(1915-1986)
Poeta, cronista, ensaísta. Licenciado em engenharia Agrónoma pelo Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, foi ainda meteorologista e fitogeógrafo. Doutorou-se em Antropologia Social e Etnologia (1961) pela Universidade de Oxford. A vida, o corpo, de Ruy Cinatti é um alargado mapa-mundi. A mãe nasceu em Macau, de ascendentes italianos (toscanos) e chineses. O pai era português, produto de uma mistura de transmontanos e algarvios. Rui Cinatti nasceria em Londres (15/3/1915), mas partiria aos dois anos para Nova York, para a segunda das muitas casas que teve ao longo da vida. Rever-se-á sempre nas viagens literárias de Júlio Verne, H. Melville, Stevenson, ou Alain Gerbault. A este último erigirá depois “túmulo condigno” em Timor. Intitula o seu primeiro livro de poesia Nós não somos deste mundo (1941) e o segundo O livro do nómada meu amigo (1958). Significativo é que, já em 1942-1944, Cinatti tenha dado a uma revista o nome de Aventura, pensando chamar-lhe primeiro Utopia (Frias, pref. 2016: 19). No final da adolescência é muito marcado pelo I Cruzeiro de Férias às Colónias, visitando durante dois meses Cabo Verde, a Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola (1935). Em 1943 empreende uma longa viagem por Espanha. Visitará países tão diversos quanto a Austrália (1947) ou o Afeganistão (1965), a Suíça (1964) ou o México (1966). Ao longo da sua vida viveu/ escreveu sobre Cabo Verde, São Tomé, Príncipe, Angola, Macau, Timor, o mais longínquo território português, e onde mais perto se teria sentido do que era uma pátria terrena: “a minha pátria é Deus, a minha segunda pátria é Timor” (entrevista a Joaquim Furtado, Grande Reportagem, 18: 4/4/1985: 44). A Timor regressará sob vários pretextos: (entre 1951-1956) depois de concluída a sua tese de licenciatura, para dirigir os Serviços de Agricultura; em 1961-1963, tendo então desenhado, fotografado e filmado a ilha. Regressará ainda por poucos meses em 1966, sendo-lhe recusado outros regressos pelo Governo Português de então. A partir de 1974, será a isso impedido pela guerra civil e a invasão de Timor pela Indonésia. Cinatti é o responsável pela valorização da cultura timorense desde os anos 40: em 1956 publicou “Em favor do Timorense”, em 1958, o “Plano de fomento agrário para Timor”. Foi um dos principais responsáveis pelo levantamento sistemático/ científico dos temas da cultura timorense, quer nos motivos artísticos da escultura e pintura, quer nos motivos literários. Mas também de vários livros de poesia dedicados a Timor, de que são exemplos O livro do nómada meu amigo (1958), Um Cancioneiro para Timor, premiado em 1968 (ed. 1997), Uma Sequência Timorense (1970), Paisagens Timorenses com vultos ou Timor-Amor (1974). Em muitos livros em que regista minuciosamente a variedade dos temas da cultura timorense, na arquitetura, no vestuário, na escultura, ou na literatura, pois para ele se fundem as formas com os conteúdos: cf. Explorações botânicas em Timor (1950), Motivos artísticos timorenses e a sua integração (1987), Arquitectura timorense (1987), etc.. Mas muitos outros poemas, relatos ou ensaios se encontram marcados pelo tema da viagem, da deslocação temporal/ espacial, do reconhecimento fácil do outro, estranho ou estrangeiro, quase todos sobre o espaço africano de colonização portuguesa: Ossobó, História dum Pássaro de S. Tomé (1936), Crónica Cabo-Verdiana (1967), Lembranças para São Tomé e Príncipe (1972, ed. 1979), Os poemas do itinerário angolano (1974). Como Camões, se acha “pelo mundo em pedaços repartido” (entrevista a Joaquim Furtado, 4-11/4/1985, 18: 44). António Dacosta ter-lhe-ia confessado a sua frustração quando tentou, em vão, fazer-lhe o retrato: “O teu rosto está cheio de linhas que se cruzam de forma muito confusa. Há o Oriente e o Ocidente na tua expressão” (apud Frias pref. 2016: 12).
Passagens
Inglaterra, EUA/ Nova Iorque, Timor (1946-1947; 1951-1955, 1958, 1961-1962, 1966), mais repetida ou demoradamente. Mas registam-se também passagens por muitas das então colónias portuguesas: Cabo Verde, a Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola (1935), regressando a Angola (1971) e a São Tomé e Príncipe (1972). A que se devem acrescentar as que fez por Espanha (1943), Austrália (1947), Singapura, (1952, 1955), Malaca (1952), Filipinas (1953), Hong-Kong e Macau (1953, 1955), Japão (1955), Jacarta e Bali (1955), Goa (1955), Paris (1956, 1965), Havai (1958), Holanda/ Leiden (1961), Taiti e Samoa (1961), Banguecoque (1962), Atenas (1962, 1965), Suíça, Holanda, Alemanha, Dinamarca (1964), Paquistão, Afeganistão, Irão (1965), México (1966), no que é mais facilmente assinalável.
Citações
“Aos quinze anos também partira para longe. Os mapas e os livros eram o mundo através do qual viajava. Deitado no chão do meu quarto, desdobrava o mapa, e durante uma ou duas horas ia riscando os itinerários. Porém as viagens eram tão emaranhadas, tão cheias de curvas e ziguezagues, que eu ficava sempre indeciso, sem saber por qual dos caminhos tomar” (Cinatti, Diário de Lisboa, 3/3/1983)
“Como disse, foi o convívio, mais do que outra preocupação de ordem intelectual de ordem intrínseca, que me levou a receber a lição de geografia humana, de etnografia, de filologia e, portanto, de solidariedade, que Timor. Com ela recebi a força que define o defensor de uma causa amada. A simples colheita de plantas obriga a desviar a atenção para fenómenos que outras funções estão longe de valorizar.” (Um Cancioneiro para Timor: 24)
“Gostaria que se alguém lesse os meus rabiscos me perguntasse: ‘Você esteve nesta região? Isto parece Ribatejo’, mas sem que sequer eu mencionasse um nome da terra que indicasse a situação geográfica do lugar descrito. Isso sim, então sentir-me-ia satisfeito […].” (Cinatti apud Stilwell 1995: 41)
“Tão vagabundo eu fui/ neste campo de flores e silvas;” (Nós não somos deste mundo, Cinatti 2016: 55)
“Aqui começa o reino de Cham:/ florestas e desertos, aragens assassinas/ e uma humanidade que se desloca desde o nascer do mundo/ com os mesmos gestos, iguais farsas,/ a mesma preguiça pensativa, a mesma despreocupação/ e uma alegria feita de sorrisos impercetíveis;/ tal como sacerdotes que, uma vez sacrificada a vítima,/ monologam com Deus, num cântico cerrado, feito mais de sons que de palavras,/ e depois olham o céu estrelado/ num grande sono de paz e de assombrado recolhimento;/ Tal como as árvores da floresta em perpétuo movimento./ Oh, ninguém sabe o drama que vai lá por dentro” (Cinatti 2016: 92)
“Um dia voltarei,/ Viajante de silêncios e águas perdidas./ Um dia voltarei,/ marcado pelos vestígios de outros-mundos” (Cinatti 2016: 121)
“Venho de longas viagens./ Portos! – onde sois?/ Parti sem vos ter visto” (Cinatti 2016: 151)
“O vento uiva e o látego do frio,/ Rimbaud louco de amor,/ (O pureté…),/ Fustiga-lhe o cavalo, violenta-lhe a medida/ – Do Prestes João a Marselha que intensa despedida! -/ E dilacera-lhe o último lamento:/ (Usque ad exhaltationem spiritus desudant)/ Par l’esprit on va à Dieu./ (My kingdom for a horse, my kingdom for a horse)/ O meu cavalo,/ o meu cavalo,/ o meu cavalo,/ O meu cavalo por esse reino prometido!/ (Déchirante infortune…)” (Cinatti 2016: 272)
“Na curva da estrada,/ quem se encontrará?” (Cinatti 2016: 274)
“Num período de 150 anos,/ 24 períodos houve/ de fome/ interpolada./ Tirava-se a pele ao tambor/ para matar a fome/ à criança que chupava!/ E comia-se “potona”/ sem esperança de melhores dias./ Ainda hoje são vividas/ as fomes de Cabo Verde!” (Cinatti 2016: 366)
“Senhora de Barlavento/ não fala crioulo, não./ Tem uma fala regrada/ portuguesa, de serão: de balão/ cirandando pela casa./ Não desce à rua, não canta/ “Nha cretcheu”, senão baixinho.” (Cinatti 2016: 388)
“Dia./ Calma demais na baía azul/ contra a muralha adiante da outra ilha. […]/o morno desassossego/ que se respira em S. Vicente.” (Cinatti 2016: 411)
“Em Tahiti/ vivi/ aos vinte anos./ Passou-se o tempo./ […] Quando voltei,/ aos cinquenta,/ só não havia Loti./ Em Tahiti/ só havia americanos.” (Cinatti 2016: 447)
“O que Portugal/ poderia ser/ se todos os portugueses emigrassem…/ […] O que Portugal/ poderia ser/ se todos os portugueses regressassem” (Cinatti 2016: 513)
“Gondões de Dili, sarça verdejante/ debruçada no cais,/ esteio de navios,/ passeio de perdidos e de amantes,/ onde me acolhi um dia,/ trauteando a minha melodia” (Cinatti 2016: 584)
[As camenassas de Díli] Eram corolas róseas debruadas/ em fimbria de marfim,/ caindo uma a uma sobre a estrada,/ sem que o vento ou sopro as desligasse/ da copa verde afim./ Eram tão delicadas…” (Cinatti 2016: 586)
“Ó estrada de Lahane/ destroçada,/ destroncada!/ Dossel arbóreo, foliar,/ meu limbo-aquário uníssono!/ Que se amaldiçoe/ a mão que te tocou,/ como a que outrora, destroçou/ os gondões magníficos/ da beira-praia-cais,/ de Lecidere.” (Cinatti 2016: 606)
“Chego a Baucau, mas antes o provir/ pensado. Lautém, as casas mágicas/ assentes em pilares, os barcos/ simbólicos nas casas, o mundo/ dividido, esquadriado, o mundo/ com sentido. Minucio,/ quando subo o planalto,/ o meu passado nas pedras, nas ribeiras/ trespassadas por pontes.” (Cinatti 2016: 628)
“A arquitectura de Persépolis, formada por elementos de origem diversa mas sujeitos a uma ordem nova, o tipo de escultura funcionalmente ligado aos edifícios e as inscrições comemorativas de Dario denunciam preocupações que transcendem o preito de soberania militar e administrativa para se integrarem irresistivelmente em missão de mais alta consequência. Assiste-se ao nascer de uma dessas tentativas, recorrentes ao longo dos séculos, de assimilar, por esforço pacífico de síntese, os vários modos materiais e espirituais dos povos conquistados e, sob certos aspectos, mais evoluídos. […] A tolerância e a justiça, que não pertencem a ninguém, tomaram, pela primeira vez, no grande rei, forma estadual, símbolo de império. O planalto do Irão, fronteira geográfica de dois pensamentos opostos, foi lugar de permuta de patrimónios irrecusáveis. Por momentos matou-se a fome de que todos nós sofremos hoje. Por momentos, o Oriente e o Ocidente conjugaram esforços para uma síntese de almas.” (Cinatti 1965: 5 e 14)
“Como é admirável viajar, não importa aonde, desde que o desconhecido nos espera! Amanhã hão-de surgir novas coisas, tudo é feito de imponderáveis, novas paisagens, outras faces, outras nuvens que me hão-de distrair do sonho e do quotidiano inevitável. Depois há-de chegar o tempo em que eu me sinta como agora, e seja apenas um ser isolado que distribui as suas recordações ao longo de bissectrizes, que em mim se encontram como se no centro do mundo.” (Cinatti apud Stilwell 1995: 394)
Bibliografia Ativa Selecionada
CINATTI, Ruy (1936), Impressões de uma Viagem pelos Territórios Portugueses da África Ocidental, Separata de “Agros”, Associação de Estudantes de Agronomia, Lisboa.
— (1938), Partir!… Partir!… Primeiro dia de viagem, “Diário de Lisboa”, 3 d Março, pp. 3-4.
— (1939), Da arte de andar, “O Jornal da Mocidade Portuguesa”, n.º 37, pp. 7-8.
— (1941), A Alegria do Descobrimento, “O Mundo Português”, Lisboa, 8/ 92-93, pp. 343-9.
— (1958), O Livro do Nómada meu Amigo, Lisboa, Guimarães.
— (1965), Persépolis, Separata de “Geographica”, SGL, n.º 4, Out., pp. 2-17
— (1970), Uma Sequência Timorense, Braga, Ed. Pax.
— (1974), Os Poemas do Itinerário Angolano, Lobito, Capricórnio.
— (1974), Timor-Amor, Lisboa, Ed. Autor.
— (1974), Paisagens Timorenses com Vultos, Braga, Ed. Pax.
— (1979), Lembranças para S. Tomé e Príncipe – 1972, Évora, I.U.E.
— (1987), Motivos Artísticos Timorenses e a sua integração, Lisboa, IICT.
— (1996), Um Cancioneiro para Timor, Lisboa, Presença.
— (2016), Obra Poética. Volume I. ed. Luís Manuel Gaspar, revisão e colab. Joana Matos Frias (pref.) e Peter Stilwell (Cronologia), Lisboa, Assírio e Alvim.
Bibliografia Crítica Selecionada
Antunes, Manuel (1941), “Ruy Cinatti – Nós não somos deste mundo”, Brotéria, n.º 33 (1941), pp. 467 e 468.
Belo, Ruy (2002), “Apontamentos sobre o nomadismo de Ruy Cinatti”, Na Senda da Poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, pp. 170-177.
Frias, Joana Matos (2006), Retórica da imagem e poética imagista na poesia de Ruy Cinatti, dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Vol. I e II, Porto.
Ribeiro, Maria Margarida de Sá Calafate (1993), Ruy Cinatti – Em trânsito, Dissertação de mestrado apresentada à FCSH/UL, Lisboa.
Stilwell, Peter (1995), A condição humana em Ruy Cinatti, Editorial Presença, Lisboa.
Sena, Mécia de (1984), “Uma carta de Jorge de Sena a Ruy Cinatti”, Revista Colóquio/Letras. Documentos, n.º 80, Jul., p. 67-70.
Maria Luísa Malato