Slauerhoff, J.

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Slauerhoff, J.

(1898-1936)

Desde jovem fascinado pelo mar, Jan Jacob Slauerhoff optou por uma carreira como médico de bordo que o levaria para os quatro cantos do mundo. Trabalhou no Extremo Oriente (1925-1927), fez seis viagens para a América Latina (1928-1931) e contornou cinco vezes o continente africano (1932-1933). Depois de uma temporada nas Índias Orientais, fez ainda uma viagem africana, em 1935, vindo a falecer no ano seguinte, vítima da tuberculose que desde há muito tempo lhe minava o corpo.

A obra literária de Slauerhoff testemunha a crise da cultura ocidental e a crise de personalidade europeia da época de uma forma muito pessoal. Os eus líricos dos seus poemas e os protagonistas da sua ficção, por mais que possam parecer figuras fictícias ou históricas, têm o forte cunho do seu criador e da sua vida desassossegada. Slauerhoff tinha a sensação de ter nascido na época errada, descendente tardia de uma civilização europeia em declínio que perdera a força criativa e a força de vontade dos grandes navegadores e conquistadores, deixando de ser capaz de grandes empreendimentos. Identificava-se com grandes vultos do passado que lhe serviam de inspiração – conquistadores, descobridores e poetas ‘malditos’, entre os quais Camões. Dava-lhes os traços da sua própria insatisfação com a vida, moldando-os à sua imagem.

Como país de descobridores, nação fundadora de um vasto império na Ásia e terra natal de Camões, Portugal desempenha um papel de relevo na obra de Slauerhoff. Dentro do quadro de ascensão e declínio do império português, interpretava figuras e acontecimentos históricos como símbolos do desenvolvimento cíclico de um organismo vivo, tal como Oswald Spengler tinha feito em Der Untergang des Abendlandes (1918-1922). A mesma visão, aplicada ao império português e à figura de Camões, encontrou em Das Leiden des Camoes oder Untergang und Vollendung der portugiesischen Macht (1930) de Reinhold Schneider e, mais especificamente orientada para Macau, em Historic Macau (1926) de C.A. Montalto de Jesus. O último livro e uma breve permanência na colónia portuguesa na passagem de ano 1926/1927, deixaram uma marca profunda na obra literária de Slauerhoff. A adormecida enclave portuguesa com as suas ruínas evocativas da grandeza de outrora, com a sua importância ofuscada pela ascensão de Hong Kong, fascinou-o e facilitou-lhe o contacto com Camões. No volume de poesia Eldorado (1928), publica o poema ‘Camoes thuiskomst’ (Regresso de Camões) e dois poemas ligados às descobertas: ‘Columbus’ (Colombo) e ‘De ontdekker’ (O descobridor). No mesmo ano, sob o pseudónimo John Ravenswood, sai outro volume de poesia, intitulado Oost-Azië (Extremo Oriente), com uma secção de quatro poemas dedicadas a Macau, entre os quais um sobre as ruínas da catedral de São Paulo e mais um sobre Camões.

Durante a primeira visita a Macau, Slauerhoff escreveu um rascunho para o que viria a ser o seu primeiro romance, Het verboden rijk (O Reino Proibido, 1932). A personagem principal é um radiotelegrafista irlandês que, insatisfeito com a sua existência insignificante, nos mares da China cede à influência do espírito de Camões. Após um ataque de piratas chineses ao seu navio, é abandonado no interior da China, onde o espírito de Camões se apodera dele. As duas personagens confluem numa só que regressa ao Macau do século XVI, onde voltam a individualizar-se depois de uma ação heróica da personagem dupla contra uma força invasora. Camões fica atrás no século XVI para, isolado na sua gruta, trabalhar n’Os Lusíadas, ao passo que o radiotelegrafista regressa aos anos vinte do século XX. No romance seguinte, Het leven op aarde (A Vida na Terra, 1934), vai à procura do sentido da vida no interior da China. Em 1935, Slauerhoff publicou ainda um conto intitulado ‘Laatste verschijning van Camoes’ (Última aparição de Camões).

Slauerhoff fez uma boa dúzia de escalas em Lisboa nas suas viagens à América Latina. No seu diário anotava impressões da cidade e o poema ‘Aankomst’ (Chegada). Compôs vários outros poemas sobre Lisboa e ficou interessado no fado, adaptando algumas letras na sua poesia e captando a saudade e a tristeza características da canção em outros poemas, reunidos na secção ‘Saudade’ do volume Soleares (1934).

Em Lisboa, conheceu Albino Forjaz de Sampaio (1884-1949), com quem manteve uma correspondência. Na altura, Sampaio era diretor de uma História da Literatura Portuguesa Ilustrada (1929-1932) publicada em fascículos. Num dos fascículos dedicados a Camões (XXIV, Novembro de 1930, p. 367), incluiu duas fotografias de Slauerhoff – uma ao pé do busto de Camões em Macau e outra no uniforme de médico de bordo da Lloyd Real Holandesa. Slauerhoff, por sua vez, dedicou o Prólogo do seu primeiro romance a Forjaz de Sampaio.

Devido a frequentes problemas de saúde provocados pelas mudanças de clima durante as viagens, Slauerhoff procurou encontrar emprego em terra num clima ameno. Lisboa foi um dos sítios mais considerados para fixar residência. No entanto, o plano nunca se concretizou.

 

Passagens

Portugal, Ásia, EUA, Extremo-Oriente.

 

Citações

É o dia da passagem de ano. Atrás de mim ficou um ano que passei embarcado sem interrupções entre a Índia holandesa e a China, sempre no mundo oriental, sempre condenado à existência estreita do marinheiro. Quis fugir da vida de uma pequena sociedade e fui amarrado à vida mais limitada que existe na Terra, e mesmo no Extremo Oriente, a tacanhez holandesa continua a rodear-me de uma forma sufocante. Apenas pode ser evadida numa atmosfera que os ingleses encheram com a sua presunção e enfado (Hong-Kong, etc.).

Que consolo errar por uma cidade de civilização antiga, conhecido por ninguém mas todavia cumprimentado por alguns, onde, num jardim pequeno, mulheres entrelaçam flores nos cabelos negros. Que milagre desembarcar, no derradeiro dia de um ano de exílio, num vestígio da cultura mediterrânea.

Pensamentos tão profundos não me ocupavam naquele momento. Apenas me sentia, pela primeira vez após meses e meses, em perfeita harmonia com o ambiente, e isto provoca uma felicidade que é incomparável àquela em que a vida se exprime.

Macau era solitária, decadente e fatigada, e eu também. Macau perdurava numa beleza própria, à margem, apesar de Hong-Kong, apesar da supremacia inglesa, da perda das colónias, da podridão da mãe-pátria. Perdurava como por milagre. Então, por que havia eu de perecer inteiramente?

(POS, 2003 – tradução de um fragmento escrito após a primeira visita a Macau na passagem de ano 1926-1927)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

BRANCO, Cristina (2002), O Descobridor – Cristina Branco canta Slauerhoff. CD com versões cantadas de poemas traduzidos por Mila Vidal Paletti.
SLAUERHOFF, J. J. (1997), O Reino Proibido. Traduzido do neerlandês por Patrícia Couto e Arie Pos. Lisboa, Teorema.

Bibliografia Crítica Selecionada

COUTO, Patrícia (1999), “Camões e Macau num romance neerlandês”, Camões. Revista de Letras e Culturas Lusófonas 7, pp. 107-118.
—- (1996), “Por mares nunca dantes navegados”: Het verboden rijk de Johan Jacob Slauerhoff. Tese de Mestrado, Lisboa, Faculdade de Letras.
POS, Arie (2003), “Ponto de Refúgio e Inspiração. Macau na obra do escritor neerlandês Jan Jacob Slauerhoff (1898-1936)”, Revista de Cultura. Edição Internacional 7, pp. 126-135.
—- (2006), “A imagem de Macau e China na obra do romancista/poeta neerlandês J.J. Slauerhoff (1898-1936)”, in Ana Maria Amaro et al. (coord.), Estudos sobre a China VIII. 2.º Vol, Lisboa, ISCSP, pp. 827-846.

Arie Pos