Amaral, Ana Luísa

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Amaral, Ana Luísa

(1956-2022)

I

Nasceu em 1956, onde nasceram 90% dos lisboetas (na Maternidade Alfredo da Costa). Aos nove anos, mudou-se, por vontade alheia, de Sintra para terras do Norte (Leça da Palmeira), tendo sofrido na pele a estupidez da divisão Norte/Sul. (…) Frequentou a Faculdade de Letras do Porto, tendo-se licenciado em Germânicas. Deve ter gostado tanto da Faculdade que por lá se deixou ficar, como professora, até ao presente momento. Por necessidade de carreira, tinha que fazer doutoramento. E fez; sobre Emily Dickinson cujos poemas a fascinam tanto como a fascinara o Zorro. Pelo caminho, foi publicando livros de poemas.

Assim começa uma nota autobiográfica de Ana Luísa Amaral, redigida em 1998, e reproduzida ainda em vários lugares. Actualizada, passados que são mais de dez anos, talvez essa nota referisse, no mesmo tom de desprendimento, a publicação de dez livros de poesia e de dois infantis, a tradução de centenas de poemas para várias línguas, os prémios de poesia recebidos (2007: Casino da Póvoa/Correntes d’Escrita e Giuseppe Acerbi; 2008: Grande Prémio da APE), as migrações da poesia para outros campos artísticos (ópera, teatro, canção) e a presença em inúmeros encontros internacionais de poesia. Um qualquer biógrafo da autora enfatizaria, decerto, a sua cidadania activa e os inovadores caminhos explorados no domínio científico-pedagógico.

A poesia de Ana Luísa Amaral está cheia de referências ou alusões a viagens e a espaços, e nem seria preciso a viagem “factual” para que tal acontecesse, como o prova Imagens (2000), nos seus “barcos, mares e viagens intermináveis, Jonas e Ulisses de mãos dadas” (Santos, 1999:13). A Viagem é, por sua vez, desde o livro inaugural, Minha senhora de Quê, indissociável do Tempo e da Memória, como anuncia o poema “Viagens e Paisagens” – “Tremente carruagem na velocidade / atónita do tempo (que o momento já / tarda e o conforto afinal só ilusão)” – o que se confirma na globalidade da sua poesia e se condensa em insólitas imagens cinéticas – “O tempo passeando nas paredes” (“E muitos os Caminhos”). A vasta erudição da autora e o apaixonado convívio com múltiplas tradições culturais assegurariam por si só, numa obra claramente dialógica, a presença de figuras e lugares de todos os tempos e épocas.

Após deslocações pontuais a Inglaterra em finais dos anos 80, Ana Luísa Amaral vive entre 1991 e 1992 nos E.U.A. Excessivo será, porventura, imputar a essas viagens a tematização disfórica da emigração no poema “Paraísos” ou a visão desencantada em “Uma Constante da Vida” (“Errámos junto / à História”) de Às vezes o Paraíso (1998), ou sobrevalorizar poemas deícticos como “Árvores de Rhode Island (3 Poemas)”, de Coisas de Partir (Poemas), publicado em 1993, após o regresso dos E.U.A. Mas, ao lermos este livro, é de ponderar o papel desempenhado pelo encontro “real” com a América na exploração de redes analógicas entre a ciência e a poesia (a “química do cérebro”, os “robóticos painéis”, os “cibernéticos percursos”), ou na poetização da tecnologia do olhar e da imagem – nenhum(a) poeta português(a) do século XX ou XXI nos oferece uma obra tão densamente povoada de lentes, óculos, écrans, bips, fotografia, filmes, televisão ou computadores. Como se essa estada nos E.U.A. tivesse despertado na poeta uma mais aguda percepção do papel da imagem na construção do mundo que habitamos e uma maior consciência da ética da escrita poética, que passa pela renovação de representações fossilizadas desse mundo.

Se Coisas de Partir é dominado por um exercício epistemológico levado ao extremo, em “ginásticas do olhar” que tentam superar os limites do próprio corpo (ex. “Perspectivas”), nos livros que se seguem, a poeta-dramaturga entrega-se a um apaixonado trabalho de revisão de imagens, de revisitação de lugares e de figuras míticas de um imaginário pessoal e cultural, que resulta em novas coreografias e em subversivas “gramáticas do olhar” – imagens de imagens em contínua metamorfose. A inicial poética do avesso dá lugar a uma poética arbórea, da versão conjectural, sempre em processo de re-visão, mediante o operador privilegiado do im-perfeito e do reinício: “E se” (ou variáveis: “faz de conta”, “em vez”). Há implícita na poética de Ana Luísa Amaral a ideia da (quase) inutilidade da viagem física e uma apologia do exercício da Imaginação, da Memória e da Atenção ao real quotidiano mais ínfimo. Não surpreende, por isso, que, quando a poeta embarca, com centenas de escritores europeus, na mais literária viagem do século XX – O Comboio da Literatura 2000 – se escuse a escrever o diário de bordo pedido ou que use o poema “Viagens e Paisagens” como ex-libris de uma viagem que, para ela, começa antes de começar. No híbrido texto de prosa poética que então produz (cf. Citações), é visível como, na sua escrita, a paisagem e os lugares se volverão sempre em Tempo e em Memória: inquietantes viagens por territórios a descobrir.

Em 2000 (ou 2009), Ana Luísa Amaral corroboraria, decerto, as palavras de Bernardo Soares: “Para viajar basta existir. Vou para o dia de estação para estação, no comboio do meu corpo ou do meu destino.” (Livro do Desassossego).

 

II

Entre 2010 e 2022, após a antologia de poesia, Inversos, Poesia 1990-2010, Ana Luísa Amaral publicou com regularidade livros de poesia, uma peça de teatro, Próspero Morreu (2011), uma obra de ficção, Ara (2013), um livro de ensaios, Arder a palavra e outros incêndios (2017), e vários livros infantis. Continuou o trabalho de tradução iniciado em 1998, privilegiando agora os seus poetas de eleição, Shakespeare e Emily Dickinson – a que se somou a tradução de John Updike, de Patricia Highsmith e de Louise Glück, entre outros. Proferiu conferências e palestras, deu cursos livres sobre autores e obras do seu repertório afetivo (destaque-se o curso Entre o Fulgor e o Furor: Ler William Shakespeare, no Teatro Nacional D. Maria II), e desenvolveu inúmeras atividades culturais e cívicas com diferentes graus de visibilidade. As suas obras foram traduzidas em vários idiomas e muitos dos seus poemas circulam em antologias um pouco por todo o mundo. Alguns dos seus textos foram objeto de adaptação teatral e televisiva. São já muitas as dissertações académicas sobre a sua obra literária, dentro e fora de Portugal, a atestar o processo de canonização. Em preparação, na Grã-Bretanha, um livro de ensaios organizado por Claire Williams e Maria Luísa Coelho, intitulado Ana Luísa Amaral: Critical Essays (Peter Lang). Consolidou-se nesta década o reconhecimento nacional e internacional da poeta como uma das vozes mais importantes e singulares da poesia portuguesa contemporânea e figura proeminente da cultura lusa, o que lhe valeu importantes distinções e prémios, que culminariam no “XXX Premio Reino Sofía de Poesía Iberoamericana” (2021).

No período que decorre entre 2010 e 2022, ALA viajou por quatro continentes, e visitou países das mais diversas latitudes, participando em festivais literários e eventos culturais diversificados. Com exceção do Brasil (e, nos anos 90, dos EUA), tratou-se de breves passagens e estadas de curta duração. No papel alternado ou cumulativo de poeta, tradutora, ensaísta e professora, ALA fez conferências, palestras, leu a sua poesia e deu entrevistas para diferentes meios e suportes de comunicação. A convite de instituições universitárias, de comunidades e associações literárias e outras, deslocou-se com frequência a países ibero-americanos (da Argentina ao México foram poucos os países onde não esteve). Foi várias vezes ao Brasil e à Colômbia. Depois da participação, em 1999, como poeta, no “IX Festival Internacional de Poesía de Medellín”, regressaria, em 2013, para a Feira Literária de Bogotá, dedicada a Portugal, na FIL, e, em 2021, na qualidade de convidada principal, para a 5ª edição do festival Deslinde. Poesía. Cartagena. O peso histórico e mítico de Cartagena das Índias entusiasma a poeta, e antes da partida, ALA revisita a história expansionista ibérica e navega intensamente por mapas internéticos (à imagem do rapaz dos mapas do Livro de Desassossego). No entanto, é difícil (ou mesmo impossível) rastrear, nos poemas que se seguiram, traços dessa viagem tão desejada e de um lugar onde manteve contato com notáveis escritores da América latina e de outros continentes.

A revisitação e “re-visão” (na acepção de Adrienne Rich; cf. Rich, 1972 e Ferreira 2022) da viagem expansionista portuguesa (e europeia) já acontecera no livro Escuro, datado de 2014 – e ainda antes, na secção final do livro Vozes (2011) –, mas essa revisitação faz-se tendo como fundo palimpséstico a Mensagem, de Pessoa (e Os Lusíadas, via Mensagem), e não Cartagena das Índias ou qualquer outro lugar da geografia colombiana. A figura do Adamastor habita a sua poesia desde Epopeias (1993). Maria Irene Ramalho considera mesmo Escuro o “poema mais modernista de Ana Luísa Amaral”, “um poema-feito-de-poemas” (Ramalho 2014: 162). E, sobre Escuro, escreveria Eduardo Lourenço: “Escuro pode – e mesmo deve – ser lido como o roteiro lírico do nosso percurso histórico-mítico, e esfíngico, no Egipto iniciado, até à não menos esfíngica e pessoana visão da Europa, onde se suspende” (Lourenço 2014: 198-205). Desde sempre que ALA escreveu poemas com História dentro (veja-se, por ex., “Reais ausências”, de Epopeias), embora a partir de dado momento se verifique, como sustenta Vinicius Dantas, no Posfácio à edição brasileira de Vozes, uma intensificação da reescrita da história e da mitologia ocidentais, aliada a um recurso mais sistemático a estratégias dramáticas e dialógicas.

Textos há que parecem integrar experiências pessoais de viagens, como, por ex., Ara, “romance” publicado em 2013, lugar de perfeita confluência do lirismo e do modo narrativo (vencedor do prémio Prémio PEN de Narrativa da Associação Portuguesa de Escritores, 2014). O eixo estruturante dos fragmentos (amorosos) é uma viagem de comboio, o que poderia imprimir ao texto o movimento inerente a toda a narração, prestando-se ao relato de uma deslocação no espaço por entre serras e rio nortenhos, bem como à descrição da paisagem avistada. Mas a viagem factual de comboio (que a biografia confirma), como outras travessias reais ou/e fictícias anteriores, volver-se-á também aqui em viagem interna e em meditação sobre o Tempo e a Memória: “As coisas eram tantas e viver no comboio era vida de facto mental” (p. 12). Nenhum elemento intratextual nos permite localizar o rio ou identificar, linearmente, a voz narradora com a voz da autora empírica.

Em função da formação universitária e da sua paixão pela poesia, ALA era já uma poeta sem fronteiras e cosmopolita antes de se tornar viajante. Autores como Shakespeare, Blake, Emily Dickinson, Dante, Camões, Pessoa, Sá-Carneiro, são figuras tutelares da sua poética e da sua vida. A elas junta-se a Bíblia, “livro extraordinário” (repetia ALA), e central na sua poética, como bem demonstra Pedro Serra no exaustivo ensaio que acompanha a antologia poética El Excesso más Perfecto por ele organizada (cf. Serra, 2022).

Não poderemos, pois, imputar a tematização da Viagem (transversal aos livros de ALA) às experiências pessoais e empíricas de deslocação da escritora. ALA não viajou nem à Síria nem à Grécia para escrever sobre o drama dos refugiados e as suas trágicas travessias oceânicas nem circunscreveu a Viagem ao globo terrestre; de forma direta ou indireta, a sua poesia contempla, desde cedo, viagens interplanetárias, espaciais e ascensionais, como a viagem histórica à lua ou a ascensão poético-mítica dos anjos em A Escada de Jacob.

Ainda que alguns poemas de ALA tenham uma indexação espácio-temporal num lugar efetivamente visitado (Rhode Island, Açores, Londres, etc.) e os elementos autobiográficos sejam relevantes – vejam-se as dedicatórias e as datações –, há (apenas) uma Viagem – matricial – que atravessa a sua obra poética: aquela que fez aos nove anos, aquando da mudança do Sul para o Norte de Portugal. Como Paulo de Medeiros escreve, “[e]ven if on a small scale, that experience of dislocation can be seen as marking her presence in the world and her writing” (Medeiros 2016: 1).

Tal não significa afirmar a irrelevância na sua obra poética e vida das múltiplas viagens que mais tarde faria como escritora e que a levam a estar presente em eventos culturais onde Portugal e o mar foram o tema nuclear (Berlin 2008, ou Bogotá 2013). Há que considerar a porosidade dos corpos, do (seu) corpo ao mundo (de que ALA fala num depoimento de 2022; cf. Bibliografia), as repercussões, refrações ou traços indiretos na sua atividade poética, cultural e cívica dessas viagens, e, muito em particular, das que fez à América latina, de onde vinham, a seu ver (afirmava-o há décadas), as mais importantes vozes de renovação poética. Em várias ocasiões, ALA elogiou os ouvintes da poesia (de pessoas comuns e de multidões) – em festivais literários ao ar livre, na rua ou até num estádio de futebol, em que participou em vários países ibero-americanos. Era com emoção que se referia às pessoas anónimas que a interpelavam, chamando-a “poeta”, como se esse fosse o seu nome próprio.

Se essas vivências não se traduziram numa modificação notória da sua teoria de poesia ou na sua praxis – a sua obra é profundamente visual, mas desde sempre profundamente “sonora”, vocal, pois de muitas falas e diálogos feita, – é possível que a poética da convivialidade (poetas, mundos, tempos, sopros…) que é a de ALA e que a importância que sempre deu à comunicação, tivessem saído reforçadas. Assim como saiu reforçada dessas deslocações à América latina a sua convicção – desde sempre defendida – de que a poesia é, em primeiro lugar, ritmo, música, voz/es (desde “Ritmos”, de 1990, a “Identidade”, de 2021). No documentário Entre Dois Rios e Outras Noites, de Nuno Fonseca Santos, Nuno Carinhas destaca mesmo essa componente: “o prazer de Ala em ler”, “como se aquilo que escreve tivesse sido escrito através de uma elocução” (2014). Se ALA escrevia literalmente com o corpo – o tamborilar dos dedos numa mesa, os versos escritos no ar com a mão desenhando figuras e pés rítmicos –, a escritora-enquanto-leitora voraz de poesia volver-se-ia em performer de excelência – em virtude não só da sua vocação comunicativa, mas também da sua fluência em vários idiomas, da sua incomum memória literária e de um timbre de voz inconfundível. É neste quadro de escuta de poetas e do público, de comunicação intensa e de atenção à poesia de todo o mundo que poderemos situar o excelente programa de divulgação de todo um património poético mundial que levou a cabo, na RDP2, com Luís Caetano, em “O Som que os versos fazem ao abrir”.

A título de hipótese, poderemos também considerar que o impacto sobre a autora de eventos sobre a poesia em língua portuguesa, do encontro com pessoas de todos os lugares do planeta, e, sobretudo, com intelectuais e escritores brasileiros e de países africanos de língua portuguesa, tenha sido determinante para que esta poeta sem fronteiras, reflita mais vezes em “poemas-ensaio” sobre a História, sobre questões de identidade cultural, sobre a língua que se fala, sobre o que significa ser português ou portuguesa num mundo globalizado.

Se para ALA, a identidade era, inquestionavelmente, relacional e dinâmica, as viagens factuais e os contatos com pessoas e escritores de todo o mundo não poderiam ter deixado de intensificar os questionamentos de sempre sobre identidades culturais (cf., de 1990, “Ode à Diferença” e as comparações lúdicas entre portugueses e espanhóis). No poema “Existexuais definições”, num subtil diálogo com Pessoa, o sujeito poético interroga-se, “Mas o que quer dizer ser português? / É especificidade nossa aqui? / Lateralidade de rectângulo nosso? / Neurónio a desfazer-se rente ao mar? (…) Será ser portuguesa / tal como português: deslumbrante / e nacional?” (E Todavia 2015). E, no poema “A Mesa”, um poema a um tempo cósmico, ecológico e político, para o qual poderemos convocar a teoria de Homi Bhabha (Nation and Narration, 1990) de que as nações são narrações, o sujeito poético (um minúsculo insecto, ou ALA, diz: “A minha pátria / é esta sala que dá para a varanda, / e é também a varanda com as suas flores”, in Mundo 2021).

As grandes viagens não são as geográficas, mas as que se fazem na e com a poesia, como a própria Ana Luísa Amaral defendeu em 2010, na conferência de abertura do Colóquio Travessias Poéticas Brasil & Portugal (cf. infra), na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

 

Passagens

África do Sul, Alemanha, Argentina, Brasil, China, Colômbia, Espanha, EUA, França, Reino Unido, Indonésia, Marrocos, Polónia, Portugal, Rússia, Sérvia, Suécia…

 

Citações

TOPOGRAFIAS EM QUASE DICIONÁRIO

Reaprender o mundo
em prisma novo:
pequena bátega de sol a resolver-se
em cisne
sereia harmonizando o universo
Só o vento sucumbe
à demais luz
e só o vento,
como alaúde azul,
repete devagar os mesmos sons.

Não interessa onde estou,
não me faz falta um mapa
de viagem
(…)
(A Génese do Amor, 9)

 
Primeira voz De que falarás tu nestas folhas? Segunda voz. Não sei. Mas as coisas não giram ao nosso compasso; sei, pois, que não farei um diário, no sentido estrito do termo. (…) Também não farei romance: a própria ideia de criar uma história aterroriza-me, tal como a de lá pôr, por inerência, pessoas a falar sobre o que as rodeia, a debater estados de espírito (…). (p. 1)

 
Podia até fazer um esquema daquilo que quero dizer, do que não quero deixar de dizer: por exemplo, as coisas não vistas, mas que sustentaram o funcionamento desta viagem: o esforço sobre-humano dos fotógrafos, que se dividiram por três momentos; a equipa de filmagem que nos acompanhou. Carregar máquinas de filmar ou tantas máquinas de reproduzir as nossas caras, os nossos gestos, os nossos idiossincráticos desvios – só pode ser um acto de amor. (p. 2)

 
Momentos em que, da janela do comboio, não fora o compasso dos trilhos, era como navegar, caminhar sobre as águas rio abaixo. Um dia, quase do paladar de uma semana. Era tão longo o tempo de viagem, tão despropositado da distância, que chegar à estação ao fim da tarde não dizia de um dia de viagem.

Ou então um olhar
que muito se perdia
pelo rio. (p. 3)

 

E a vida lá ao fundo do tempo que faltava, a vida na estação ao fundo da viagem? Voltar a casa, entre outras casas colectiva e branda. Uma curta família. Mas o túnel vencia. Às vezes não (… ) Era assim a viagem. Revisitar olhares e sítios paralelos, que me parece já ter estado aqui, sei que não estive, mas este sítio

agora já sem rio e três meninas
voltando da escola. Nas mãos (ainda planas),
que a aprendizagem de serem circulares,
as rodas ou os dedos em afago,
pelo tempos e faz) caixilhos de madeira
delimitando estopa com bordados.

Trabalhos escolares e conversa inaudível da janela fechada. Sei que não estive, mas me parece já ter estado aqui. Entre uma dessas três, talvez o tema seja a escola, a minha infância sem estopa nem bordados (…) (p. 4)

 
5 Junho
12:30 (Hotel Alfa, Lisboa) Ainda não partimos, mas posso começar a escrever, citando, por exemplo, um poema meu que começa assim: “Começo da viagem: espremer como laranja esta hora tardia / sem olhos / mas com túneis, memória / confortável na paisagem / que é sempre a mesma, aos gomos variados: / tu, sem descrições maiores”. Acho que vou fazer deste poema uma espécie de ex-libris da viagem. Não é talvez o mais canónico citar-me, mas é tão aquilo que sinto, e este poema adequa-se tão bem a esta situação! Veremos. Depois, é-me poeticamente útil este poema, com esta ideia de viagem de comboio metafórica. Que é um poema de amor, embora não pareça. (…)

Ocidental será o meu olhar
que a ocidente ele nasceu,
mas onde se espraia junto a tanto?
O Oriente aguarda,
tão ao longe – (p. 6).
(Ana Luísa Amaral. Diário de Bordo (Expresso da Literatura))

 
“As coisas eram tantas e viver no comboio era vida de facto mental. Sem ninguém a seu lado, utensílios só seus sobre os assentos. Lápis, papel, os olhos sobre o rio, e às vezes esses túneis. Tão sedutores, simbólicos de vida, a fazer desejar divagações da psique, à Freud, ou outros que do rio não sabiam e de túneis, só histórias de divãs. (…) E a vida lá ao fundo do tempo que faltava, a vida na estação ao fundo da viagem? Voltar a casa, entre outras casas, colectiva e branda.Uma curta família. Mas o túnel vencia. (…)
Serenamente, alguma coisa lembro. Japoneiras e túneis só ideário imaginado; o mesmo se passando com comboios e divãs. E todavia, esses quatro pólos tão dispersos bem podiam ter sido pontos cardeais de história a sério.” (ARA 2013: 12,15)

 
“O mapa de viagem de que então falava [“Topografias em quase Dicionário”, de A Génese do Amor], vejo-o agora, talvez melhor à distância de uns anos e alguns livros, sendo o mapa da poesia, era também o do corpo e do amor, ou seja, o da vida, transposta em poesia. Embora o futuro nos esteja sempre presente como um mar aberto, como prescindir-se de um mapa de viagem – a não ser no poema? (…)
Talvez seja isso a escrita de um poema: uma travessia, muitas vezes sem rota. Feita de marcas tipográficas, e de algumas topografias. Ou, pensando no conceito de “wilderness”, que é de inspiração bíblica e conceito fulcral para a construção do imaginário americano, uma espécie de travessia do deserto, em que aquilo com que nos deparamos é ao mesmo tempo sinónimo de perigo e de sedução, de ameaça e promessa. Uma zona selvagem, mas convocada também, a partir da vida. “O que (…) falha ou finda”, esse estádio semelhante a “um terraço sobre uma coisa ainda”. Essa “coisa”, a “que é linda”, no dizer de Pessoa, parece-me ser a travessia infinita e contínua entre a vida e a palavra – porque é a vida não vivenciada, mas que não deixa de ser vida.” (“Topografias em (quase) Dicionário: Rotas e travessias”, Amaral 2017: 244)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

AMARAL, Ana Luísa (1990), Minha Senhora de Quê, Coimbra, Fora do Texto.
—- (1993), Coisas de Partir, Coimbra, Fora do Texto.
—- (1994), Epopeias, Coimbra, Fora do Texto.
—- (1995), E Muitos Os Caminhos, Porto, Poetas de Letras.
—- (1998), Às Vezes o Paraíso, Lisboa, Quetzal.
—- (2000), Imagens, Porto, Campo das Letras.
—- (2001), “Logbuch”, trad. Sarita Brandt, Europaexpress, Ein Literarisches Reisebuch, Eichborb, Berlin, pp. 242-250.
—- (2002), Imagias, Lisboa, Gótica.
—- (2003), A Arte de ser Tigre, Lisboa, Gótica.
—- (2005), A Génese do Amor, Porto, Campo das Letras.
—- (2007), Entre Dois Rios e Outras Noites, Porto, Campo das Letras.
—- (2010), Inversos, Poesia 1990-2010, Lisboa, Dom Quixote.
—- (2013), Ara, Lisboa, Sextante.
—- (2014), Escuro, Lisboa, Assírio & Alvim.
—- (2015), E Todavia, Lisboa, Assírio & Alvim.
—- (2017), Arder a Palavra e Outros Incêndios, Lisboa,Relógio d´Água.
—– (s/d), “Topografias em (quase) Dicionário: Rotas e Travessias”, in Arder a Palavra e outros Incêndios, Lisboa, Relógio d´Água, pp. 243-260.
—- (2021), Mundo, Lisboa, Assírio & Alvim.
—- (2022), “ANA LUÍSA AMARAL. “O CORPO É POROSO AO MUNDO, in Mulheres, Artes e Ditadura, Diálogos Interartísticos e Narrativas da Memória (org. por Ana Gabriela et alli), V. N. de Famalicão, Húmus, pp. 171-176.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

BHABHA, Homi, (1990), Nation and Narration, London, Routledge.
COELHO, Eduardo Prado (2000), “Aceitar as imagens como são”, Público, Suplemento “Leituras”, 4 de Novembro, p. 8.
COELHO, Joaquim-Francisco (2000), “Poesia no paraíso [crítica a Às vezes o paraíso de Ana Luísa Amaral]” in Colóquio/Letras – Livros sobre a Mesa, n.º 155/156, Jan. 2000, p. 399.
DANTAS, Vinicius (2013), “Posfácio” a Vozes, S. Paulo, Iluminura, pp. 99- 114.
DIOGO, Américo António Lindeza (2002, Recensão Crítica a Imagens, Colóquio/Letras, 159-160 (Jan.-Junho), pp. 451-455.
—- (1998), “Poesia e Justificação”, sobre Às Vezes o Paraíso de Ana Luísa Amaral. Ciberkiosk. Letras, Artes, Espectáculos, Sociedade.
DUMAS, Catherine (2002), “L’écho comme pratique allusive: pour une poétique de l’entre-deux dans la poésie de Ana Luísa Amaral”, in L’Allusion en Poesie, Études Reunies par Jacques Lajarrige et Christian Moucelet (Centre de Recherches sur les littératures modernes et contemporaines), Presses Universitaires Blaise Pascal, Clermont-Ferrand, pp. 421-432.
FERREIRA, Alexandra (2022), “Entre mitos e vozes: Ecos de Fernando Pessoa em Escuro, de Ana Luísa Amaral”, Dissertação de Mestrado, Porto, FLUP, Ed. de Autora.
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LIMA, Isabel Pires de (2001), “Concertos/desconsertos: arte poética e busca do sujeito na poesia de Ana Luísa Amaral”, Identidades no Feminino. Cadernos de Literatura Comparada, n.º 2, pp. 49-61.
LOPES, Silvina Rodrigues (1993), “A proximidade do caos”, Público, suplemento “Leituras”, 14 de Maio, p. 7.
MARTELO, Rosa Maria (2008), “Ana Luísa Amaral – Entre dois rios e outras noites”, Colóquio/Letras, Fundação Calouste Gulbenkian, in Recensões Críticas, 18 Maio.
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—- (1998), “Paraíso de Poeta – Ana Luísa Amaral, de Minha Senhora de Quê a Às Vezes o Paraíso”, in Tabacaria 6 (Verão 1998), pp. 63-69.
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SARAIVA, Arnaldo (1991), “Minha Senhora de Quê”, in Boletim da Universidade do Porto, 4/5 de Janeiro, p. 49.
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SILVESTRE, Osvaldo Manuel (2001), “Imagens (d)e bastidores, ou ‘as labaredas calmas’ do revisionismo de Ana Luísa Amaral”, in Inimigo Rumor (orgs. Carlito Azevedo, Américo Lindeza Diogo), Rio de Janeiro, Lisboa, Cotovia, Viveiros de Castro Editora, n.º 11 (2.º semestre), pp. 63-70.
— (1998),“Recordações da Casa Amarela – A Poesia de Ana Luísa Amaral”, in Relâmpago, n.º 3, 10, pp. 37-57.
 

Maria de Lurdes Sampaio
(parte I – 16.11.2011
parte II – 16.11.2023)