico – distintos do autor.
É certo que as jornadas centrais de Céline e Bardamu parecem coincidir num mesmo destino final – o bout de la nuit, o lugar nenhum – , existindo a tentativa – fadada ao fracasso – de deslocar-se mais rápido que o horror e de fugir à própria morte. No entanto, e apesar do caráter inerentemente niilista dessa proposição, que perpassa a obra céliniana, o prólogo do romance oferece um olhar alternativo:
Voyager, c’est bien utile, ça fait travailler l’imagination. Tout le reste n’est que déceptions et fatigues. Notre voyage à nous est entièrement imaginaire. Voilà sa force. Il va de la vie à la mort. Hommes, bêtes, villes et choses, tout est imaginé. C’est un roman, rien qu’une histoire fictive. Littré le dit, qui ne se trompe jamais. Et puis d’abord tout le monde peut en faire autant.
Il suffit de fermer les yeux. C’est de l’autre côté de la vie. (Céline, 1932: 1).
Na ininterrupta viagem de la vie à la mort, da qual ninguém pode escapar, há possibilidade de empreendermos viagens em nós mesmos que são inteiramente imaginárias, e portanto dotadas de possibilidades infinitas, limitadas apenas pela própria imaginação. Se do outro lado da vida há alguma espécie de refúgio ao horror, qualquer um pode buscá-lo: basta fechar os olhos e viajar.
Passagens
Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Camarões, Cuba, EUA
Citações
“Combien de temps faudrait-il qu’il dure leur délire, pour qu’ils s’arrêtent épuisés, enfin, ces monstres?
Combien de temps un accès comme celui-ci peut-il bien durer? Des mois? Des années? Combien ? Peut-être jusqu’à la mort de tout le monde, de tous les fous? Jusqu’au dernier? Et puisque les événements prenaient ce tour désespéré je me décidais à risquer le tout pour le tout, à tenter la dernière démarche, la suprême, essayer, moi, tout seul, d’arrêter la guerre! Au moins dans ce coin-là où j’étais.” (Voyage au bout de la nuit: 13)
“En Afrique ! que j’ai dit moi. Plus que ça sera loin, mieux ça vaudra !” (idem: 124)
“C’était vrai, ce qu’il m’expliquait qu’on prenait n’importe qui chez Ford. Il avait pas menti. Je me méfiais quand même parce que les miteux ça délire facilement. Il y a un moment de la misère où l’esprit n’est plus déjà tout le temps avec le corps. Il s’y trouve vraiment trop mal. C’est déjà presque une âme qui vous parle.” (idem: 253)
Bibliografia Ativa Selecionada
Céline, Louis-Ferdinand (1932), Voyage au bout de la nuit, Paris, Folio.
Bibliografia Crítica Selecionada
Céline, Louis-Ferdinand (1925), Notes sur le service sanitaire de la compagnie Westinghouse à Pittsburgh, Paris, Gallimard.
—- (1925), “Notes sur l’organisation sanitaire des usines Ford à Detroit”, in Cahiers Céline III, Paris, Gallimard.
Vittoux, Frédéric (2005), La vie de Céline, Paris, Folio.
Luciano Galvão Simão
Estudante do MELCI (2018-2019)
Como citar este verbete:
SIMÃO, Luciano Galvão (2021), “Louis-Ferdinand Céline”, in Ulyssei@s: Enciclopédia Digital. ISBN 978-989-99375-2-9.
https://ulysseias.ilcml.com/pt/termo/celine-louis-ferdinand/