(1886-1974)
Nascido na Bélgica, mas tendo optado pela nacionalidade francesa em 1937, o escritor, ensaísta e jornalista Albert t’Serstevens, muito cedo começou a viajar, à semelhança de Blaise Cendrars, com quem privou e com quem manteve uma intensa correspondência epistolar.
Destes inúmeros périplos pelo mundo (Jugoslávia, Grécia, Turquia, Espanha, Itália, Magrebe, América Latina, Estados Unidos, Polinésia Francesa e Portugal, entre outros destinos), que sucedem ao seu traumatizante alistamento na Primeira Guerra Mundial, nasceram a matéria ficcional de vários romances, entre os quais Tahiti et sa couronne (1950) ou La grande plantation (1952), assim como várias narrativas de viagem, impressões e notas pessoais acerca das culturas e países percorridos, numa época em que as civilizações ainda apareciam ao viajante na sua diferenciação e exotismo autênticos.
Essas notas ficaram vertidas em “itinerários”, publicados antes, durante e após a Segunda Guerra Mundial, entre eles L’itinéraire portugais (1940), no qual Albert t’Sterstevens narra a sua longa jornada lusitana, de carro, com a companheira, Marie-Jeanne e o gato, Puma.
Este texto, desprovido de qualquer intuito de divulgação turística, e que acumula inúmeras gralhas ortográficas na transcrição de termos portugueses, nomeadamente toponímicos (Bussaco, sagrario, atoum, adeos, …), veicula uma certa imagologia do Portugal salazarista, que se articula em vários comentários e descrições atentas ao pormenor, onde não faltam quer o tom crítico, quer uma ponta de ironia e de bom humor na descoberta e descrição das terras, gentes e costumes.
Em primeiro lugar, o autor deste itinerário luso insiste numa demarcação radical e cultural de Portugal em relação a Espanha, objeto de um “itinerário” anterior, considerada mais suja, desorganizada; menos nobre: “Rien de plus dissemblable que ces deux pays voisins et qui ont une commune origine” (t’Serstevens, 1940: 20). Qualquer descrição proporciona um pretexto adicional para denegrir os costumes castelhanos pela comparação portuguesa: “Si la plupart des gosses mendient, ce n’est aucunement à l’espagnole, avec la ténacité larmoyante des ninos [sic] de Valladolid par exemple (…)”. (idem, 63).
Depois, há que salientar uma visão mítica da nação portuguesa e do seu destino no mundo. t’Sterstevens, que alude logo no princípio à vocação atlântica do nosso país: “J’ai quelquefois pensé que le Portugal pourrait s’appeler Atlantis” (idem, 3), vai percorrendo e revisitando a galeria entrosada das principais etapas da História e dos mitos nacionais, que parece inclusive querer explicar aos próprios portugueses: D. Sebastião, Pedro e Inês, a epopeia das Descobertas, o Terramoto de Lisboa, o Marquês de Pombal, as Invasões Francesas ou a ascensão de Salazar ao poder: “Constantia meurt. Pedro, libéré devant l’Eglise, épouse sa concubine, union privée, ce qu’on appelle aujourd’hui un mariage morganatique. Son père, le roi Alphonse, dissimule son dépit. Ils sont toujours, les hommes de ce siècle, à couver le crime sous un air de chaude affection” (idem, 43).
Por outro lado, Albert t’Sterstevens não esconde a sua deceção face às consequências desfiguradoras no património arquitetónico e cultural português do advento da primeira República; as quais se traduzem pela musealização fatal da fé e da arte vivas: “Toutes les autres églises de Lisbonne ont cet aspect de monuments profanes que devait leur donner un siècle qui n’avait plus de foi” (idem, 76); impressão essa que o Convento da Batalha também transmite ao visitante: “Les Frères Prêcheurs ont dû l’abandonner, en 1834, et la ruine s’y est mise comme ailleurs. Mais le monument a repris depuis quelques années une signification nouvelle” (idem, 47).
Por fim, ‘t Sterstevens não deixa de manifestar uma certa admiração pela figura política e intelectual de Salazar, “dictateur malgré lui” e “grand homme d’Etat” (idem, 107), que lhe concede, aliás, uma audiência em Santa Comba Dão, e cuja personalidade austera, abnegada e corajosa o marcará positivamente: “Il arrive à Lisbonne, il éconduit les aigrefins internationaux. – Merci, messieurs, le Portugal va se débrouiller tout seul!” (idem, 106). Ao deixar o ditador português, o viandante belgo-francês é categórico na sua apreciação favorável da personagem, e do regime: “(…) servir son pays. Quel est son but? Aucune ambition personnelle” (idem,113).
Mas o “itinerário português” de Albert t’Sterstevens denuncia igualmente uma inscrição identitária pessoal do autor, dividido entre a pertença francesa recém-adquirida e constantemente reafirmada pelo recurso comparativo à referência coletiva: “Nos pêches de Bretagne”, “nos gardians”, e a subtil alusão a um passado comum, português e flamengo, sob o jugo castelhano, perceptível na indumentária regional ou folclórica. Assim, referindo-se aos pregões das peixeiras de Lisboa, ‘t Sterstevens repara: “Mais je sais bien la mélopée si triste du marchand de crabes et de crevettes, et même je l’ai retrouvée à la Coruna [sic], en galego, ce qui montre que les Espagnols n’ont pas seulement laissé dans les Flandres les Vierges habillées de velours et les géants des processions…”.
Falecido em Paris, a 21 de Maio 1974, Albert t’Sterstevens não conheceria esse outro “itinerário” de outro Portugal, democrático, nascido com a Revolução de Abril.
Itinerários
Jugoslávia, Grécia, Turquia, Espanha, Itália, Magrebe, América Latina, Estados Unidos, Polinésia Francesa, Portugal.
Citações
Tout le pays n’est qu’un rectangle littoral. Ces deux barons français, Raymond et Henri de Bourgogne, qui ont fondé le royaume de Portugal et sa première dynastie, ont voulu d’abord créer, aux dépens de Castille-et-Léon, cette marche atlantique. Les fils d’Henri ont refoulé les Musulmans jusqu’au Tage, puis jusqu’à la mer méridionale. En 1270, le Portugal avait pris sa forme définitive, longue bande de rive nord-sud, ses frontières de l’est délimitées sans doute par des principes politiques mais plus encore par la fécondité océane. (1940: 6).
Cela ne serait rien d’autre que le dédale saugrenu des vieilles villes escarpées. C’est jaune, c’est blanc, c’est rose, gris-bleu, vert d’eau, rouge sang, lilas, au-dessus d’un pavé de galets plats, uni comme une mosaïque, le pas des trottoirs, quand il y en a, et l’arête des marches d’escalier, en belles lignes de calcaire sur fond bleuté. Il y a ici des maisons qu’on ne trouve nulle part, à la fois arabes et médiévales (…). (1940: 78).
La réorganisation du pays, et même de l’esprit du pays, s’impose à ce grand homme d’Etat [Salazar] qui ne se croyait qu’un économiste. Il applique à ces questions nouvelles pour lui sa méditation et son travail acharné. Son génie absorbe peu à peu tout son entourage. Il devient, de mois en mois, sans hâte, sans même le vouloir, le chef du gouvernement. Cela prend la forme extérieure de la présidence du Conseil, mais c’est en réalité une de ces dictatures imposées par les événements, comme il en fut en Pologne, en Turquie, comme il s’en est formé une en France. C’est la vraie dictature, telle que la concevait l’ancienne république de Rome, le dur remède à un état de crise, l’abdication de la liberté, de la prétendue liberté, pour le salut du pays. (1940: 107).
Bibliografia Ativa Selecionada
Romances
t’STERSTEVENS, Albert (1929), Taïa, roman contemporain, Paris, Albin Michel.
—- (1930), Les corsaires du roi, Paris, Les œuvres représentatives, reeditado (1988) Paris, Arléa.
—- (1932), L’amour autour de la maison, reeditado (1974), Le Livre de poche.
—- (1936), L’or du Cristobal, Paris, Albin Michel, reeditado (1994), Paris, Librio.
—- (1942), L’appel de l’aventure, Paris, Colbert.
—- (1950), Tahiti et sa couronne, Paris, Albin Michel, reeditado (1971).
—- (1952), La grande plantation, Paris, Albin Michel.
Ensaios e notas de viagem
—- (1933), L’Itinéraire espagnol, Paris, Plon, reeditado (1963), Paris, Editions Arthaud.
—- (1938), L’Itinéraire de Yougoslavie, Paris, Grasset.
—- (1940), L’Itinéraire portugais, Paris, Grasset.
—- (1955), Le livre de Marco Polo ou le Devisement du monde, Paris, Albin Michel, reeditado (1967), Le Livre de poche.
—- (1955), Mexique, pays à trois étages, Paris, Edition Arthaud.
—- (1961), Itinéraires de la Grèce continentale, Paris, Edition Arthaud.
—- (1970), Itinéraire marocain, Paris, Edition Arthaud.
—- (1972), L’homme que fut Blaise Cendrars, Paris, Denoël.
—- (1973), Flâneries dans Istanbul et ses entours, Paris, Albin Michel.
Bibliografia Crítica Selecionada
BALSACQ, Christel (1998), La description chez Albert t’Serstevens, mémoire de licence, ULB, edição do autor.
BOUSSARD, Léon (1970), “Rencontre avec A. t’Sterstevens”, in La revue des deux mondes, mai, pp. 391-396.
MARTINET, Jean-Pierre (1975), “Un apostolat” d’A. t’Serstevens, misère de l’utopie suivi de Le prix Goncourt 1920 au jour le jour et un dossier de presse, Lausanne, Alfred Eibel éditeur.
QUAGHEBEUR, Marc (2002), “Présences du Portugal dans les lettres belges de langue française”, in Portugal e o Outro: uma relação assimétrica, Actas do Colóquio de Aveiro, pp. 127-154.
José Domingues de Almeida