(1903-1949)
H. G., escritor e músico nascido em Praga, no seio de uma abastada família de judeus alemães assimilados, doutorado em filosofia e direito, deixou a cidade natal em fevereiro de 1939. Destino era Paris, não com o objetivo de se exilar definitivamente, mas para realizar um concerto de piano que lhe garantia a oportunidade de salvar três valiosos pianos históricos da perigosa instabilidade checoslovaca. Todavia, devido à ocupação nacional-socialista do seu país logo no mês seguinte, já não regressa a Praga. Em junho de 1940, perante a iminência da queda de Paris, evade-se ilegalmente para Biarritz, depois Bordeaux, onde se reúne com a família do irmão e, com o resultado da venda de um violino Stradivarius, conseguem rapidamente o visto de passagem por Espanha e Portugal. Chegam ao nosso país nesse mesmo mês, seguindo para os Estados Unidos a bordo do “Niassa” após uma espera de quase seis meses pela documentação necessária. Virá a falecer em Nova Iorque, onde foi professor de música, desde 1941 numa escola própria, a partir de 1946 na prestigiada “Mannes College of Music” (Hobi 1969: 13ss.).
Talento precoce, com um acolhimento encomiástico por parte de figuras como Klaus Mann ou Theodor Adorno (Schütz 1988: 85) logo aquando da sua estreia literária com o romance Der Stadtpark (1935) [O parque da cidade], H. G. é, todavia, um autor ainda hoje pouco presente, tanto na crítica como no mercado literário. Para esse esquecimento, estranho dada a extraordinária qualidade literária da sua obra, terão contribuído fatores como o clima do após-guerra, adverso a autores desconhecidos antes de 1933, e, muito particularmente, a grande escassez de textos que nos legou. Para além de alguns trabalhos menores e do referido romance, cujo parentesco com a escrita de Proust é sublinhado por todos os admiradores (Schütz 1988: 86), apenas foi dada à estampa, já postumamente, uma antologia de sete curtas novelas, consideradas como o clímax da arte narrativa de H. G. (Gil Serra 2011: 127) e reunidas sob o título de Hochzeit in Brooklyn (1957) [Casamento em Brooklyn]. Romance e novelas foram reeditadas nos anos 80 numa coleção dedicada à literatura do exílio.
Dois grandes núcleos temáticos dominam a obra literária de H. G.. Quando ainda radicado na Europa, evoca o mundo em declínio da grande burguesia de Praga pouco antes do deflagrar da Grande Guerra (Der Stadtpark e, p. ex., a novela Die Mondnacht [A noite de luar], incluída em Hochzeit in Brooklyn). Já no exílio dos Estados Unidos, a sua obra é uma desencantada reconstrução literária da experiência própria com o nazismo e com a vida na emigração, nomeadamente em três das novelas que se integram na referida antologia. Formando como que uma trilogia, Die Advokatenkanzlei [O escritório de advocacia] trata o insidioso surgimento do nacional-socialismo no quotidiano austríaco, Hochzeit in Brooklyn a frustração das expectativas de um exilado nos Estados Unidos, e Ruhe auf der Flucht [Tranquilidade na fuga] a atribulada fuga da Europa através da rota ibérica (Cramer 1994: 212-214).
Todavia, o que mais distingue as novelas de H. G. de muitas outras obras de exílio e mais toca o leitor é a técnica narrativa (Hayner 2012): em contraste com a temática, a escrita é suave, contida, de grande sensibilidade, plena de eufemismos e de alusões, privilegiando o apenas implícito e perpassada por um discurso musical, sóbrio, preciso, e, simultaneamente, por uma empatia distanciada e uma subtil mas cortante ironia. Talvez por esta especificidade, amplamente desenvolvida em Ruhe auf der Flucht, H. G. duvidasse da maturidade do público para compreender e valorizar esta novela, que encarava como a mais importante (Grab, apud Cramer, 1994: 522).
Ruhe auf der Flucht, obra ficcional de inspiração autobiográfica (Gil Serra 2011: 132), considerada pelo próprio H. G. como um “quadro em miniatura” (Grab, apud Cramer 1994: 215) da sua estadia em Portugal, remete, pelo título, para a iconografia sobre a fuga da Sagrada Família para o Egito (Cramer 1994: 226). A novela, de 35 páginas, gira em torno dos Ehrlich (= honrado, honesto), um amável casal vienense de meia-idade que, em junho de 1940, e depois de uma difícil fuga de Paris, chega a Lisboa, local de trânsito para o exílio no Novo Mundo. Começa então uma espera desgastante por um visto, na qual serão confrontados com a política de imigração e a indiferença da diplomacia no Consulado dos Estados Unidos. Todavia, a narrativa não se esgota no percurso trágico do casal que, implicando para o Sr. Ehrlich a morte, contrasta ironicamente com o final feliz evocado pelo título (Cramer 1994: 226). Concentrando-se simultaneamente no pequeno núcleo de emigrados judeus instalados na pensão em que os Ehrlich também se hospedarão, e alargando-se ainda com leves alusões à situação bélica mundial (63, 81, 89), o texto ilustra exemplarmente o deplorável destino dos refugiados do nacional-socialismo em geral e dos “filhos de Israel” (87) em particular.
No que toca à imagem de Portugal, “país de laranjas e de vinho doce” (67), regista-se que o olhar do narrador, oscilando entre uma posição autoral e uma colagem à perspetiva das várias figuras, incide sobretudo sobre a situação traumática dos emigrados, pouco predispostos a vivenciar o país / a cidade por onde transitam. Nessa medida, não surpreende que, numa coexistência das duas realidades antagónicas expressas no título (Gil Serra 201: 136), a indiferente e tranquila beleza meridional de Lisboa constitua fundamentalmente cenário e contraponto da luta desesperada pelos documentos necessários.
A um primeiro olhar, e não obstante as reservas dos Ehrlich em aceitar o outro na sua especificidade (67), Lisboa parece-lhes quase um amável destino de lazer, cheio de luz, de calor, de cores estivais (63, 68). Contudo, não é em aspetos atmosféricos, topográficos, arquitetónicos ou políticos que se centra a imagem de Portugal veiculada pela novela. É certo que se registam brevíssimas alusões ao regime do Estado Novo – aflora-se, p. ex., a posição ambígua de Salazar no xadrez político internacional, o que reforça as instabilidades dos refugiados (72); também não se esquece a Exposição do Mundo Português, entendida porém, não como propaganda do Portugal colonialista, antes como mostra talvez nostálgica do brilho passado do país (80). Todavia, e embora o narrador se foque mais nas pessoas, no pulsar da vida quotidiana e na atmosfera de Lisboa, também estes são aspetos apenas brevemente aflorados: desde os cheiros que andam no ar (77) e as peixeiras com a canastra na cabeça na parte velha da cidade (93), passando pelo porto com os navios carregados (77) – não sem uma achega sobre o lucrativo comércio com as colónias (64) –, pelas esplanadas na Av. da Liberdade (68) cheias de “refugiados e agentes secretos” (79), até raros gestos de solidariedade para com os emigrados (97) e à forma dos cumprimentos masculinos (77) – certamente estranhos aos olhos da Europa Central.
À medida que a situação do casal se vai agravando, também Portugal perde parte considerável da amabilidade inicial, da qual, aliás, o narrador logo duvida (66). Com o inverno, o mau tempo fustiga a cidade. Por seu turno, os parcos recursos do casal haviam-no obrigado a trocar o elegante hotel na Baixa onde haviam sido tratados como hóspedes distintos – lembrem-se as refeições, excelentes e excessivas (64, 73) – por uma modesta pensão, escura, cheirando a humidade (74), gelada nas noites de inverno (92). O dono, como sugere o narrador, apenas interessado no lucro que os refugiados lhe trazem mas incapaz de sentir a tragédia dos seus hóspedes, revela traços de xenofobia, e só a pobre criada Esmeralda, que trabalha até altas horas e cuja exploração é estranhada pela Sra. Ehrlich (75-76), demonstra alguma empatia para com o Sr. Ehrlich (92).
O escritor e ensaísta Max Brod – mais conhecido como testamentário de Kafka –, tão parcimonioso em louvores, não hesitou em considerar Ruhe auf der Flucht como uma obra imortal (Brod 1979: 232).
Passagens
França, Portugal, Estados Unidos
Citações
A sala de jantar [da pensão] nunca tinha estado tão cheia. Os estrangeiros exaltavam-se quando tinham de esperar pela comida. Mas o Senhor Carvalho encolhia os ombros. Dois criados tinham chegado sempre, por que não haviam de chegar agora? Também não ocorria ao Sr. Carvalho uma alteração do menu. Ele próprio apreciava o molho de cebola e o azeite, o peixe e também o assado eram preparados como a sua mãe em Coimbra e até já a sua avó em Pombal os haviam preparado, os estrangeiros tinham de os comer assim, porque ninguém os tinha chamado para cá. (RF: 76; trad. minha)
O Sr. Dr. Winterfeld […] via a vida nas ruas novas, o cumprimento dos homens portugueses que se abraçavam, batiam longamente nas costas uns dos outros e depois se separavam sem dizer palavra. Tomava o elevador para a parte alta, aqui andava em todas as direções, era a cidade velha, frequentemente vinha um almocreve pela viela, e o cheiro a queijo e azeite andava no ar. (RF: 77; trad. minha)
Esmeralda ajudava na lavandaria, que exalava para o corredor o cheiro de panos a secar, arrumava os quartos dos dois andares, ajudava na cozinha e em horas tardias esfregava o chão. Trabalhava tal como as raparigas portuguesas trabalham nos campos e nas fábricas, como as raparigas que trazem pelas ruas as canastras com peixe, trabalhava como todos que, sob este sol amável do sul, nasceram assim tão pobres, para envelhecerem e morrerem na mesma pobreza. (RF: 93; trad. minha)
O capitão [do navio], que tratava o seu carregamento de pessoas com amabilidade, disponibilizou todos os espaços da primeira classe também para os passageiros da segunda e terceira classes. (RF: 97; trad. minha)
Bibliografia Ativa Selecionada
Grab, Hermann (1995), Ruhe auf der Flucht, in G., H., Hochzeit in Brooklyn, Frankfurt/Main, Verlag Neue Kritik: 63-97. [11957]
Bibliografia Crítica Selecionada
Brod, Max (1979), Der Prager Kreis, Frankfurt/Main, Suhrkamp.
Cramer, Doortje (1994), Von Prag nach New York ohne Wiederkehr. Leben und Werk Hermann Grabs (1903-1949), Frankfurt/Main, Berlin, Bern, New York, Paris, Wien, Peter Lang.
Gil Serra, Ana Fe (2011), Exilio alemán en Estados Unidos: la voz de la resistencia, Almería, Editorial Universidad de Almería
Hayner, Jakob (2012), “Was vom Erzählen übrig blieb. Über die vergessene Modernität des deutsch-jüdischen Schriftstellers Hermann Grab”, Jungle World, Nr. 50, 13. December – http://jungle-world.com/artikel/2012/50/46803.html (acedido 21. 6. 2016)
Hobi, Karl (1969), Hermann Grab. Leben und Werk, Dissertation zur Erlangung der Doktorwürde der Philosophischen Fakultät der Universität Freiburg in der Schweiz.
Schütz, Hans J. (1988), “Ein deutscher Dichter bin ich einst gewesen”. Vergessene und verkannte Autoren des 20. Jahrhunderts, München, Verlag C. H. Beck.
Maria Antónia Gaspar Teixeira