Lima, Mário

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Lima, Mário

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Mário Lima é o pseudónimo literário do alemão Manfred Lührs, autor do romance policial Barco Negro. Ein Fall für Chefinspektor Fonseca. Mordkomission Porto [B.N. Um caso para o inspetor-chefe Fonseca. Comissão de homicídios do Porto], dado à estampa em 2016 e (ainda) sem tradução portuguesa.

Originário de Hamburgo, M.L. estudou História e Arquitetura, e durante anos aliou um bem sucedido trabalho técnico na área da construção civil ao seu interesse pelas letras: traduziu literatura norte-americana e escreveu contos e short-stories antes de se aventurar no «mundo do crime». Sob o seu nome real, publica no ano de 2000  Im Dunkel Berlins [Na escuridão de Berlim], um romance de crime e espionagem com a capital alemã dos loucos anos vinte como pano de fundo, que a crítica acolheu muito positivamente.

Segue-se Barco Negro, que integra o grupo muito em voga de romances policiais em ambientes exóticos e os policiais em língua alemã passados no sul da Europa – estes a lembrar de alguma forma os textos novecentistas e a sua demanda do excêntrico na atmosfera meridional, com Portugal a impor tibiamente a sua presença face a Itália e à Espanha.

Ao título estranhante, que apela desde logo a uma leitura intercultural, acresce, ainda a nível paratextual, a promessa da especial adequação do autor para tratar o tema a que se propõe, já que se anuncia que Mário Lima vive, «com a mulher e três gatos», há mais de uma década no norte de Portugal, onde trata, das suas vinhas (Lima, 459). Também numa entrevista publicada na sua homepage o autor afirma: «Eu próprio vivo há mais de dez anos em Portugal e neste tempo vi e ouvi muitas coisas. São precisamente as particularidades do país, a sua insistência na própria identidade, que criam possibilidades de se contarem histórias peculiares.  Aqui funciona tudo à portuguesa [em português no original alemão], e isso traz sempre surpresas. Que de melhor pode desejar um autor de policiais?»

Esta ênfase na consciência identitária, que reconhece como muito acentuada na sociedade portuguesa, parece vir ao encontro do desígnio de garante da afirmação identitária (e de género literário) que Eva Erdmann atribui à literatura policial contemporânea e que muita da literatura da contemporaneidade tende a desestabilizar (Erdmann 2009: 20-21). Ao mesmo tempo, o romance corresponderá ao gosto do leitor de literatura policial  dos nossos dias que, ainda de acordo com a mesma investigadora, busca a alteridade e o suspense não apenas no próprio crime – neste tais experiências acabam logo que se anuncia a punição e a ordem é reposta –, mas também na experiência de uma cultura estranha (idem: 18-19).

O romance começa com a descrição de um assassínio, durante uma noite de tempestade, numa casa isolada à beira mar – virá a saber-se que estamos em Perafita, logo depois da refinaria, e que a este crime se veio juntar um outro. A investigação do duplo homicídio está a cargo da Polícia Judiciária do Porto, mais concretamente de uma equipa liderada pelo comissário Fonseca, que integra ainda o inspetor Rui Pinto e a estagiária Ana Cristina, uma jovem psicóloga recém-saída da Escola da Polícia, que assume em grande parte do romance o papel de figura orientadora da narração. O motivo do crime perde-se numa urdidura imbricada que junta cada vez mais figuras e facetas que remetem para o passado (relativamente) recente de Portugal e ainda para outros espaços e motivos que atestam o mencionado bom conhecimento que o autor detém do espaço e da cultura do nosso país.

Quer no recorte do enredo, quer na descrição do colorido local, quer na construção das figuras (tanto dos investigadores como da ampla galeria de outras personagens), regista-se uma hábil articulação de clichés nacionais ampla e internacionalmente conhecidos com referências a idiossincrasias culturais que apenas alguém muito  próximo da cultura nacional conhecerá, num bem equilibrado jogo de familiarização/desfamiliarização de estereótipos que (de novo de acordo com Erdmann (idem: 24-25)) facilita a leitura do texto e concorre para a manutenção do suspense. De facto, sem abandonar a perspetiva do estrangeiro, o autor articula cedências às informações de colorido local mais estandardizadas (p.ex. as localidades que partilham o palco das investigações ou escolhidas como local de origem de algumas das figuras – Braga, Amarante, Gerês, Ponte do Lima – coincidem com apreciados lugares turísticos do norte de Portugal), com múltiplas referências topográficas precisas e uma caracterização diferenciada dos espaços sociais e das figuras. Nesta caracterização, o tipo social e local alarga-se a uma densidade psicológica muito convincente, a estruturar um comportamento plausível, mesmo para o leitor português e portuense.

É certo que o autor não resiste à tentação de ancorar o motivo último do crime/dos crimes na história portuguesa recente, com repetidas referências ao Estado Novo, à sua polícia política e ao passado colonial português, motivos que se vão tornando um topos na literatura policial alemã passada em solo luso. Também algumas referências estereotipadas, como, p.ex., os almoços da equipa de investigação nos restaurantes de Matosinhos  com os seus menus detalhadamente descritos e as constantes referências ao vinho verde poderão aproximar o texto do leitor alemão epidermicamente familiarizado com o norte de Portugal, todavia  não deixam de fazer sorrir o leitor português. Por outro lado, o proverbial estereótipo dos “três Fs” (fado, futebol e Fátima) surge convincentemente ancorado na teia motívica. Acresce ainda que Mário Lima, ao deslocar o cenário do crime para o norte, para a obscura localidade de Perafita, ao substituir o sol do Algarve e a luz de Lisboa pelo outono chuvoso do Porto e pelo frio das serras de Amarante e do Gerês recusou desde logo os estereótipos mais comuns da literatura policial alemã em Portugal. Igualmente real e muito diferenciado se afigura o retrato do país e das suas caraterísticas socioeconómicas e políticas: as dificuldades geradas pela exagerada centralização dos serviços em Lisboa, a demora dos serviços públicos,  a rivalidade entre o Porto e a capital e entre os diferentes departamentos da Polícia Judiciária, bem como entre esta e a GNR, os incêndios florestais e a sua origem criminosa, o tráfico internacional de droga, a emigração, os brasileiros ilegais, as pequenas e médias empresas e os seus patrões peculiares, etc.

A realizar-se a série cujo projeto o paratexto permite intuir e que o próprio autor anuncia no seu blog, Mário Lima, ou melhor, Manfred Lührs será por certo um nome a fixar enquanto mediador entre a cultura portuguesa e a alemã.

 

 

Passagens

Portugal, Alemanha

 

Citações

Porto, vinte e um de novembro

O vento e a chuva não tinham abrandado pela manhã. A leste, a  forte rebentação fustigava a costa. As ondas ribombavam nos rochedos ininterruptamente e cobriam a praia. A espuma voava até ao outro lado da rua e os ramos das grandes palmeiras do  passeio à beira-mar vergavam-se para o mesmo lado.

Numa grande massa de água a chuva estendia-se sobre as colinas da cidade, sobre a Sé majestosa e o Palácio Episcopal, sobre igrejas e conventos e sobre a confusão dos telhados entrelaçados da parte velha da cidade. Nas pontes sobre o Douro engarrafava-se o trânsito da hora de ponta e também nos acessos se progredia muito devagar, um carro a seguir ao outro, com os faróis ligados, em quilométricas filas brilhantes.

«Muito bom dia! São oito horas e trinta minutos». O locutor parecia tão animado como de costume «A forte chuva da noite passada provocou inundações por todo o Grande Porto. Os bombeiros envidam todos os seus esforços para desentupir as sarjetas, mas até agora é de contar com grandes obstruções do trânsito. Especialmente afetadas foram as zonas de -».

Ana Cristina mudou para uma estação de música. Não precisava de mais avisos sobre o trânsito, já estava no engarrafamento, na Via de Cintura Interna. De quando em vez avançava um ou dois metros, depois as luzes dos travões voltavam a acender. Os outros carros eram tudo quanto conseguia distinguir, o resto do mundo desaparecia em fumo e chuva. As tabuletas azuis cresciam num esquema sobre a faixa de rodagem: «IC 23, Ponte do Freixo, A1 Lisboa»  (Lima: 243)

 

31

[…]

«No outro dia vi a tatuagem no seu braço: “Angola –  Sangue, suor e lágrimas”. É da guerra colonial, não é?»

«Não era assim que se chamava naquela altura. Chamava-se Guerra do Ultramar».

A guerra no ultramar.

«Sim, esta bem, mas …»

Olhou para ela pela primeira vez. «Não se tratava de umas «colónias» quaisquer que nós defendíamos, era a nossa terra, percebe?» Endireitou-se. «Pertencia a Portugal tanto como os Açores ou a Madeira. E hoje podia pertencer ainda! Não foi por nossa culpa».

Claro que não. Até Ana Cristina sabia de quem tinha sido: da Revolução dos Cravos. Era a velha ladainha: A pátria tinha-os atraiçoado pelas costas, se não, teriam ganho a guerra e hoje Portugal estaria muito melhor. Ela poderia explicar-lhe muito bem quais as necessidades psíquicas em que se baseava esta lenda, mas preferiu calar-se. Em vez disso,  acrescentou:

«Alguns dos que estiveram na guerra também tatuaram uma data, muitas vezes um dia exato. O que significa?» (Lima: 256)

 

43

[…]

«Boa noite, Senhor Sequeira». Fonseca dirigiu-se-lhe diretamente. «Temos que voltar a conversar».

«Ai sim?» Nuno ficou sentado à secretária, encostado para trás na sua cadeira de chefe, um balão de cognac na mão. Vestia o casaco de cabedal do costume, e a camisa parecia ter um botão mais aberto que habitualmente. Aqui em cima também estava muito mais aquecido do que lá em baixo na sala da pobre Paula. A sua corrente de ouro brilhava. «Bebem um whisky?»

«Não obrigado», disse Fonseca e ficou claro que a resposta incluía também Pinto. […]

«Pois, os senhores oficiais da Polícia de Trânsito! Eu não sou o único transitário a quem pedem dinheiro, podem perguntar a quem quiserem. Ainda há uns dias aqui estiveram, nas botas de montar todas polidas! A fazer a sua «ronda» de Natal, como eles dizem, e a recolher os envelopes. Posso garantir que não têm quaisquer escrúpulos em beber o meu melhor whisky». Nuno abanou a cabeça pesadamente «E não pensem que se tem escolha! Quem se recusa a pagar, é massacrado até rever a sua posição. Eles conseguem parar todos os carros duma empresa, onde quer que os vejam, e viram-nos do avesso durante horas, e se o motorista passar o primeiro teste de álcool, fazem um segundo e um terceiro, e depois imobilizam o carro.»

[…]

«[…] Eles podem levar uma firma à falência! E nessa altura não se trata apenas de mim, mas também dos postos de trabalho da minha gente, de famílias inteiras, mulheres e crianças. Os senhores também deviam pensar nisso». Voltou a abanar a cabeça. «Por isso, faz-se o que se pode, e nunca chega!» (Lima: 341-343)

 

 

Bibliografia Ativa Selecionada

LIMA, Mário (2016), Barco Negro. Ein Fall für Chefinspektor Fonseca, Mordkomission Porto, BoD – Books on Demand, Norderstedt.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

ERDMANN, Eva (2009), «Nationality International: Detective Fiction in the Late Twentieth Century», in Krajenbrink, Marieke e Kate M. Quinn, Investigating Identities. Questions of Identity in Contemporary. Questions of Identity in Contemporary International Crime Fiction, Amsterdam, New York, Rodopi.

LIMA, Mário – https://www.mario-lima.com/autor/

LÜHRS, Manfred – https://www.manfredluehrs.com/

 

 

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Teresa Martins de Oliveira – Univ. Porto/ ILC