(1904-1986)
Cristopher Isherwood nasceu em Stockport, perto de Manchester, frequentou a Universidade de Cambridge (de onde foi convidado a afastar-se), viajou por vários países, e morreu na California, como cidadão norte-americano (naturalizou-se em 1946). Conhecido sobretudo pelos volumes Goodbye to Berlin (1939) e The Berlin Stories (1945), C.I. teve uma intensa atividade literária e crítica, assinando uma vasta produção textual que se estende de diários e novelas com marcas autobiográficas a peças de teatro e a guiões para cinema, muitos das quais foram objeto de adaptações teatrais, televisivas e cinematográficas. Escreveu algumas obras em colaboração com outros escritores, nomeadamente com o amigo de infância, W. H. Auden, com o qual escreveu The Ascent of F6, e Journey to a War (fruto de uma viagem conjunta à China, em 1939, para reportarem o conflito sino-japonês). A partir dos anos 1940, a viver nos E.U.A., a sua devoção ao Vedantismo leva-o a publicar vários artigos sobre o tema e a traduzir as escrituras vedânticas. Já o livro de memórias Christopher and His Kind (1976; ebook 2013), centrado no período 1929-39, é apontado por muitos críticos como um contributo de peso para a causa e a defesa dos homossexuais (“his kind”). Integrou a chamada “The Auden Generation”, uma geração de intelectuais de esquerda, com muitos expatriados, que se opunham ao establishment britânico, e cuja vida foi profundamente marcada pelo triunfo do nacional-socialismo e pela II Guerra Mundial.
A rejeição de C.I. dos padrões de respeitabilidade da sociedade inglesa, a ânsia de independência e a homossexualidade, entre outros motivos, levaram-no a um exílio voluntário, que durará toda a vida. Nos inícios da década de 30, instala-se em Berlim com o projeto de ser novelista e, em 1939, migra para os E.UA. Em Berlim cultiva um estilo de vida boémio, em convívio com muitos intelectuais europeus homossexuais, que vão em demanda da cidade livre e cosmopolita. Assiste à ascensão de Hitler ao poder, e, em 1935, a perseguição nazi a judeus e homossexuais obrigam-no a abandonar a Alemanha, juntamente com o namorado, o jovem alemão Heinz Neddermeyer. Depois de um périplo pela Dinamarca, Bélgica e Holanda, chegam a Portugal em finais de 1935, na companhia do poeta britânico Stephen Spender e do companheiro deste, o galês Tony Hyndman. Em Sintra tentam implementar um modo de vida comunitário tão caro a muitos intelectuais de esquerda dessa época, mas que será um total fiasco, nas palavras do próprio C.I. Em março de 1936, Spender e Hyndman partem para Espanha, e C.I. e Heinz deixarão Portugal cinco meses depois, após a receção de uma carta do consulado alemão intimando Heinz a apresentar-se para cumprir o serviço militar.
A passagem por Portugal é referida em Kathleen and Christopher. Letters to his mother (2005), e no cap. XII do livro de memórias Christopher and His Kind (1976), os quais incorporam muitos fragmentos de um diário de grupo inédito, que todos, exceto Heinz, escreveram aquando da estadia em Portugal. Esse diário comum foi publicado pela primeira vez em 2012, em língua italiana, (e, em 2017, em espanhol), num volume ampliado com material epistolar heterogéneo, organizado pelo filho de Spender, Mathew Spender. (cf. verbete Stephen Spender)
Da leitura destas obras depreende-se uma permanente atenção de C.I. aos acontecimentos europeus e mundiais e uma preocupação diária com Heinz, pois este poderia ser recambiado para a Alemanha, dado que não era judeu nem tinha estatuto de refugiado político. Num dos passos de Christopher and His Kind, escreve: “I feel awfully depressed, but it’s no use moping – I must find someone in this country who can help us” (p. 205). Apesar desse receio, numa carta à mãe datada de inícios de março de 1936, pode ler-se: “I think the life we are leading at present is far more satisfactory than anything we have tried before. The great thing is to be involved in one’s surroundings and we are involved already, even if only as bogus English colonists.” (Christopher to Kathleen 2005: 195).
Em Portugal, e, ironicamente, numa “ilha” formada por reformados britânicos, artistas e homens de negócios a residir em Sintra e arredores (“the British colony in Lisboa”) encontra C.I. um porto de segurança e o lugar ideal para lidar com a crónica falta de dinheiro. Em Christopher and His Kind, a referência ao preço barato dos bens e serviços (um café, um táxi, o salário de empregadas domésticas), i.e., um Portugal barato, é um ostensivo estribilho, ainda mais notório no diário comum, pois transversal aos registos de todos os diaristas.
Sem a sobranceria de Spender, C.I. esforça-se por aprender a língua portuguesa, tal como na Alemanha estudara alemão. A sua angústia perante o futuro incerto de Heinz e a imersão em projetos literários explicam, decerto, a ausência de viagens por Portugal e o confinamento a Sintra e à zona de Lisboa. No Diario de Sintra há apenas referência a uma deslocação à Beira Alta, a convite de um advogado português, e um breve apontamento sobre a paisagem.
À chegada a Sintra regista no diário (onde o pendor recreativo é visível) as primeiras impressões sobre a célebre vila, e elas não revelam nenhum sinal do deslumbramento de alguns artistas britânicos que a visitaram ou nela viveram. Bem pelo contrário: a descrição do Castelo da Pena feita nos anos 30 (cf. infra Cit.), que mantém inalterada em Christopher and His Kind (1976), prima pela ironia e deceção. Já a paisagem e as vistas para o mar a partir da casa onde residem, a Vila Alecrim do Norte, merecem-lhe algumas notações elogiosas. São também constantes os lamentos ao clima chuvoso e ventoso (chega a falar em pior clima europeu), mas em inícios de junho, numa carta à mãe, já falará em clima paradisíaco. Preparando-a para a visita a Portugal, compara a paisagem de Sintra à de Yorkshire, dizendo que nada poderia ser mais inglês do que o sítio onde vivem.
Não encontramos em nenhum escrito de C.I. notas sobre a geografia humana de Lisboa, ou sobre monumentos, ou sobre a literatura e arte portuguesas – que nesse ano de 1936 sofriam os efeitos da Censura salazarista. Ao contrário de Spender, nada escreve sobre a visita que ambos fizeram à Igreja de S. Vicente (e à “exploração” da capital mencionada por Spender) ou sobre a excursão dos quatro a Setúbal e arredores. Há, sim, várias páginas marcadas pela auto-ironia dedicadas às idas regulares do “quarteto” a bares e cafés de Lisboa, onde se embriagam, e às “visitas” regulares ao casino do Estoril – esse “legendary haunt of vice” – que desperta a febre do jogo e arruína as suas economias. Quando, em Março de 1936, Auden chega a Portugal para trabalhar com C.I. na peça The Ascent of F6 (o que fazem num mês) é ao casino do Estoril que este o conduz – o que viria a inspirar a Auden o poema “Casino”.
As entradas do diário comum refletem o interesse do escritor C.I. pelos ambientes, pelas relações interpessoais e pelo elemento de extraordinário que existe na vida quotidiana dos seres humanos. Daí a narração e descrição minuciosas de episódios da vida doméstica (o trabalho das empregadas, as despesas), das várias tensões, explícitas e/ou subliminares, dentro do grupo e entre os casais, ou do empenho de Heinz na criação de coelhos e de galinhas. O que C.I. por vezes faz como se seguisse o célebre princípio poético da abertura de Goodbye to Berlin: “I am a camera with its shutter open, quite passive, recording, not thinking”.
Relatos estes em registo bem diferente do retrato dos reformados britânicos de classe média-alta instalados em Portugal, com os quais passam a conviver, convidando e sendo convidados para o “chá” inglês, festas e encontros variados. C.I. alonga-se em retratos caricaturais de algumas figuras (sobretudo das mulheres), expondo comportamentos individualistas, excêntricos e mesmo grotescos. Personagens muito distintas da constelação de emigrados intelectuais que encontrara em Berlim.
Não recorrendo à narração/descrição direta do meio envolvente, C.I. não deixa de ser o observador que sempre foi, abordando alguns aspetos da realidade portuguesa através de ângulos enviesados e discretos. O regime ditatorial é aflorado a partir das conversas que mantém com o advogado Dr. Olavo, deixando no ar a ideia de que, em comparação com Itália e com a Alemanha, haveria em Portugal mais liberdade de expressão, mas idêntica perseguição aos dissidentes do regime.
Das notações breves e dispersas sobre o Portugal dos anos 1930 emerge a imagem de um país pobre, como lugar de passagem de muitos intelectuais à deriva numa Europa ameaçada pela guerra, e um posto de observação privilegiado do que se passa no mundo, e que C.I. “reporta” no diário comum – desde as reuniões da Sociedade das Nações à invasão da Etiópia por Mussolini. Isto antes de a Guerra Civil de Espanha ter isolado Portugal da Europa e antes de se ter dissipado a esperança de todos de uma Europa livre e em paz.
Passagens
Alemanha, Bélgica, China, Dinamarca, E.U.A. Grécia, Holanda, Portugal
Citações
«Sintra is a large village composed chiefly of palaces, ruinous and to let. The overhanging cliffs are sprouting with fern-shaped trees and subtropical plants, like an enormous rock-garden. In the woods, one comes upon locked gateways, extravagantly sculptured, leading nowhere, and rococo summer-houses where an eighteenth century poet might find inspiration for the dullest of all tragedies in heroic couplets, with a prologue, epilogue, and fourteen acts.
The castle of Pena is easily the most beautiful building any of us have ever seen. In fact, it has the immediate staggering appeal of something which is sham, faked, and architecturally wrong. It could hardly be more effective if it had been erected overnight by a film company for a super-production about the Middle Ages. Clamped on to the highest spike of rock on our local range of hills, its Moorish-Gothic-Renaissance towers and ramparts command a view of all this part of Portugal … Inside the castle are the touchingly shabby royal apartments, with their railway-carriage upholstery and uncomfortable beds. Copies of Country Life and other English Society magazines lie about on the tables, faded yellow and dated 1910. (The year the last king of Portugal was deposed)». (Isherwood 2013: 190; DS: 72)
«I love Portugal. The people are charming. They lean over the wall when we are having meals in the garden and wish us a good appetite. But how they do sing! The two maids sing in harmony, very old folk-songs with hundreds of verses, until I have to ask them to stop as I can’t hear myself write. And the farmer, ploughing with oxen just beyond the garden wall, sings a song to the oxen which lasts all day. […]. Meanwhile, I study the Portuguese irregular verbs and occasionally go over and take a peep into the wardrobe, groan, and hastily shut the door again. The reason I groan is because there are thirteen books in there waiting to be reviewed for The Listener». (Carta a E. M. Forster, in Isherwood 2013: 201)
«As a matter of principles, she was determined that they shouldn’t be cheated. They undoubtedly were cheated, quite often; but Portuguese prices were so much lower than English that it hardly mattered. Indeed, it seemed to them that it was they who were doing the cheating. The landlady found them a cook and a maid—for tiny wages, which, she assured them, were well above standard. They had bad consciences about this—Jimmy especially—but nevertheless resigned themselves to being exploiters». (Idem: 191)
«Here I am, on the granite verandah of Dr. Olavo’s house in the Beira Alta, looking out over the vines and olive woods of the Mondego Valley. Behind those mountains, across the Spanish frontier, they are fighting.
We have sat up each night until past two o’clock listening to the wireless—and although the news was better yesterday, it doesn’t seem at all certain yet that the Fascists will be beaten.
Not that Dr. Olavo doubts this for an instant. He stabs an accusing finger, swallows his Madeira, springs to his feet: ‘Never shall they win! Never! I understand the mentality of these generals. Ah, these butchers, these monsters, these analphabetics—they would dare to assault the noble great-hearted generous Spirit of Democracy—very well, I defy them!’
Certainly he defies them. He is astonishingly incautious. From this house you can see the property of his brother, the former minister of war [Américo Olavo Correia de Azevedo], who was murdered during the putsch which put the present regime into power. And yet Olavo is not merely free, his opinions are tolerated; he even has an important post in the civil administration. As I told him, he’s lucky not to be living in Italy or Germany». (Isherwood 2013: 208; DS: 202-203)
Bibliografia Ativa Selecionada
ISHERWOOD, Christopher (1960), Goodbye to Berlin [1939], London, Hogarth Press.
— (2012), Christopher and His Kind (1976), New York, Vintage Publishing.
— (2013), Christopher and His Kind, a Memoir (e- book) https://www.pdfdrive.com/christopher-and-his-kind-a-memoir-1929-1939-e183828037.html
— (2005), Kathleen and Christopher (Letters to his mother), ed. by Lisa Colletta, Minneapolis, University of Minnesota Press.
SPENDER, Mathew (ed.) (2017), S. Spender, C. Isherwood, W. H. Auden. Diario de Sintra (Diciembre de 1935-agosto de 1936), Gallo Nero Ediciones. (Abrev.: DS)
Maria de Lurdes Sampaio
Como citar este verbete:
SAMPAIO, Maria de Lurdes (2020), “Christopher Isherwood”, in Ulyssei@s: Enciclopédia Digital. ISBN 978-989-99375-2-9.
https://ulysseias.ilcml.com/pt/termos/isherwood-christopher/