Almeida Faria

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Almeida Faria

(1943-)

Almeida Faria nasceu no concelho de Montemor-o-Novo, no Alentejo. De lá vieram alguns dos elementos histórico-sociais que, elaborados pela ficção, fizeram de sua obra um registro complexo e dinâmico do imaginário, da identidade e do passado recente português. Mas enquanto cenário de sua própria vida, a região onde passou a infância e a adolescência continha restrições várias para seu primeiro contato com a literatura. Já estava no liceu em Évora quando foi aluno do escritor Vergílio Ferreira, o qual desempenhou papel crucial em sua sensibilização e formação literária, recomendando-lhe leituras e apresentando-lhe autores modernos. Na altura de seus estudos de nível superior na Universidade de Lisboa, passou do Direito à Filosofia. A estreita relação com esta disciplina se manteve ao longo da vida e lhe transpareceu numa obra desde sempre reflexiva e cada vez mais consciente de seu papel histórico. De uma forma ou de outra, o seu texto se revela sempre como interrogador e, ao trabalhar a sua interrogação, faz uso de recursos fortemente apoiados na intertextualidade e na ironia (Simões, 1997: 196).

Ainda na sua juventude, Almeida Faria viveu duas marcantes experiências de deslocação conseguidas por meio de bolsas de estudo, primeiro para os Estados Unidos e depois para a Alemanha. Durante dois anos (1968-1969), esteve em Iowa, no âmbito do International Writing Program, e em Berlim, onde fez parte do Berliner Künstlerprogram, no qual participaram, entre outros, Gombrowicz, Mario Vargas Llosa, Michel Butor e Peter Handke. As duas estadas em muito contribuíram para lhe alargar os horizontes e a visão de mundo. Se, por um lado, nestes anos não registrou nenhuma nova publicação, por outro, a espera lhe proporcionou o distanciamento necessário à maturação de seu estilo e à depuração da linguagem que lhe possibilitaram dar seguimento ao seu mais robusto projeto ficcional: a Tetralogia Lusitana, em que se narra a saga de uma família alentejana no contexto da ditadura portuguesa. Nela se atualizam progressivamente o cruzamento e a intersecção entre a própria obra e o transcurso do processo revolucionário do 25 de Abril de 1974, pois, tendo evoluído em paralelo e interação com a Revolução, tanto foi por ela cultivada como a refletiu criticamente (Simões, 1997: 19).

Na altura dessas suas deslocações, o escritor já possuía um percurso importante na literatura. Publicou o seu primeiro livro quando contava apenas dezanove anos. Rumor Branco (1962) lhe valeu o Prêmio Revelação de Romance, da Sociedade Portuguesa de Escritores. Libertário e radical no âmbito da forma, a obra dividiu opiniões e transgrediu uma série de regras do romance tradicional, a exemplo do que propunha o Noveau Roman francês, não deixando de repercutir esteticamente como espécie de manifesto velado contra as opressões, as normas sociais e a falta de liberdade de expressão de seu país. A Paixão (1965), seu segundo livro, representou não menos um marco na moderna literatura portuguesa. Considerado por muitos a sua obra-prima, o romance veio a se constituir como uma das principais influências de outros grandes escritores: em Portugal, para Antonio Lobo Antunes, e, já do outro lado do oceano, para o brasileiro Raduan Nassar.

As deslocações do escritor aos Estados Unidos e à Alemanha ocorreram, portanto, na sequência desses lançamentos, logo no início de um longo intervalo entre suas publicações. E ao fim desse período, com a publicação do seu livro seguinte, percebe-se uma nítida ruptura com o discurso poético e simbólico de A Paixão, escrito em época de repressão, sendo Cortes, ao contrário, “um livro que se revela de outro tempo, pela forma de enunciação, onde a linguagem é transformada em ritual do quotidiano” (idem: 71). Ainda que não se possam isolar precisamente os efeitos das viagens no concurso dessa mudança de estilo, parece certo que elas tiveram a sua parcela de influência no amadurecimento do escritor. Assim é que, na esteira de A Paixão, vieram Cortes (1978), Lusitânia (1980) e Cavaleiro Andante (1983). Por essas obras, o escritor venceu, respectivamente, o Prémio Aquilino Ribeiro da Academia das Ciências de Lisboa, o Prémio D. Diniz e o Prémio Originais de Ficção. Seu romance seguinte foi O Conquistador (1990).

Para além do romance, também se dedicou a empresas em outros gêneros literários. Selecionou e traduziu Poemas Políticos (1979), de Hans Magnus Enzensberger. Publicou ensaios, entre os quais Do Poeta-Pintor ao Pintor-Poeta (1988); peças de teatro: Vozes da Paixão (1998), Reviravolta (1999); novelas: Os Passeios do Sonhador Solitário (1982), Um Cão Chamado Bolotas (1984); e contos: Peregrinação (1967), Romance de D. Sebastião de Portugal e Gabriel Espinosa Pasteleiro em Madrigal (1983), Vanitas: 51 Avenue D’Iéna (1996). Além disso, foi colaborador em publicações periódicas diversas, nacionais como estrangeiras.

No ano de 2006, Almeida Faria participou, juntamente com a ilustradora Bárbara Assis Pacheco, em uma viagem à Índia, realizada e suportada financeiramente no âmbito do ciclo “Os Portugueses ao Encontro da Sua História”, da responsabilidade do Centro Nacional de Cultura. O resultado mais perceptível da deslocação a Goa e a Cochim, com uma breve passagem por Mumbai, veio alguns anos depois, quando se publicou O Murmúrio do Mundo (2012). Na obra, estruturada numa sequência de quatro capítulos, considerando Partida, Regresso e os dois destinos, acha-se uma espécie singular de palimpsesto. O registro das memórias de viagem dos portugueses que primeiro navegaram até a região da Índia é apropriado pelo autor e participa em paralelo e intercessão com o relato de sua viagem contemporânea. É a dupla viagem de que fala, a esse respeito, Eduardo Lourenço: “uma espécie de ‘peregrinação de dupla face’ à Índia real, agora saída, espectacularmente, do seu adormecimento mítico. É a mesma das evocações clássicas do antigo continente dos marajás e dos párias e agora extremamente pós-moderna” (Lourenço, 2012: 9). Assim, essa viagem-diário é o resultado da combinação de dois conjuntos de texto: o do atual e o do antigo encontro com o Outro. Para esse efeito, a narrativa é construída com a colagem de citações não atribuídas, em itálico, tanto dos cronistas portugueses dos séculos XVI e XVII como de uma vasta lista de autores diversos como Octavio Paz, Nietzsche, Borges, Bernardo Soares, Kierkegaard, J. M. Coetzee e São Francisco de Assis. Integra o livro, ainda, um conjunto de imagens em aquarela de Bárbara Assis Pacheco, que, para essa ficção superlativa cria uma narrativa visual que complementa a literária. A viagem à Índia, essa que é, para os portugueses, comparável a nenhuma outra, inscrita no tempo enquanto espécie de mito universal, é a mesma que precisa ser por eles refeita incessantemente, “exigindo de nós a repetição simbólica da viagem das viagens num mundo onde a viagem é só quase imagem poética ou mesmo anacrónica” (idem: 8-9), “como para nos convencermos que a mais onírica de nossas peripécias de pequeno povo do Ocidente não foi o puro sonho que também foi” (idem: 7). Entre realidade fantástica e alegoria vivida, a Índia de hoje e a de outrora coabitam e se sobrepõem nesse livro de viagens em que convivem ficção e realidade.

O murmúrio do mundo pode ser considerado enquanto expressão particular da fase mais madura e bem acabada da obra do escritor. Embora não se possa dizer que o livro ocupe nela um lugar de centralidade, ele reúne os elementos que marcam essa escrita de fase posterior. É possível compreender a obra em dois momentos: “O primeiro, entendido como uma fase em que o ficcionista prima pela produção com base no ‘prazer de formular algo novo em si’, a que ele próprio chama os meus barrocos, vai de Rumor Branco até Cavaleiro Andante. O segundo, quando busca o equilíbrio do conjunto. Nesse segundo momento (uma possível segunda fase da sua obra) o texto já não é mais fragmentado e apresenta uma trama bem urdida, a linguagem é justa, medida, leve e, por esse aspecto, ‘clássica’; a fase onde a proposta do artista ultrapassa o puro gozo da invenção, em busca da comunicação com o leitor” (Simões, 1997: 199). Aí é que se situa O murmúrio do mundo.

De um modo geral, a sua obra se tornou particularmente conhecida sobretudo naquilo em que refletiu temática e/ou esteticamente a história recente, a identidade e o imaginário do povo português. É comum, por exemplo, a recorrência ao mito de D. Sebastião nas suas várias faces. Pode-se dizer, então, que se trata de uma obra de identidade lusíada, mas não no sentido convencional que os termos “identidade” e “lusíada” possam ter. Em vez disso, a obra “passa além do que enuncia e se faz lusíada [também] na enunciação, nas possíveis constituições dos sentidos, na estrutura textual” (idem: 200). Percebe-se, além disso, uma espécie de revisão da mitologia cultural lusíada por meio da reformulação simbólica de suas imagens. Assim, os sentidos cristalizados dessa identidade lusíada são problematizados, reelaborados na medida em que seus mitos se transformam na ambiguidade da matéria ficcional.

E pode-se dizer, a respeito de toda a obra de Almeida Faria, que ela “ultrapassa as fronteiras portuguesas. A intertextualidade, as referências, o trânsito por várias línguas, reunindo e apontando perspectivas, fazem a ultrapassagem. A apropriação não só de textos literários, mas de outras linguagens artísticas, de outras tradições e crenças, aproximam o erudito e o popular e promovem a transculturação. Deixa assim de ser uma produção nacional para adquirir um caráter transnacional. O tema nacional reatualiza-se na obra desse autor, por reflexão crítica e que se situa, para além da sua nacionalidade, no campo da imaginação e da palavra” (ibidem).
 

Passagens

Portugal, Estados Unidos, Alemanha, Índia

 

Citações

Habituados aos cômodos incômodos dos nossos passeios aéreos, não é fácil pormo-nos na pele dos homens das armadas de outrora, amontoados em acanhados cascos de naus e bergantins, galeões, caravelas e outras embarcações de alto bordo e alto risco, com medo de serem devorados pelos monstros marinhos, ou de que os seus corpos, ao entrarem na zona tórrida, lhes ficassem escuros como os dos povos daquelas quenturas, ou com medo de alcançarem o fim do mundo, láa onde os abismos escancaram as goelas e engolfam navios e homens. (O murmúrio do mundo, p. 24)

 

No nosso último dia em Goa fiquei olhando aquele mar soberano e indiferente ao fluir e refluir das vagas sucessivas de mil e mais mil e mais mil seres humanos em busca da volúvel sorte, enfrentando mares inóspitos, acostando a terras perigosas, num infindável desfile de euforias, doenças, sacrifícios, vaidades grotescas, traições, dedicações, abnegações, derrotas, vitórias, lutas de morte, infortúnios e súbitas fortunas […]. (idem: 91)

 

As latitudes quentes, húmidas, onde tudo floresce depressa e depressa apodrece, tornam mais visível o que há de fugaz nas nossas vidas. A irrealidade daquele quase-idílio convidava a não prosseguir viagem, a ficar na calma senhorial da tarde deixando escorrer as horas, contemplando o deslizar dos dias, dialogando com aqueles que por aqui passaram e cujas vidas podem apossar-se de nós a ponto de se recusarem a passar. (idem: 106)

 

O visitante ocidental que pela primeira vez chega a Goa e Cochim enfrentará provavelmente a vertigem do caos à sua volta e dentro de si. Quando começa a familiarizar-se com a estonteante exuberância e com as contradições coexistentes, quando julga começar a entender a complexidade das castas, dos cultos e costumes tão diferentes, quando começa a fixar nomes, imagens, atributos dos deuses, tudo lhe foge de súbito, tudo se torna de novo confuso, como se o véu de Maia voltasse a cobrir a indecifrável irrealidade da Índia real. (idem: 142)

 

 

Bibliografia Ativa Selecionada

FARIA, Almeida (2012). O Murmúrio do Mundo. A Índia revisitada, Lisboa, Tinta-da-china.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

FARIA, Almeida (2017). Almeida Faria. “Já tenho uma ideia do que quero fazer no pouco tempo que me resta.”, entrevista com Diogo Vaz Pinto. https://sol.sapo.pt/artigo/553084/almeida-faria-ja-tenho-uma-ideia-do-que-quero-fazer-no-pouco-tempo-que-me-resta- [último acesso a 07-01-2018]

LOURENÇO, Eduardo (2012). A dupla viagem. Prefácio a O Murmúrio do Mundo. A Índia revisitada, Lisboa, Tinta-da-china, p. 07-16.

RUBIM, Gustavo (2012). Outra Índia. Público, 15 de fevereiro. https://www.publico.pt/2012/02/15/culturaipsilon/noticia/outra-india1657626 [último acesso a 15-12-2017]

SIMÕES, Maria de Lourdes Netto (1997). As razões do imaginário. Comunicar em tempo de revolução, 1960-1990. A ficção de Almeida Faria, Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado/Editus – Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz.

 

 

Igor de Souza Soares

(1º ano do Mestrado de Estudos Literários, Culturais e Interar-tes (MELCI): Ramo de Estudos Comparatistas e Relações Interculturais (2017-18))

Como citar este verbete:

SOARES, Igor de (2018), “Almeida Faria”, in Ulyssei@s: Enciclopédia Digital. ISBN 978-989-99375-2-9.
https://ulysseias.ilcml.com/pt/termo/almeida-faria/

Ligações externas:
http://dp.uc.pt/conteudos/corpus-de-ficcionistas-a-a-z/item/646-faria-almeida
https://www.portaldaliteratura.com/autores.php?autor=9