(1950- )
Luís Filipe Carrilho de Castro Mendes faz parte da reconhecida lista, nacional e internacional, de diplomatas-escritores, ou seja, daqueles que constituem «um estranho animal de duas cabeças», como o próprio autor lembra, citando outro colega de igual condição (Mendes 2014).
Tendo iniciado a actividade literária muito antes de ser diplomata, nas páginas do Diário de Lisboa-Juvenil e do suplemento literário do República, tão precoces e intensas foram para si a leitura e a escrita, não é de estranhar que seja como poeta e diplomata que, antes de mais, se reconheça (Mendes 2021b). Não obstante, a carreira diplomática que abraçou em 1975, no âmbito da qual passaria a deslocar-se frequentemente e a viver em cidades tão diversas como Luanda, Madrid, Nova Deli, Budapeste, Rio de Janeiro, Paris ou Estrasburgo, levá-lo-ia a conciliar os dois ofícios da palavra, ao longo de quase 40 anos, sempre com elevada sensibilidade e mestria, tal como lhe foi reconhecido pelo júri do Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes APE/ Câmara Municipal de Amarante, que Luís Filipe Castro Mendes recebeu em 2019 pelo conjunto da sua obra editada em Poemas Reunidos (2018).
As mobilidades cíclicas, o “ser de passagem” com passaporte diferenciado, a expatriação legal e o exílio íntimo tornaram-se naturalmente forças motrizes da sua poesia, que não apenas na sequência de poemas “Canções do Exílio”, dedicados sucessivamente a Angola, Espanha, Hungria e Brasil, que o poeta viria a incluir em Lendas da Índia (2011). Essa condição de transitoriedade reveste-se de uma inquietação constante, que faz com que o poeta não apenas se demarque do estereótipo de diplomata versejador (Os Dias Inventados, 457), como também convoque referências várias aos lugares por onde viajou e/ou onde lhe aconteceu viver, embora sempre buriladas por um intenso e auto-reflectido trabalho da memória.
Por conseguinte, sem nunca ter enveredado por uma poesia confessional que fosse simulacro de diário de bordo ou de livro de memórias, Luís Castro Mendes não escamoteia que “O verso vem da vida e à vida torna” (Viagem de Inverno, 154), ou seja, assume uma poesia que se abre ao plano existencial como motor de arranque e horizonte, ao invés de outras propostas poéticas de deliberada impermeabilidade ao mundo empírico e ao quotidiano.
Se é verdade que topónimos e outras circunstâncias geolocalizadas se tornaram mais comuns nos poemas publicados já neste século, não é menos certo que a vasta cultura literária que sempre perpassa pelas evocações, diálogos e réplicas deste poeta, cedo lhe incutiu um espírito de viagem, tanto no espaço como no tempo.
No domínio dos poemas mais diretamente marcados pela sua expatriação diplomática, são particularmente marcantes aqueles que remetem para o Brasil, sobretudo pelo que deixam entender de uma relação intensa e complexa, claramente assente na experiência individual e diferenciada de um indivíduo português a braços com a História secular de afinidades e resistências (uma “raiva feita amor”) entre Brasil e Portugal. O poeta consegue traduzir com particular argúcia o misto de familiaridade e estranheza que um português sente no Brasil (ou um brasileiro sente em Portugal), quando dedica às suas vivências do outro lado do Atlântico, algumas réplicas, directas ou indirectas, à conhecida e matricial “Canção do Exílio”, do poeta brasileiro Gonçalves Dias, que, por razões académicas, conheceu o desterro no Portugal da primeira metade de Oitocentos.
Numa breve “Apostila Pós-Colonial”, o autor de Os dias inventados aproveita para expor, por um lado, a íntima sensação de o Brasil não ser “o seu lugar”, e isso independentemente de complexos imperiais, lusotropicais ou pós-coloniais, com os quais, aliás, lida com subtil ironia, e, por outro, a impossibilidade de se sentir desligado desse país-continente:
Mas se sinto claramente que não sou destas terras, destas águas,
que o meu lugar de verdade é longe daqui
por que razão não consigo dizer-te que somos estranhos? (Os dias inventados, 441)
E noutro poema, a que dará sugestivamente o título de “Nova Canção do Exílio”, continua a interrogar(-se): Esta terra está-me dizendo com infinita doçura: / não, tu não és daqui. Quando o entenderás? / Quando aprenderás que só no húmido respirar das mangueiras/saberás se és bem-vindo?” (idem: 442)
Assim, em vez de simples “poemas-postais” de rendição aos encantos tropicais, deparamo-nos com uma despedida permanente do equívoco da “irmandade“ entre Portugal e Brasil, como se fosse uma relação natural entre iguais, sem arestas na língua e nas expectativas mútuas. Dentre a sequência das Canções do Exílio dedicadas a alguns dos países onde viveu, aquela que é dedicada ao Brasil, não deixa margem para dúvidas quanto à dificuldade de traduzir por palavras uma relação que, sendo intensa, visceral e até mesmo paradoxal, implica ultrapassá-las:
Ó mais difícil para mim
Como falar de quem amamos por não nos amar
quando mais nos ama?
Nunca saímos dessa encabulação,
antes de uma boa gargalhada, de um chope ou de uma cachaça:
antes de chegarmos a entender que rir é toda a metafísica em ato. (Lendas da Índia, 606)
Merecem também especial referência os poemas dedicados, em Modos de Música (1996), às “Áfricas” (lusófonas), pluralidades de um Império passado, mais desconhecido que sonhado, com cujos contornos reais o olhar pós-colonial do poeta se confronta décadas depois das Independências. Por exemplo, num poema expressamente datado e localizado na Ilha de Moçambique, o poeta acaba por reconhecer como também seu o país de outro, não exactamente no sentido de expressão de propriedade, mas como reconhecimento íntimo da afinidade de um território e de toda a sua história:
[…]
Para mim teu país no mapa era
uma confusa mancha de incerteza.
A guerra, a solidão, fim do Império,
vieram dar o rosto da tragédia
ao que eu nunca sonhara como história
que fosse pessoal. Coube-nos todo
este peso da História e esta surpresa
de te reconhecer como eu respiro. (Modos de Música, 264)
Por sua vez, a guerra civil em Angola (1975-2002) surge evocada em “Dois poemas para Angola”, expressamente datados de agosto de 1996, e que carregavam consigo questões angustiadas sobre um futuro de paz, que, à data, estava ainda longe de ser vislumbrado:
[…]
Terá ela outro trilho iluminado
Onde arrastar por meses a miséria?
Ou irá ter a fome do seu lado
A corroer o interior da terra? (idem: 266)
Dois anos mais tarde, no livro intitulado Outras Canções (1998), mais poemas (“Luanda Revisitada” e “Aves em Luanda”) seriam também dedicados à capital angolana, onde Luís Filipe Castro Mendes havia iniciado as funções diplomáticas, num período particularmente difícil das relações entre Portugal e aquele país recém-independente.
Entretanto, a deslocação que ocupa maior destaque na sua obra poética é, sem dúvida, a que o poeta realizou para o extremo Oriente, mais concretamente para Nova Deli, onde, entre 2007 e 2011, Luís Filipe Castro Mendes exerceu o cargo de Embaixador de Portugal na Índia. Terminada a missão, e apesar de lhe ter dedicado, quase integralmente, um livro de poemas intitulado Lendas da Índia (2011), num deliberado aceno à obra homónima do autor quinhentista Gaspar Correia, autor da principal obra sobre os inícios da presença portuguesa naquele subcontinente, o poeta-diplomata não abdica de um pudor expresso para escrever sobre aquilo que “mal entrevemos” , tal como se pode ler na nota de apresentação autoral do livro, razão pela qual resolve chamar-lhe «tão-só lendas: lembrança e memória dos bens e males passados. (Lendas Índia, 501), dando assim de novo realce ao fundamento experiencial da sua escrita, e ao paradoxo do viajante de que ela se nutre, ao ver-se impedida de dizer um adeus final aos lugares por onde aquele passou.
Em Lendas da Índia, encontra-se vários esboços de narrativas onde a revisitação de factos e lugares dos Descobrimentos é conjugada com o distanciamento próprio de uma reflexão melancólica, embora não nostálgica, quando muito irónica, tal como acontece nos poemas “Calicute: aqui desembarcou Vasco da Gama”, “A Camilo Pessanha, passando em Jaipur”, “Angkor, uma Sequência – 1” ou “Um Orientalista confessa-se”. À sempre presente memória literária cabe assegurar um sentimento de unidade na Humanidade, apesar das formas de diversidade, e até de indisfarçável estranheza, de que aquela se reveste. Nos mais diferentes e longínquos espaços, a memória poética transfigura a experiência do instante, impregna a realidade de um sentido suplementar que não destoa porque acende o invisível, como naquela ocasião em que, nas margens do Ganges, Luís Filipe Castro Mendes lembra um verso de Jorge de Sena, para concluir: “São momentos em que entendemos que somos da mesma gente,/ neste país de tão diversa gente…/ Mas só porque uma luz se acendeu na margem do Ganges/ entre Calcutá e Belur – uma pequena luz vitoriosa!” (Lendas da Índia, 510)
Talvez este livro dedicado à experiência da Índia não escape completamente àquilo que Edward Said denunciou como o mito ocidental do Oriente, ou orientalismo, mas simplesmente porque existem limites de intercompreensão difíceis de superar, e que exigem sempre (alguma) reciprocidade. Ora, para este poeta, e apesar de ter vivido na Índia, esta continua a ser “A Medusa Índia”, que tal como a divindade mitológica paralisa, à força da sua metamorfose e profusão. Os desabafos do poeta não deixam, porém, transparecer quaisquer sinais de repulsa ou de terror, apenas uma certa melancolia, uma vez que, quando chegou à India, já era tarde demais, do ponto de vista pessoal e colectivo, tornando por isso mais reduzida a disponibilidade para um encontro de reconhecimento. Restar-lhe-ia apenas o sinal obsessivo da incapacidade de apreensão:
Quando eu cheguei a ti, era tão tarde:
o mundo meio percorrido, a tua estranheza longe
das minhas interrogações…
Agora és a minha obsessão,
o enigma que eu não consigo decifrar,
a Esfinge que está entre mim e essa parte de mim
que passou a pertencer-te,
todas as perguntas para que não tenho resposta.
Medusa,
só de olhar para ti
as palavras secam
no seu deserto… (Lendas da Índia, 624)
No quadro geral da poesia deste autor, o “regresso” constituiu sempre um tópico recorrente, circunstância a que também não será alheia a sua vivência diplomática, como, aliás, já foi apontado (Júdice 2012: 227). Contudo, nos dois últimos livros publicados, Outro Ulisses regressa a Casa (2016) e Voltar (2021), esse ressurgimento ganha maior consistência simbólica ao adoptar a figura arquetípica de Ulisses como alter ego do poeta no seu regresso à pátria, finda a carreira diplomática do autor que, em 2016, regressou a Portugal para abraçar outra missão política – a de Ministro da Cultura – cargo que ocuparia até 2018. Por essa altura, irá começar a manifestar-se, de forma mais vincada, outra forma de exílio na sua poesia, desta feita, um exílio interior que tem a ver não apenas com o distanciamento, se não mesmo estranheza, com que o poeta vê alguns sítios que conheceu no passado, e por excelência o lugar e comunidade de origem, como também com a forma «desfamiliarizada” como é visto pelos seus concidadãos.
No contexto duma reescrita muito íntima e coloquial do percurso epopeico de Ulisses, Luís Filipe Castro Mendes tem dedicado vários poemas a Ítaca, figura pagã da Terra Prometida, o que não pode deixar de ser interpretado como um sinal da atenção que tem merecido a este autor a problemática do regresso, enquanto contraponto menos explorado da(s) partida(s). Dentre esses poemas, existe um, não publicado (ainda) em livro, mas que integra as publicações no blogue que o autor animou durante uma década, com o aventureiro nome de “Tintim no Tibete”. Terminar aqui com este poema significa realçar, mais uma vez, a estreita conexão entre dois ofícios na obra deste autor, além de apontar para uma outra tensão estruturante que tem que ver com a relação com a pátria por parte de todo aquele que parte, voluntária ou involuntariamente:
Ítaca
É verdade que nunca saí de Ítaca:
sou um funcionário cansado, à beira da reforma,
que andou de país em país, sem nunca ter podido fugir
dos corredores e das intrigas dos pretendentes.
Napoleão (excusez du peu…)
em todas as suas campanhas, do Egipto a Waterloo,
fazia cada dia a mesma pergunta: Que dirá Paris?
Intitular-me Ulisses foi apenas uma liberdade,
diria mesmo uma licença,
que a distraída pátria me permitiu. (http://timtimnotibet.blogspot.com/ [21 de janeiro de 2016] consultado em 20 de maio de 2021)
Passagens
Portugal, Angola, Brasil, Índia, Hungria, França, Alemanha
Citações
AVES EM LUANDA
Garças no meio do lixo: breves, esguias,
buscando que comer; aves de prumo
a debicar dejetos.
Se levantam seu voo em leve bando,
resta-nos só o estertor do lixo
a desfazer-se ao sol. (Outras Canções, 328)
O CORCOVADO DE VIEIRA DA SILVA
Foi aqui. Sempre nos soubemos exilados
e os rostos colados à janela refletiam uma alegria lúgubre,
grande e escondida como o desistir da felicidade.
Porque nós não prometemos a ninguém a felicidade,
Trabalhámos apenas no que sabíamos fazer. (Os Dias Inventados, 436)
AS CIDADES EM QUE VIVO
[…]
Ou virá já do Rio de Janeiro esta criança que bate à janela do meu carro e me pede dinheiro por uma boneca esfarrapada que finge vender? Deixo-me arrastar num sonho acordado para a cidade do mundo onde mais intensamente vivi. O risco agora é deixar a escrita passar para o lado do confessional, o mundo dos afectos torna-se mais denso e a história pessoal impõe os seus ritmos e metros, dificulta-me a máscara ao me abrir ao riso… Mas de você, Rio de Janeiro, eu já me despedi. Escrevi mesmo dois livros para você, eu sei que não deu por nada, mas deixe para lá, ninguém mais deu…
Recordar o Rio? Eu não recordo nada. Sou parte dessa corrente que atravessa a minha vida, como o rio do Paulinho da Viola, e tudo de que é feito o Rio está presente em mim como coisa minha, feita intimidade ou mania, eu sou também daí. Mesmo que vocês não queiram. (Mendes 2009: 204)
IMPRESSÕES DE BENARÉS
Fomos habituados a identificar a religião
com o nojo do mundo
ou com a decência celibatária da melancolia:
em Benarés entendi que a religião pode ser alegria,
violenta alegria e desafio de estar vivo
contra todas as servidões” (Lendas da Índia, 590)
UMA INFÂNCIA EM DELI (2)
E os portugueses, sabes,
Eram aquela imagem de um homem de barbas compridas
Com um chapéu bicudo,
Que abria no nosso manual de História o capítulo chamado
«A era de Gama».
(Já não está na moda!) (Lendas da Índia, 622)
DANS LE PORT D’AMSTERDAM
Anoitece no porto de Amesterdão.
Eu nunca sei ao certo onde fui feliz,
mas sei onde me sinto livre:
nas cidades onde não tenho história,
onde nada de mim deixei,
onde uma rua é apenas uma rua e não um encontro antigo,
(…) (A Misericórdia dos Mercados, 690)
PARIS REAPRENDIDO
Desconfio sempre de ti, Paris.
A beleza que imprimes nas coisas não é leve, é sinuosa,
tão dura e sinuosa como a vida.
Cidade impiedosa, ensina-me a resistir
à usura das coisas imperfeitas.
(…) A Misericórdia dos Mercados, 742)
2.
BRASIL. PAÍS DO FUTURO
País do futuro, assim vai ser o futuro de todos?
Mais do que a indignidade boçal e a brutal governança
Querem matar-vos a alegria.
E que farão de nós, país do futuro,
Janela tapada com cimento para não deixar passar o sol? (Voltar, 52)
Bibliografia Ativa Selecionada
Mendes, Luís Filipe Castro (2021a). Voltar. Lisboa: Assírio e Alvim.
— (2021b). Luís Castro Mendes em entrevista [a Tânia Pinto Ribeiro], Imprensa Nacional. [https://imprensanacional.pt/as-nossas-comunidades-merecem-ser-mais-conhecidas-luis-filipe-castro-mendes-em-entrevista/?fbclid=IwAR2THXqMgLds8YWkROLz1zg5NlQF_z6rya4Pu0TFObaI-Cc1TV_uEXwO4iM – consultado em 7 de julho 2021]
— (2018). Poemas reunidos. Lisboa: Assírio e Alvim. [os livros anteriores a 2016, são aqui citados a partir desta edição conjunta]
— (2014). “Um estranho animal de duas cabeças: o poeta-diplomata”, Colóquio-Letras, 185, Janeiro-Abril, pp. 145-151.
— (2009). “As cidades em que vivo” (Crónica). Colóquio/Letras, n.º 172, Set. 2009, p. 201-205.
Bibliografia Crítica Selecionada
Delgado, António Sáez (2019) – Recensão crítica a Poemas Reunidos, Colóquio/Letras, Janeiro/Abril, pp. 221-223.
Júdice, Nuno (2012) – Recensão crítica a Lendas da Índia, Colóquio/Letras, 179, Janeiro/Abril, pp. 226-227.
Mendes, Ana Paula Coutinho (2009) – “Aquém e além da diplomacia: escritores no estrangeiro com Portugal no horizonte”, Lentes Bifocais. Representações da Diáspora Portuguesa do Século XX, Porto: Afrontamento e ILCML, pp. 83-97.
Ana Paula Coutinho
Como citar este verbete:
COUTINHO, Ana Paula (2021), “Luís Filipe Castro Mendes”, in Ulyssei@s: Enciclopédia Digital. ISBN 978-989-99375-2-9.
https://ulysseias.ilcml.com/pt/termos/castro-mendes-luis