Costa, Maria Velho da

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Costa, Maria Velho da

(1938)

Desde a coletânea de contos O Lugar Comum, publicado em 1966, a produção de Maria Velho da Costa tem vindo a repartir-se por diferentes áreas: crónica, ficção, teatro, escrita argumentista e até lírica, de que são exemplos Da Rosa Fixa e Corpo Verde. O seu trabalho literário atesta uma observação e escuta do mundo e das várias artes, de tal forma que o seu trabalho tem vindo a constituir-se como plataforma de diálogo interartístico, tal é o atravessamento de referências a que nele se assiste.

A experiência da “passagem de estar” ou dos paradeiros temporários de Maria Velho da Costa (para importar a expressão aplicada à irrequieta personagem de Sara, em Missa in albis), fez-se de uma passagem de um mês pela Guiné Bissau (em 1973), de uma estada de sensivelmente seis anos em Londres, como Leitora no Departamento de Literatura Portuguesa do King’s College na década de oitenta do século passado (os primeiros dois anos coincidindo com a escrita das crónicas para A Capital que mais tarde constituiriam O Mapa Cor de Rosa – “Cartas de Londres”), e de uma outra de dois anos (1988 a 1990) em Cabo Verde, enquanto adida cultural junto da Embaixada Portuguesa, mas nem por isso a temática da desterritorialização deixa de constituir um tópico da sua obra, quer ao nível da cronística (sobretudo em O Mapa Cor de Rosa), quer da ficção, pelo que essa circunstância comporta de abertura à autorreflexividade e ao tratamento da estranheza, do desvio e de mundos outros que se tornam apreensíveis através de uma prática tenaz do descentramento.

São várias as referências no Mapa à agudeza da perceção (embora a própria a reconheça por vezes distorcida) que a sua condição de “visitante” em Londres comporta, seja relativamente à consciência da latinidade, em contraponto com a sensibilidade e a forma de estar anglo-saxónica, seja relativamente à consciência da sua relação ambígua com a pátria (Costa, 1984: 58), às vezes eivada de uma tristeza magoada pela constatação de uma certa mediocridade cultural e da mesquinhez nas relações humanas dentro de alguns círculos sociais ou literários.

É pelo exercício da escrita em língua materna que a autora entretém a ausência durante os primeiros anos em Londres, sempre confiante de que uma deriva de território pode sempre compensar-se pelo mel do verbo matricial. Porque se à deslocação física está normalmente inerente a consciencialização da distância enquanto elemento constrangedor, esta parece não representar um problema relevante. A ausência, essa sim, é um fator doloroso que MVC trabalha nas “Cartas de Londres” e nas reflexões de algumas das suas figuras ficcionais.

É sobretudo da ausência da língua materna, do estar-se “mergulhado” nela (idem: 71) que emerge a sensação do silêncio que dispersa e constrange, e se investe a atividade da escrita de um poder compensatório (idem: 16). Mas é também a interiorização desse hiato linguístico e desse “Já não estou lá, não estou aqui” (ibidem) que potencia em MVC a prática quase compulsiva do “desvio” e do “desvario” que constitui a sua estratégia de abordagem do “jogo do mundo” (Costa, 1991: 17), numa prática invulgar e assumida da dissonância, de que a generalidade das suas obras fornece cabal reportório.

A perceção/construção/reconfiguração identitária facultada pelo confronto de mundos distanciados – e não apenas geograficamente – é alargada às personagens da sua ficção: na figura de Elisa e do seu encontro com Ângelo, o mulato que conhece no jardim zoológico (Casas Pardas); em Lima, com a mulata Laura, conhecida no contexto de guerra colonial (Lucialima); em Orlando, com as roupagens linguísticas e comportamentais de que se transveste (Irene ou o contrato social) ou em Myra, cortada do seu Leste natal e a tentar sobreviver num Portugal de seres agrestes (Myra).

O exercício da passagem ao outro (geografia, cultura, raça, cor, língua, estado mental) fez desta escritora um “cedro habitadíssimo” (Costa, 1979: 345) e determinou a mestiçagem da sua escrita, quer em termos de perspetivas do mundo, quer em termos linguísticos ou artísticos, favorecendo nas suas obras trânsitos múltiplos que se erigem em práticas desterritorializadas e desterritorializantes. Por isso, o texto de Maria Velho da Costa não é um lugar estável, nem facilmente mapeável; é antes um interface múltiplo onde outros textos se cruzam e muitas línguas e vozes irrompem e se disseminam, num crioulo galáctico que transforma o texto num chão movediço, às vezes íngreme e disruptivo, mas sempre em diálogo com o mundo. É sobretudo este apego a uma mestiçagem linguística e cultural que melhor define o descentramento de Maria Velho da Costa e a forma como nela se consubstancia e se revela fecunda a experiência da travessia.

O trânsito literário e metaliterário, artístico e linguístico (também às vezes psicótico) que circula nas suas obras nasce de experiências múltiplas de passagem e oferece-se ele próprio também em desafio de deslocamento e de diálogos além texto. Porque o conceito de passagem é tão fulcral na obra de MVC, a paleta lexical que o sustenta é vasta e as suas personagens raramente têm moradas, mas apenas paradeiros, como Sara (Missa in albis), são navegantes de periferias, como Elisa (Casas Pardas), ou são seres intersticiais, evanescentes, a meio caminho entre o humano e o animal (Myra e Rambo, em Myra), ou entre o humano e o sobrenatural, o mágico ou o onírico (Lucinha e a fada Éukié, em Lucialima; Ângelo, em Casas Pardas; Orlando e a casa feérica em Myra; o anjo e a dama na mata nos contos de Dores…). Também por isso, para facilitar travessias, muitas vezes a autora se distancia do seu texto, abdicando do poder sobre ele, por obra de um processo alucinatório que autonomiza vozes e faz acontecer casos, em deslocamentos múltiplos para áreas tão díspares como o universo psicótico e as associações de sabor lacaniano, ou os estados dopados, motivados pela embriaguez ou pelas drogas.

Opera-se, assim, uma escrita desviada e a construção de mundos movediços, frequentemente insituáveis, a não ser nos domínios da alucinação, do subconsciente, do inverosímil, ou nessa zona de fronteira que caracteriza o estado de latência, zona de indeterminação e de vizinhança que potencia o devir, esse “être-entre, passer entre, intermezzo”, a simbiose rizomática onde nenhuma dimensão é definitiva, como explicaram Deleuze e Guattari (1980:339).

 

Passagens

Portugal, Guiné, Londres, Cabo Verde.

 

Citações

Sempre amei a Inglaterra. Se é que se pode amar outro país, ou até o próprio, sempre projecção tão mais ou menos belamente inventada de um reconhecido. (O Mapa Cor de Rosa: 18)

O Rapaz Jornalista, que era o dono da casa e que continuava ali no centro da cozinha a mexer o tacho, é que era americano. (…) Pode que fosse judeu. Quando se vem de Portugal, não se sabe assim distinguir do pé para a mão. Nem parece necessário. Aqui, faz parte das Evidências. Como as evidências de uma outra cultura também se aprendem com a língua que se fala e que se ouve (gozando, sofrendo ou sofreando intimamente outra), não me parece que fosse judeu – não parecia logo inteligente. Nem era. (idem: 31)

Há quem diga que é muito grave para aqueles que de alguma maneira fizeram da linguagem o seu instrumento de trabalho, esse tropeçar no significante próprio como se ele fosse novidade, trapo despido do corpo significado de que deveria ser pele. Há quem diga que é mau para o escritor estar longe da pátria. Não sei. Às vezes vai-se pela rua, ao fim de uns meses de ausência dentro de uma outra língua, e dá-se pelo facto de que aquele palrar íntimo, que é simultaneamente percepção sensorial mais ou menos nominal e discurso sobre ela, está – pelo menos invadido, parabilingue. Por mim, devo dizer-lhes que não me assusta muito, esse babel achado na mente. Mas que me dá pena, como algo de que tenho que desviar a vista, o atropelo linguístico de filhos de emigrantes, ou o de emigrados de longa data, isso dá. Ver como a língua materna não é constitutiva de uma linguagem, de uma consciência, que se não fala a si mesma, ou porque é muito jovem e sujeita a outras propostas de falar-se, ou porque nunca se falou muito, devorada a re-flexão, o dobrar-se sobre si mesmo, pelos actos mais prementes da sobrevivência e da necessidade. (idem: 71-72)

Estar longe do chão onde se botou raízes e onde se afinaram as folhas, é violência, é carência. Que distorce a percepção, ainda que a afine. A nossa cultura deve muito a viajantes, a nossa democracia a degredados, a nossa economia a emigrantes. (idem: 144)

Não volte, dizia-me o Carlos de Oliveira, Espero que não volte, foi a última coisa que me disse. Meu filho escreve-me em português, de Lisboa, de lisboeta. Talvez venha amanhã uma aberta de sol, neste trabalho de penas que foi este fim-de-semana enxovalhado do tempo e de um texto velhaco publicado no Expresso sobre Jorge de Sena. (idem: 177-178)

Quanto devemos da percepção e receptividade aos estímulos do onde estamos, ao com quem estamos, em que língua estamos, bem sei. Em Londres, em duas línguas, isso digo, muito mais plenamente, portuguesa. (idem: 196)

Porque se escreve sempre em terra alheia, em língua que não é mãe, assim de entre amante e madrasta. Alucinando vozes e casos que passam a ser ouvidas e acontecidos. Às vezes com tal vigor que farão e desfarão quem ainda nem nasceu. Porquê, para quê, para quem? A resposta talvez seja antes – como. Como quem se alimenta do que derrama, e os fluidos do corpo são tantos, da hemorragia à urina para fazer leites, a metáfora escorre. (idem: 139)

(…) a língua é uma passagem para um outro modo de ser e estar. (…) Não é a minha cidade, mas dificilmente adoptaria outra para uma tão íntima passagem de estar. (idem: 248-249)

Myra lembrou-se da neve em cima dos telhados, de ouro e loiça. E os blinis que não tinham nome nesta terra. Ao princípio nada tinha nome. (Myra: 13)

– Tudo drêto, nha patrõzinh?
E isso Myra entendeu, ouvindo o mel ucraniano por debaixo da língua preta. Aprende-se. (idem: 96)

Myra esteve tentada a revelar-se, mas resistiu. Ainda não lhe tinha dito que queria ir para casa e não sabia onde era. A Leste, a Moscovo, a Moscovo, como as irmãs tristes de Tchekov. Mas não sabia, de certeza certa, se Gabriel Rolando seria isso, ou só um Sul de passagem. Di passagi, como eles diziam na língua deles. (idem: 118)

(…) As fotografias amedrontam-me. É sobre esse efeito que tenho de trabalhar. Tanto mais que não afectam assim outros olhares que as têm visto. São belas. São. Mas o que é esconjuro de uns ou do próprio autor (Auctor, actor, lembras-te? tão mais verdade para a fotografia que é um acto montado, outrora literalmente em tripé) pode ser tormenta de outros. (Das Áfricas: 9)

(…) A imagem foi captada. Cativa, em mais de um sentido. Mas nestas é como se não tivesse lá estado ninguém vivo, de viva voz. É essa contradição, essa captura do silêncio, ou do silenciado, que fere a minha vista. Ouvida. (ibidem)

Trabalhar o desvio, acaso o desvario, dentro do jogo do mundo. (idem: 17)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

COSTA, Maria Velho da
—- (1979), Casas Pardas, Lisboa, Moraes Editores, p. 244.
—- (1983), Lúcialima, Lisboa, Edições “O Jornal”, p. 162.
—- (1984), O Mapa Cor de Rosa, Lisboa, Publicações D. Quixote, p.139.
—- (1988), Missa in albis, Lisboa, Publicações D. Quixote, p. 347.
—- (1991) “Onze da noite”, in Das Áfricas, texto para fotografias de José Afonso Furtado, tradução para inglês de João Gomes Cravinho, Lisboa, Difusão Cultural, p. 17.
—- (1994), Dores, Lisboa, Publicações D. Quixote.
—- (2001), Irene ou o contrato social, Lisboa, Publicações D. Quixote.
—- (2008), Myra, Lisboa, Assírio & Alvim.
CARVALHO, Armando Silva, e COSTA Maria Velho da (2006), O Livro do Meio, Lisboa, Editorial Caminho.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

COUTINHO Mendes, Ana Paula (2010), “Literatura transitiva e seres errantes: configurações exílicas em Myra de Maria Velho da Costa e Les Yeux Baissés de Tahar Bem Jelloun”, Lição apresentada à Faculdade de Letras do Porto no âmbito de Provas de Agregação.
—- (2011), “Outras ‘Cartas de Londres’: O Mapa Cor de Rosa, de Maria Velho da Costa” (Contributos para uma cartografia enunciativa de escritores em “passagem de estar”), “Deslocações Criativas”, Cadernos de Literatura Comparada, nº 24-25, Porto, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Edições Afrontamento, pp. 47-67.
—- (2012), “Quando as casas não são casas, mas complexos lugares de deslocamentos: Maria Velho da Costa e o ser de passagem”, in Falemos de Casas, Homenagem a Maria Velho da Costa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 14 de dezembro (texto ainda inédito).
DELEUZE, Gilles, GUATTARI Félix (1980), Mille Plateaux, Paris, Les Éditions de Minuit.
DIAS, Maria José Carneiro (2001), “Maria Velho da Costa : uma escrita que se faz “barragem contra a voz passiva”, texto apresentado ao colóquio Por prisão o infinito: censuras e liberdade na literatura, realizado nos dias 26 e 27 de setembro de 2001, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
—- (2014) Maria Velho da Costa – uma poética da au(c)toria, tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto no dia 4 de abril de 2014.
FERNANDES, Ângela (2002), “«Nem todos somos humanos»: os modelos de construção pessoal em Missa in Albis, de Maria Velho da Costa”, comunicação inédita proferida em 1 de julho, no VII Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, Brow University, Providence, Rhode Island, EUA.
MAGALHÃES, Isabel Allegro (2005), “Errância e moradas: Irene ou o contrato social, de Maria Velho da Costa”, in O Romance Português pós 25 de Abril [PETROV, Petar, org.], Lisboa, Roma Editora, pp. 273-285.
MARTINHO, Fernando J. B. (1992), “Olhares convergentes” [Recensão crítica a Das Áfricas, de Maria Velho da Costa e José Afonso Furtado], Colóquio/Letras, nº 125/126 (julho), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 260.
SEIXO, Maria Alzira (1984) “O outro lado da ficção: diário, crónica, memórias, etc.: a propósito de O Candidato de Luciféci. Diário III (1977-1981), de João Palma-Ferreira e de O Mapa Cor de Rosa – Cartas de Londres, de Maria Velho da Costa”, Colóquio/Letras, nº 82 (novembro), pp. 76-81. [Este artigo também foi publicado in A Palavra do Romance: Ensaios de Genealogia e Análise. Livros Horizonte, Lisboa, 1986, pp. 160-181]

Maria José Carneiro Dias (2015/08/04)