(1942 – )
Depois de algumas experiências líricas de juventude com reminiscências, p. ex., de G. Trakl e de W. Borchert, Hans-Günter Wallraff (W.) afasta-se definitivamente da “literatura dos literatos” e inicia, por meados dos anos 60, uma extensa obra documental.
Considerando-se a si próprio integrado numa tradição literária que, na Alemanha, se inicia no séc. XIX – a “Arbeiterliteratur” [literatura de e para trabalhadores] (Romain / Töteberg, 1978: 2, 3) –, ao que se alia um forte empenhamento social e político, W. pretende trazer à discussão pública, sob um olhar impiedoso, realidades sociopolíticas de que são vítimas os “pequenos”, mas que são camufladas ou negadas pelos responsáveis e desconhecidas do grande público. Objetivo último da sua obra, distribuída por reportagens, documentários, entrevistas, filmes e peças de teatro não é, todavia, a denúncia de casos pontuais, mas sim de mentalidades e de modos de comportamento com vista à consciencialização social e política da opinião pública e à subsequente transformação da sociedade – transformação essa, reconhecerá mais tarde, que a literatura apenas dificilmente poderá propiciar (idem: 6).
Se a intenção de W. – no dizer de Heiner Müller, um “Robin Hood posmoderno ao serviço de todos os rebaixados, humilhados e ofendidos” (idem: 10) – é comum à literatura documental que vinha a ser produzida na Alemanha a partir dos inícios da década de 60, já o seu método de investigação, embora não inovador, é muito particular, sempre gerador não só de grande impacto e êxito de mercado, mas também de forte controvérsia.
G. W. não se limita, como é mais comum, a recolher informações e/ou a fazer análise política. O que constitui a força dos seus textos é o desejo de mostrar, o que pressupõe uma ausência de distância entre o eu e o outro, tornar-se parte do que pretende apresentar, ou seja, praticar jornalismo “de imersão”, de modo a reunir material autêntico. Assim, ora “cria” documentação através de atos provocatórios, ora se infiltra no meio a investigar recorrendo repetidamente ao disfarce. A identidade fictícia que assume traduz-se numa grande diversidade de papéis, por vezes com uma posição social relevante (e.g. conselheiro ministerial (Braun, 2007: 27)), quase sempre como um indivíduo socialmente inofensivo. Na R.F.A., disfarçou-se, p. ex., de imigrante turco, de trabalhador na metalúrgica Thyssen e na cadeia McDonald’s (Ganz unten, 1985), de alcoólico numa instituição psiquiátrica, de sem-abrigo num asilo, de operário numa indústria química (13 unerwünschte Reportagen, 1969), ou de redator no tabloide sensacionalista que é a Bild-Zeitung (entre outras publicações, Der Aufmacher (1977), Zeugen der Anklage (1979)). No estrangeiro desempenhou, p. ex., o papel de contestatário ativo do regime militar grego (Unser Faschismus nebenan. Griechenland gestern – ein Lehrstück für morgen, 1975). Com as suas investigações, passadas ao papel por vezes com a colaboração de outros autores, contribuiu mesmo para a localização de Ludwig Hahn, alto funcionário no gueto de Varsóvia e corresponsável pela deportação de milhares de judeus para campos de concentração e de extermínio (idem: 23).
Reconhecido, criticado e receado por uma obra que cedo encontrou ressonância internacional (veja-se, p. ex., Ganz unten, um best-seller traduzido em mais de 30 países, ou o verbo sueco “att wallraffa”, utilizado para designar investigações invulgares (http://desv.dict.cc/?s=att+wallraffa)), o polémico jornalista foi, ainda jovem, membro do grupo literário Gruppe 61, pouco depois membro-fundador do Werkkreis Literatur der Arbeitswelt [literatura do mundo do trabalho], redator nas revistas Pardon e konkret, autor independente a partir de 1973. Tem sido agraciado com diversas distinções e prémios (e.g. prémio literário Gerrit-Engelke (1980), medalha da Liga Internacional para os Direitos Humanos (1984), prémio Jean d’Arcy (1987), prémio da British Academy of Film and Television Arts (1987), ou prémio August Bebel (2013)). Ao mesmo tempo, é envolvido em vários processos judiciais e em polémicas, iniciados não apenas pelos inimigos poderosos que as suas obras lhe granjearam – também alguns colaboradores o acusaram de se apropriar de trabalho alheio (Romain / Töteberg, 1978: 10).
Pela década de 90, aumenta o intervalo entre as investigações de W., mas não diminui a vontade de mostrar os lados negros da R.F.A.. Centrar-se-á sobretudo em entrevistas e (re)edições, intervenções na TV, prefácios e posfácios de obras alheias, assim como em ações de solidariedade com autores perseguidos e ameaçados – veja-se o caso do autor turco Aziz Nesin (idem: 11) ou do rapper iraniano Shahin Najaf.
Portugal
Contrariamente ao seu método de trabalho mais comum, não foi sob qualquer disfarce que W. se deslocou a Portugal em 1975-1976, época conturbada, marcada, p. ex., por violentos ataques da direita contra sedes de partidos de esquerda, durante a qual os sobressaltos e os desenvolvimentos da Revolução do 25 de abril eram notícia internacional e atraíam ao país apoiantes estrangeiros. É possível que tenha vindo na qualidade dupla de simpatizante da Reforma Agrária (era membro do Comité de Solidariedade Alemão que reuniu fundos para cooperativas), bem como de autor-jornalista já conhecido entre os nossos círculos académicos. Foi recebido pelo então Presidente da República, general Costa Gomes, proferiu uma comunicação na Faculdade de Letras de Lisboa sobre “A reportagem como literatura” (Meyer-Clason, 2013: 371) e, de acordo com testemunhos orais coevos, foi ainda convidado para falar no Goethe-Institut de Lisboa e de Coimbra pelos respetivos diretores, Curt Meyer-Clason e Karl-Heinz Delille. Todavia, a grande parte da sua permanência de três meses entre nós decorreu numa das cooperativas agrícolas à data mais dinâmicas, na “Estrela Vermelha”, no Baixo Alentejo. Objetivo era a vivência in loco da Reforma Agrária, fazer parte do coletivo dos trabalhadores agrícolas, experiência essa que se traduziria em mais uma publicação.
No entanto, de uma breve deslocação ao norte do país, nomeadamente a Braga e à Póvoa de Varzim, resultou afinal uma alteração radical de planos. Com a colaboração da jornalista Hella Schlumberger, W. publicará o resultado de uma outra investigação, que o terá levado à descoberta de uma conspiração de direita que, pela força, pretendia afastar o novo governo, maioritariamente socialista – Aufdeckung einer Verschwörung. Die Spínola-Aktion (1976; reed. 1987), logo traduzida para português por R. M. Peixoto: A Descoberta de uma Conspiração. A Acção Spínola (1976).
Como resultado da investigação, e perante a alegada iminência do golpe, previsivelmente em maio ou junho de 1976 (DC-AS: 111), G. W. denuncia publicamente os planos de Spínola logo nos primeiros dias de abril desse ano, antes da publicação em livro – na revista de grande tiragem Stern, em conferência de imprensa em Bona, em entrevista ao jornal Portugal Nachrichten (idem: 217-220), no programa televisivo alemão “Panorama” (idem: 154). As repercussões não se fazem esperar. Diversos periódicos alemães e suíços noticiam e comentam o malogro do golpe, as ligações de Spínola e Strauß chegam ao parlamento alemão (idem: 143), a Suíça extradita o general para o Brasil (idem: 151). Em Portugal, O Diário e O Jornal publicam na íntegra o relatório da revista Stern (idem: 145), O Comércio do Porto coloca reservas quanto à veracidade das notícias (idem: 146); no dizer de W., a opinião pública divide-se desde o regozijo até acusações de invenção e de maquinação do comunismo internacional (idem: 145), enquanto uma figura de destaque se interroga quanto à facilidade com que o jornalista se infiltrou no MDLP (idem: 147) – como também se lê, aliás, num jornal suíço (idem: 154). De notar é que Spínola ordena no final desse mesmo mês a suspensão das atividades do MDLP (29 abril).
A Descoberta de uma Conspiração é uma obra de estrutura e de discurso simples. Numa primeira parte, é composta pela reprodução de conversas, clandestinamente gravadas por W., entre si próprio e diversas figuras portuguesas de direita, desde eclesiásticos ultraconservadores, passando por bombistas, até ao ex-Presidente da República, general António de Spínola. Com essa transcrição, pontuada por alguns testemunhos fotográficos, se entrelaçam informações muito precisas (pessoas, datas, locais), comentários e explicitações autorais para cabal compreensão por parte dos leitores do projeto de golpe de Estado. Seguem-se múltiplas e diversificadas provas documentais complementares, algumas fac-similadas (e.g. “[d]ocumentos secretos de Spínola”; reações de periódicos portugueses e estrangeiros à descoberta da conspiração; uma cronologia dos prenúncios de um golpe de direita; duas entrevistas a G. W. publicadas em periódicos alemães, etc.).
Parece ter sido mais por curiosidade e hábito profissional do que de modo previamente calculado que W. começou por contactar com círculos afetos ao MDLP – um grupo de ação política anticomunista responsável por iniciativas violentas contra partidos de esquerda entre o verão de 1975 e abril de 1976 –, cujo presidente era o general Spínola, então no exílio. Com a ajuda mediadora de H. Schlumberger, boa conhecedora da nossa língua, ao que se terá aliado a experiência própria em investigações, W. foi conquistando habilmente a confiança do MDLP, primeiro de mercenários e de quadros médios no norte do país. Simulando cumplicidade, o jornalista apresentou-se sob o disfarce de um alemão nacionalista mandatado secretamente por uma organização alemã de direita para servir de intermediário no fornecimento de armas e no financiamento para ajudar no combate à revolução portuguesa. Surpreendentemente, também o ex-presidente português não desconfiou daqueles “[e]nviados em missão secreta na questão da Solidariedade Internacional Fascista” (idem: 35), tão-pouco da substancial ajuda por parte da RFA que lhe era oferecida.
Assim, realiza-se um encontro em Düsseldorf, em 25 de março de 1976, entre W. – que, entretanto regressado à R.F.A., se apresenta conscienciosamente de Mercedes (emprestado), “gravata listrada de preto-vermelho-amarelo”, “isqueiro dourado e quinquilharia do género” (idem: 71-72) –, dois responsáveis políticos do MDLP e o próprio Spínola, que para esse efeito saiu por um dia secretamente da Suíça, onde então residia. Para dar a credibilidade necessária ao seu disfarce, W. arma a cilada complementar de um suposto “presidente” da suposta organização alemã (na realidade um velho conhecido do jornalista) comparecer na reunião. No decurso do encontro, por entre análises que fazem da situação política portuguesa, presente e passada, e sem nutrir qualquer suspeita, os três portugueses revelam claramente os apoios com que contam em Portugal, os objetivos que perseguem e solicitam apoio técnico e financeiro para o golpe de Estado, bem como para a posterior reorganização política de Portugal. Apostado na “eliminação total do comunismo em Portugal” (idem: 93) e considerando “os partidos socialistas e sociais-democratas […] um perigo ainda maior do que os comunistas” (ibidem), diz Spínola: “O nosso grande plano é […] mobilizar as massas populares e sermos então capazes de apoiar, com armas, a multidão revoltada” (idem: 95), e “não esqueça as armas de bordo para helicópteros. Essas armas destinam-se sobretudo ao uso contra população civil, operários em greve, manifestantes, trabalhadores de cooperativas que se recusem a devolver as suas terras” (idem: 96).
Ainda em finais de março, e após nova reunião já só entre W. e os dois responsáveis políticos do MDLP, Spínola envia da Suíça uma listagem das armas e do material de sabotagem desejados (idem: 117-120). Poucos dias passados, o jornalista fará a referida denúncia pública da conspiração.
Resta referir a imagem pouco abonatória dos portugueses do norte e dos golpistas em particular veiculada por A Descoberta de uma Conspiração. Talvez porque a literatura documental, apesar da sua reivindicação de autenticidade, é, tal como qualquer outro texto literário, o produto de um autor que seleciona e faz montagens do material recolhido, e porque os interesses de G. W. se centram no putsch que se preparava, a verdade é que o retrato é redutor. Os nortenhos são apresentados como reacionários, atrasados, funcionalmente analfabetos (cerca de 90%) (idem: 13), enquanto os golpistas se tornam algo ridículos, com uma ingenuidade e credulidade a toda a prova, expondo sem reservas os pormenores de uma ação que se queria secreta.
Passagens
Grécia, Israel, Japão, Nicarágua, Portugal.
Citações
O arcebispo Francisco da Silva: […] O comunismo lança os seus ataques principais contra a religião, a família e a propriedade. Como uma luta defensiva não chega, há que passar energicamente à ofensiva, em fábricas, escritórios, mercados, bancos, administrações […]. Toda a proletarização é obra do Diabo. (DC-AS: 17)
[Manuel] Teixeira [oficial dos comandos]: “Não somos religiosos, mas o Francisco, o arcebispo, é um homem da nossa confiança. Conheço-o bem. Pôs-nos à disposição o Seminário para o primeiro encontro entre o ELP e o MDLP”, quando o Copcon […] ainda existia e ainda se podia ser preso. (DC-AS: 37)
[W.]: “Este ‘romance policial político’ torna-se um best-seller nos quiosques [portugueses]. Nos locais de venda dos jornais formam-se magotes de gente e nos cafés homens e mulheres lêem, fascinados, a reportagem de quase quatro páginas de O Jornal. É o assunto do dia. As opiniões não são unânimes, as opiniões são contraditórias. (DC-AS: 146)
Bibliografia Ativa Selecionada
WALLRAFF, Günter (colaboração de Hella Schlumberger) (1976), A Descoberta de uma Conspiração. A Acção Spínola, trad. de R. M. Peixoto, Lisboa, Livraria Bertrand.
—- (1976), Aufdeckung einer Verschwörung. Die Spínola-Aktion, Köln, Kiepenheuer & Witsch.
MEYER-CLASON, Curt, Diários Portugueses (1969-1976), trad., posfácio e notas de João Barrento, Lisboa, Documenta, 2013.
Bibliografia Crítica Selecionada
BRAUN, Ina (2007), Günter Wallraff. Leben, Werk, Wirkung, Methode, Würzburg, Königshausen&Neumann.
ROMAIN, Lothar; Töteberg, Michael “Wallraff, Günter” (1978), in: Heinz Ludwig Arnold (Hrsg.), KLG – Kritisches Lexikon zur deutschsprachigen Gegenwartsliteratur, 10/02, 3/04, edition text+kritik: 1-13, e A-O.
Maria Antónia Gaspar Teixeira