(1948-)
Gerhard Köpf nasceu na Baviera (Alemanha) em 1948, estudou Germanística em Munique, tendo-se doutorado em 1974. Foi professor de Literatura Contemporânea e Literatura Aplicada em diferentes universidades alemãs e a partir de 1984 na Universidade de Duisburgo. Começa a escrever na década de 70, escolhendo o cenário da cidade fictícia de Thulsern, na região de Allgäu, na Baviera, retratando nas suas ficções a sua zona natal e aspectos da história e da sociedade alemãs do pós-guerra. Um dos traços mais característicos da prosa de Köpf é o seu gosto pela repetição formal e temática, sendo usual encontrarmos em diferentes obras referências e citações de textos anteriores e dentro de cada uma delas encontramos a mesma técnica. Essencial é para o autor aquilo que denomina de “receção produtiva”, ligado a uma intensiva utilização da intertextualidade.
Em 1991 publica Borges gibt es nicht, uma novela centrada à volta de um professor de Lusitanística (“uma ciência da decadência”, como o narrador explicita), que vai proferir em Macau uma conferência sobre Don Quixote, defendendo a tese de que foi Shakespeare quem escreveu Don Quijote, o que o faz objeto de chacota dos seus colegas académicos e dos críticos. É um narrador totalmente solitário, exceptuando nos livros. “O texto trata da relação entre a fantasia e a existência empírica, entre uma fantasia literária sem limites, e finalmente entre literatura e morte.” (Kaiser, 1999: 8)
A novela começa com um tema introdutório: num voo na Indonésia, ouve um argentino, Christofari, a defender a tese de que Borges nunca terá existido, sendo uma criação de outro escritor argentino Adolfo Bioy Casares, que, apesar de ter alcançado alguma notoriedade, nada comparado com a figura ficcional que criou. Esta tese não é nova e tem por base o próprio Borges e um artigo publicado por Dan Yellow já em 1981, a que se seguiu a divulgação da notícia em alguns jornais franceses e espanhóis. O papel de Borges teria sido interpretado pelo ator uruguaio Aquiles Scatamacchia. Adriana Massa, professora na Universidade de Córdoba (Argentina), refere-se detalhadamente a essa história. Nesta novela, tal como noutras ficções do autor, pontificam as variações temáticas “y que se constituye en un elemento estructurante de su producción literária: la repetición.” (Massa, 2012: 3). Esta estudiosa cita o autor, que escreve em Lob der Nacherzählung (1991): “una y outra vez se trata de repetición y memoria, es decir: el mistério se resuelve sólo cuando se presenta de nuevo”(idem ibidem). Trata-se, nas palavras de Julio Hernández, “de uma homenagem parodiada” a Borges, onde mais importante do que contar é contar de novo (Hernández 1994:2). Daí a presença constante da literatura, de intertextos literários, de temas como a morte (por exemplo, na falha dos motores no primeiro capítulo, na referência detalhada ao massacre da Praça de Tiananmen, em 1989, nas referências ao período da 2ª Grande Guerra, no cadáver de uma pessoa que fora atropelada pelo comboio que lhe colocam no seu compartimento ou aos cadáveres a boiarem no mar junto a Macau, e muito especialmente nas referências ao suicídio que está a preparar). E muito borgesianamente, a relação entre a realidade vivida e a lida, esta implicando a autobiografia, ainda que ficcionalizada. A leitura, isto é o viver o mundo pelos livros, é uma das formas da identidade. Esta procura da identidade, na novela em questão, é formalmente apresentada na passagem frequente entre a 1ª e a 3ª pessoa (Delille 1991: 81, ver a primeira das citações).
Olhemos para a presença de Portugal na novela, escrita na perspetiva de um Lusitanista “desiludido em termos amorosos, familiares e profissionais, com a sua vida real e apresentando o universo ficcional dos livros como único espaço habitável” (Delille 1992: 79) Ela reflecte-se, essencialmente, em três lugares: Macau, Lisboa e Coimbra. Macau, como colónia portuguesa, portanto europeia, surge, por um lado, no seu aspeto decadente, como um símbolo da decadência europeia, aumentado “pela percepção de um conjunto de odores em que se destacam de forma disfórica os da cozinha chinesa”. (Delille 1992: 82). “Macau como símbolo da Europa” (Köpf, 1991: 143) Mas pouco aparece da cidade, para além de algumas referências topológicas, o Hotel Lisboa, a Gruta de Camões, os casinos, a prostituição, e também o Hotel Bela Vista, o hotel escolhido para terminar a sua vida. É neste clima que se insere também o trabalho que tem em mãos, a publicação de uma antologia de relatos de naufrágios portugueses. Tudo parece perdido: a vida de tantos em nome de um império perdido, também D.Sebastião.
A contrastar com a visão claramente disfórica de Macau, há dois passos que se contrapõem a esta visão negativista dominante: a lembrança da brisa lisboeta, “as alegrias matinais quando Lisboa acorda” (Delille 1992: 88) e a visita ao Dr. Adolfo Rocha, médico otorrino. Se o pouco de Coimbra que aparece na novela acompanha a tendência disfórica da apresentação topológica, o encontro com o médico apresenta-se como um dos poucos momentos positivos da visita. O narrador delicia-se com a leitura que Rocha faz da sua obra sempre em reconstrução “A criação do mundo”. Köpf vai utilizar aqui o relato que fez antes da visita a Coimbra ao escritor Miguel Torga num artigo publicado em abril de 1989, entretanto traduzido para português por Maria António Hörster: “In extremer Schräglage. Ein Nachmittag mit Miguel Torga”. Adolfo Rocha é uma ficcionalização de Miguel Torga, como Borges o fora de Casares e Cervantes de Shakespeare. Na ficção estas transformações são possíveis e até podem permitir novas leituras. Longe da realidade, mas reais nos livros. É o poder da ficção e da fantasia.
Passagens
Nova Zelândia, Austrália, Indonésia, China, Canadá, Portugal …
Citações
(utilizarei aqui passos da novela traduzidos por Maria Manuela Gouveia Delille, incluídos no seu artigo de 1992)
Com soberba eu reconhecia em mim, ele reconhecia em si um especialista: na conjuração de sombras. Macau ajudava-o nessa arte. Via continuamente o mesmo filme, que essa cidade lhe passava cintilante à frente dos olhos: O império perdido, a vanidade, o fim. (Delille 1992: 81; Borges 1991: 74/75)
Era a custo que se movia no meio de cheiros a óleo, a massa e a cozinhados baratos; feijões brancos e gordos arregalavam para ele os olhos, deslizavam no óleo, boiavam num caldo de vinagre, cheiravam a peixe; tresandavam a gordura as massas, que, moles como cobras e chorumentas, se contorciam à volta das bocas, e eram pelos beiços devoradas como as línguas dos amantes. (idem: 83; Borges 1991: 151)
Macau é uma casa de jogo, até as crianças já estão contagiadas por essa febre. Duas ou três ruas mais adiante ergue-se o Hotel Lisboa, uma imponente torta congelada de betão. Aí os quartos estão sempre esgotados. (idem: 85; Borges 1991: 79)
Macau não tem futuro. Macau é uma verruga no ventre gordo da China. O esplendor dos tempos passados está empalecido, desfolha-se, apodrece, afunda-se em esquecimento. Este é o lugar que ele escolheu para o final. Campo de recolha para refugiados e aventureiros. O último bastião europeu no ultramar. […] Na realidade, degradada até a um estado de total insignificância. Cansada e exausta. O seu lugar. (idem: 87; Borges 1991: 73-4)
Ele suspirava pela frescura matinal à sombra de casas altas, pelas cores e pelo vento de Lisboa, quando o sol brinca com os telhados e vagueia à volta dos velhos muros. […] E as alegrias matinais quando Lisboa acorda. Iria sentar-se a engraxar os sapatos e iria ao barbeiro, compraria um jornal, a cheirar ainda a tipografias, tomaria café num bar, numa mesinha lisa de mármore, sentar-se-ia ao lado de homens perfumados e comtemplaria sereno o movimento da rua. Mais tarde, mandaria embrulhar um lanche, pão, carne assada, um pouco de frango, fruta e vinho, e iria até Cascais ou só até Belém, para à sombra da torre ver correr a água do rio e mandar Vasco regressar com Camões a bordo. (idem: 88-9; Borges 1991: 156)
Diante de mim está Rocha, na sua bata de médico, com uma expressão meio divertida no rosto. Manda-me entrar, que entre. A sala de consultas é ainda mais pequena do que a sala de espera. Junto à janela, uma secretária irremediavelmente atulhada de manuscritos. Como que acanhada no meio daquilo tudo, uma máquina de escrever pré-diluviana. (tradução de Maria António Ferreira Hörster, apud Delille 1992: 94; Borges 1991: 120)
Bibliografia Ativa Selecionada
Köpf, Gerhard (1991), Borges gibt es nicht, Frankfurt/M, Luchterhand Literaturverlag.
Köpf, Gerhard (1989),“In extremer Schräglage. Ein Nachmittag mit Miguel Torga“, 1-2 de abril de 1989, Süddeutsche Zeitung. Tradução portuguesa de Maria António Ferreira Hörster, “Inclinação extrema. Uma tarde com Miguel Torga”, Colóquio Letras nº 120 (Abril de 1991), p. 161-165).
Köpf, Gerhard (1992), Borges gibt es nicht, tradução da secção referente ao encontro com o Dr. Adolfo Rocha em Coimbra. Tradução de Maria António Ferreira Hörster, in Runa nº 17-18/1992, p. 94- 96).
Bibliografia Crítica Selecionada
Delille, Maria Manuela Gouveia Delille (1992), “Imagens de Portugal na novela de Gerhard Köpf Borges gibt es nicht (1991)”, Runa nº 17-18/1992, p. 77- 97.
Hernández, Julio C. (1994), “Gerhard Köpf – oder: den Schrifsteller gibt es nur im Konjuntiv”, in Via Regia – Blätter für internationale kulturelle Kommunikation, Heft 20 (www.via-regia.org, visionado em 12.12.2017).
Kaiser, Herbert (1999), “Gerhard Köpf”, in Kritisches Lexikon zur deutschsprachigen Gegenwartsliteratur, edition text + kritik, Richard Boorberg Verlag.
Massa, Adriana (2012), “La frontera entre realidade y ficción en Borges no existe de Gerhard Köpf”, in http://citclot.fahce.unlp.edu.ar/viii-cogresso (visionado em 12.12.2017).
Gonçalo Vilas-Boas