(1901-1980)
Nasceu em Lisboa, mas viveu expatriado cerca de quatro décadas nos E.U.A., apenas interrompidas por uma estada, entre 1949-50, no Brasil e por regressos esporádicos a Portugal (alguns prolongados como em 1946-47 e 1957-59). Licenciado em Direito em 1924, e em Ciências Pedagógicas em 1933 (Bruxelas), antes de emigrar, José Rodrigues Miguéis exerceu a advocacia, foi delegado do Ministério Público e professor do ensino secundário. Colaborou ativamente, desde os anos 1920, na imprensa periódica, destacando-se a sua militância n’A República e na Seara Nova, tendo, com Bento de Jesus Caraça, dirigido o semanário O Globo (1933). Menos ativa nos E.U.A, esta vocação jornalística recrudesce no pós-25 de Abril, mediante uma colaboração intensa no Diário Popular (1975-1980). O seu empenhamento político em causas cívicas e humanitárias manifesta-se ainda enquanto estudante universitário e continuará nos E.U.A., sob a forma de artigos e intervenções públicas em defesa dos emigrantes luso-espanhóis e da crítica ao franquismo. Em Nova Iorque funda o Clube Operário Português e, em 1961, é eleito Correspondente da Hispanic Society of America e da Communità Europea di Scritori.
O caso de “exílio” de José Rodrigues Miguéis é bem eloquente quanto aos estratagemas do Estado Novo na repressão da vida intelectual portuguesa. Com o nome censurado nos jornais, proibido de escrever na imprensa, desiludido com a advocacia, Miguéis condenou-se, como se sabe, a um auto-exílio nos EUA.. É aí que, livre dos constrangimentos da Censura, produz uma vastíssima obra, que se estende do romance e do conto à crónica, ao ensaio e ao teatro, e à qual se junta uma importante obra ensaística, bem como uma poética do romance, exposta em paratextos diversos. Embora influenciado pelo ideário estético da Presença e do Neo-Realismo, constrói uma obra à margem de qualquer escola, que combina harmoniosamente as leituras dos seus mestres (Camilo, Eça, Raúl Brandão, Dostoeivski) com a experiência vivida ou testemunhal da emigração e do desenraizamento. É inquestionável que Portugal (paisagem, sociedade, história) é a personagem nuclear da sua obra ficcional, mas talvez em nenhum autor português do século XX os temas do exílio, do expatriamento, da emigração, da viagem e da memória, sejam tão recorrentemente tratados. Mesmo um romance “semi-policial”, com uma vertente lúdica, como Uma Aventura Inquietante, é, como diz Eduardo Lourenço, um “exemplo típico de literatura de exílio” (1994: 215). A génese desse livro remonta a um folhetim de 1934, ao tempo em que Miguéis, a viver na Bélgica, contacta com expatriados russos e viaja por países europeus – experiências relatadas na Seara Nova, na série de textos Tablóides, e fonte de inspiração para muitos contos de Gente da Terceira Classe. Confinado, na maior parte do tempo, ao espaço da sua casa em Nova Iorque, Miguéis, como afirma Onésimo T. de Almeida, nunca abandonou Lisboa, “a terra natal onde (…) afinal sempre viveu em espírito” (2001:13). Eduardo Lourenço corrobora esta ideia, quando afirma: “Ausente, o exilado está essencialmente na terra que deixou” (loc. cit.: 210). Desta clivagem entre ausência e presença em dois espaços nunca plenamente habitados nos dão conta muitas das narrativas de Miguéis, que tematizam a vivência de um sujeito cindido, situado numa espécie de entrelugar. Muitos dos seus protagonistas vivem o dilema comum a muitos “emigrados”: o desejo de regresso à pátria e o reconhecimento dessa impossibilidade. Por isso, para lá do macro-tema do “exílio” (ainda abordado em O Milagre segundo Salomé, 1975), o “retorno” é outro grande tema migueisiano – magnificamente tratado em “Regresso à Cúpula da Pena”, ou, num registo existencial, de cariz autobiográfico, em Um Homem sorri à Morte com Meia Cara.
Se a “América” é um lugar quase vazio na obra ficcional de Miguéis é, decerto, o contacto com a sociedade americana e a distância física da pátria que (tal como em Eça de Queirós) refina o olhar clínico, a subtil ironia, o cáustico diagnóstico que faz da sociedade portuguesa nos seus mais diversos domínios. É também essa distância que explicará, em parte, a prolixidade de prefácios e posfácios nos seus romances – lugares privilegiados para a explicação e para o diálogo com os seus longínquos leitores portugueses.
A estada de Rodrigues Miguéis nos EUA fez dele um importante agente cultural na divulgação da literatura e cultura americanas quer em Portugal quer no Brasil. Para lá do trabalho, durante quase uma década, como Assistant Editor das Selecções do Reader’s Digest, Miguéis traduziu grandes autores da literatura norte-americana, como Carson McCullers, Erskine Caldwell ou F. Scott Fitzgerald. O reconhecimento institucional – desde a atribuição da Medalha da Ordem Militar de Santiago de Espada (1979) aos Colóquios realizados em Portugal, graças, sobretudo, ao empenho de Onésimo T. de Almeida – ainda não se traduziu, porém, na merecida valorização pública e na redescoberta de um autor que em muito contribuiu para alargar os horizontes culturais dos portugueses no tempo do Estado Novo e para a revitalização da língua portuguesa.
Em 1983, na sequência de um trabalho conjunto de Onésimo T. de Almeida, de George Monteiro e de Camilla Miguéis, para reunir os documentos dispersos do escritor, foram criados os “José Rodrigues Miguéis Archives” integrados em “Special Collections” da John Hay Library (Univ. Brown).
Passagens
Portugal, EUA, Brasil, Bélgica.
Citações
Sabemos racionalmente que nunca se volta ao lar, nunca se repete um gesto, acto, situação, emoção ou pensamento, como (…) nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio. Somos irreversivelmente arrastados, numa curva indefinível, através do ignoto do que somos uma parte mínima. Ora, não voltar ao passado, ou não o perpetuar no presente, é perder o que somos-fomos, até como memória, que é quanto dele nos resta. (“Nota” a Nikalai, Nikalai: 254).
Com grande espanto, vejo logo à cabeça da lista esta coisa inesperada: Sopa de nabos com feijão branco à portuguesa. Nabos! Em Boitsfort! E feijão branco à portuguesa! Dei um pulo que fez sorrir a criadinha roliça, loira e flamenga a olho nu, que desenvoltamente se viera postar a meu lado.Como a todos os portugueses, sempre me alvoroçou encontrar lá fora, fosse onde fosse, um reflexo da nossa influência civilizadora. Não há português digno do nome que, passando por Paris, não vá abrir a boca de admiração a uma esquina da Rue de Lisbonne ou do Boulevard Pereyre; que não sinta espicaçá-lo uma ponta de orgulho ao ver, em Bucareste ou Nova Iorque, a tabuleta dum mercador chamado Portugal ou Portugalov, ou achar a cada passo, por esses restaurantes, as clássicas ‘ostras portuguesas’ ou a sopa de tomate a que chamam portugaise, talvez em homenagem à nossa nunca desmentida tesura. Uma cidade chamada Lisbon, no Ohio ou no Maine (ainda há outras), ou mesmo Angola (Indiana ou Nova Iorque), enche-nos o peito de ufania. Uma simples refeição ao madère num romance de Dumas, ou ao porto numa novela russa; a menção duma personagem cosmopolita de apelido Faria ou Paiva, bastam para nos compensar de infindos amargos de boca patrióticos. Vaidades perdoáveis em quem, como Pedro Sem, já teve e agora não tem. (…) Quando a pequena me serviu a sopa, a fumegar numa funda e portuguesíssima tigela de barro vidrado de Estremoz, o meu assombro cresceu: era a legítima, a insofismável sopinha familiar de feijão branco! Ataquei-a com todo o fervor da minha gastronostalgia, e esqueci por completo o ensaio de bordoada que me preparava para aplicar à nossa culinária. (Uma Aventura Inquietante, 9.ª ed.: 12-14).
[A]quela era a América dos seus sonhos de menino; a América dos seus sonhos ilimitados, dos rios diluviais, das pradarias em flor, das manadas de búfalos, dos trilhos sem fim, dos índios livres – a América virgem, primitiva, que ele pressentia e nunca pudera encontrar, que talvez nunca tivesse existido senão nos livros, no sonho… Não importa, era essa que ele buscava, a sua América, El Dorado só dele, secreto e imenso. (…) Conhecia as estradas onde só há lugar para automóveis, as vias férreas que se desdobram ao infinito, eternamente convergindo para divergir de novo, as cidades cancerosas, as fábricas ciclópicas, os silos e armazéns, o negrume das favelas, o tumulto, os distantes casais ensimesmados em monotonia e desconfiança, as fazendas em ruínas e pó, os negros desalentados, e os brancos reduzidos, como eles, à miséria e à susperstição. (Para que os tinham trazido de além-mar, se não podiam preservar o Sonho?). (“A Esquina-do-Vento”, in Gente da Terceira Classe, 6.ª ed.: 112)
Bibliografia Ativa Selecionada
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—- (1958), Uma Aventura Inquietante, Lisboa, Iniciativas Editoriais.[ed.ut. (1989) 9ª ed., Lisboa, Editorial Estampa].
—- (1959), Um Homem Sorri à Morte – Com Meia Cara, Lisboa, Editorial Estúdios Cor.
—- (1960), A Escola do Paraíso, Lisboa, Editorial Estúdios Cor.
—- (1962), Gente da Terceira Classe, Lisboa, Editorial Estúdios Cor.
—- (1964), É Proibido Apontar – Reflexões de um Burguês – I, Lisboa, Editorial Estúdios Cor.
—- (1971), Nikalai! Nikalai! Seguido de A Múmia, Lisboa, Editorial Estúdios Cor.
—- (1973), O Espelho Poliédrico, Lisboa, Editorial Estúdios Cor.
—- (1974), As Harmonias do “Canelão” – Reflexões de um Burguês – II, Lisboa, Editorial Estúdios Cor.
—- (1975), O Milagre Segundo Salomé (2 vols.), Lisboa, Editorial Estúdios Cor.
—- (1982), Pass(ç)os Confusos, Lisboa, Editorial Estampa.
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Bibliografia Crítica Selecionada
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Maria de Lurdes Sampaio