Ferreira, José Gomes

pdf

Ferreira, José Gomes

(1900-1985)

José Gomes Ferreira nasceu no dealbar de um novo século, na cidade do Porto, mas é em Lisboa que passará a viver desde criança, aí se tornando no “poeta militante”, consagrado nas histórias da literatura portuguesa. Depois da licenciatura em Direito, JGF parte, aos 24 anos, para a Noruega e aí permanece cerca de cinco anos – com a dupla responsabilidade de desempenhar as funções de cônsul, na cidade de Kristiansund, e de tratar dos negócios familiares do bacalhau. O poeta referir-se-á a esse período como um “Interregno” (1966: 149), como se de uma interrupção no curso da sua vida se tratasse. Mas a passagem pela Noruega deixará traços e vestígios em vários textos do autor, marcando o seu percurso artístico, cívico e pessoal. Dessa viagem (iniciática a vários níveis) resultará uma maior entrega à música, levando-o a compor longe de Portugal algumas peças musicais de reconhecido mérito e a criar poemas (pela vida fora), onde a arte musical se faz sentir em cada verso.

Sabemos que ao longo da sua vida José Gomes Ferreira repudiou abordagens biografistas, invocando ele mesmo o hibridismo genológico dos seus textos e a dificuldade de os catalogar ou de delimitar fronteiras claras entre a ficção e a experiência vivida. No entanto, sem descartarmos a sua teoria do fingimento poético, as muitas camuflagens a que recorreu ou a complexa “figura de autor” que construiu (cf. Carmo 2006), é possível rastrear autobiografemas não só nas narrativas pessoais (de memórias a diários), que praticou, como poucos da sua geração, mas também noutras obras menos óbvias. Há textos que, pela referenciação direta ou ínvia a terras nórdicas, convidam a uma correlação com a sua vivência na Noruega: “Noruega” (ou “NORUEGA 1964-1965”), sequência poética incluída em Poesia VI, Tempo Escandinavo, alguns diários e o inesperado Aventuras Maravilhosas de João sem Medo. “Noruega” não pode deixar de sugerir ao leitor uma relação com o referido “Interregno” e com uma geografia da ordem do real empírico; essa sequência poética destaca-se no campo da literatura portuguesa do séc. XX pelo facto de se abrir à mitologia, à geografia e à cultura nórdicas – que o poeta faz coexistir com a mitologia greco-latina. Nesta secção (e noutra que precede Poesia VI), surgem topónimos reais como Kristiansund e outros facilmente reconhecíveis, que servem de tela para a aparição de vikings, de entidades mágicas como Thor, Freia e Dagmar, para a referência a runas e a fiordes desolados, ao gelo e à neve, ou à fantasmagórica “terra de lua longa” (cf. Sampaio 2011).

Mas é em Aventuras Maravilhosas de João sem Medo, texto alicerçado na estrutura e em motivos da literatura de viagens, que os primeiros indícios da sua experiência nórdica se podem rastrear. Publicada em 1963 com este título depois de reescrita, a história remonta a 1933 e surgiu com o título “A Aldeia dos Choramigas”, na revista O Sr. Doutor. Em sintonia com o próprio JGF, a exegese crítica dominante tem relevado as relações com a mitologia greco-latina e com histórias universais de aventuras e viagens de épocas diferentes. No estudo Pontes e Fronteiras. Da Literatura tradicional à literatura contemporânea, Natividade Pires, depois de estudar em detalhe a genealogia clássica, apontará, porém, outras influências, como, por ex., A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson através da Suécia, de Selma Lagerlöf, para concluir, com razão, que a obra não reflete “especificamente uma cultura portuguesa” (Pires 2005: 183) – e a sua tradução para dezenas de línguas só vem reforçar esta tese. De facto, esta é uma estória sincrética onde divisamos muitos sinais da presença da cultura e mitologia escandinavas, de que se destacam: i) a ligação entre a árvore de dez braços em que João sem Medo se metamorfoseia e a gigantesca árvore Yggdrasil, o pilar dos mundos da cosmogonia nórdica; ii) a floresta mágica e as entidades fantásticas que a povoam, de gnomos a elfos; iii) a pujança das pedras faladoras, parentes das runas portadoras de segredos; iv) certos rituais de iniciação em comunhão com a Natureza e os seus ciclos. Talvez a paixão pelas árvores do espaço urbano por onde ocorrem as deambulações lisboetas de JGF não fosse tão intensa sem as caminhadas juvenis pelas florestas norueguesas – nem o escritor tivesse criado, em O Enigma da Árvore Enamorada, uma singular árvore “política”, que abriga no seu tronco atividades clandestinas contra a ditadura.

Também o contato (com) e a aprendizagem de uma língua tão diferente das línguas latinas como é o norueguês ecoará na importância que o ritmo musical adquire logo nestas aventuras iniciais, e, posteriormente, noutros textos em prosa, mas sobretudo no uso sistemático de um léxico, sem igual na literatura de então, em que se destacam extensas palavras compostas, ostensivamente hifenizadas, com efeitos lúdicos e/ou poéticos, a sugerirem mundos em processo e em devir. Os exemplos multiplicam-se: Chora-Que-Logo-Bebes, “alguém-outro-ninguém-tu/–eu.”, etc. (cf. Sampaio 2011: 29-30).

A coletânea de contos Tempo Escandinavo – e muito em particular os contos “O Mundo Desabitado” (1960) e “A Mulher dos Caminhos” (1963) – reenvia-nos para uma realidade bem distinta da portuguesa, numa revisitação de um tempo e espaço que conduzem à sua passagem pela Noruega. Nessas histórias se tematiza o encontro e desencontro de visões do mundo, de representações e de auto-representações estereotipadas de Espanha, Portugal e Noruega. O protagonista, português, depara-se com a frequente assimilação da cultura portuguesa à cultura castelhana e a fusão dos dois países ibéricos, num processo conducente a uma revisão e desconstrução de estereótipos e de imagens criadas, em parte, via literatura. Num passo de Dias Comuns VIII, JGF dirá que, em Tempo Escandinavo, o seu herói “assiste, com desgosto, à desibinização da Noruega” (p. 104), remetendo para o embate do próprio escritor com o seu imaginário cultural e geográfico da Noruega.

Talvez mais importante do que estes (des)encontros interculturais, porque com consequências mais duradouras, tenha sido a “desarrumação mental” dos papéis de género e do questionamento da masculinidade, já que as mulheres norueguesas com quem o protagonista se cruza não se conformam aos moldes latinos; surgem como mulheres emancipadas, que tomam a iniciativa na dança, na arte da sedução e nas relações sexuais. Em Dias Comuns VIII, ao evocar a passagem pela Noruega, JGF refere-se à descoberta que aí fez de uma “visão do amor” diferente da que assimilara nos célebres mitos e histórias de amor mais a sul. Uma outra visão do amor que terá expressão, implícita e explícita, na crítica ao machismo e ao marialvismo que encontramos em muitas das suas páginas em prosa. Poder-se-á dizer que é também essa nova visão do amor que leva JGF a uma surpreendente reescrita feminista do mito de Pedro e Inês tão caro aos portugueses e de que oferece apenas um esboço (“a minha Inês virada do avesso”): eleva Inês à condição de heroína que se deixa matar para que Pedro, volvido em Orfeu, a possa ressuscitar – missão em que este falhará, sendo remetido para a galeria dos derrotados. A elaboração, pioneira, de um breve ensaio de JGF sobre a importância das mulheres em Camilo não será também alheia às aventuras amorosas do seu anti-herói em terras norueguesas.

Ao longo da sua vida, José Gomes Ferreira fará muitas outras viagens (nomeadamente à RDA e URSS no pós-revolução), mas a avaliar pela leitura atenta dos seus textos, nenhuma terá tido repercussões tão significativas na sua criação literária como a sua primeira experiência de deslocação.

 

Passagens

Portugal, Noruega, Alemanha Democrática, URSS…

 

Citações

“Em Portugal bebe-se muito vinho? – indagou num tom forçadamente intencional.
Oh, já cá faltava o vinho. O inevitável interrogatório a respeito do vinho!
– Sim (…). Há fontes de vinho do Porto que brotam das bocas das rochas e inundam as montanhas do Douro e se despenham em catadupas pelas encostas para dourarem o rio. Não imagina como é bom ir pelos campos e parar, de quando em quando, junto dessas fontes para matar a sede. E encher a sua garrafinha…
– Deve ser maravilhoso viver no Sul […]
– O pior é o azeite!
– O azeite? Mas o azeite é ouro. Ouro derretido – explicou Raul-Leif, enfastiado até aos ossos do nojo dos noruegueses pelo azeite.”
[…] Sim, a língua portuguesa difere da espanhola… Sim, também temos touradas, mas não assassinamos os touros em público com estoques, nem gostamos de ver sangrar os cavalos (nessas balbúrdias das touradas somos vegetarianos). Quanto ao azeite, não, não e não! Decididamente não usamos azeite no pão para substituir a manteiga. (Tempo Escandinavo: 89, 95).

“Fora uma das minhas surpresas ao desembarcar em Oslo: a língua, que afinal muito diferia do aglomerado de sons de lixa bárbara previsto na pátria. Pelo contrário: soava como uma arcada de violoncelo a que os oe, oe, oe, os y y y e a formação do plural com o r, sem a sibilante que tão desagradavelmente assobia no português, emprestavam uma doçura viril particular.” (Memória das Palavras: 155)

“Percorri mundo, esbanjei desejos, cuspi no mar do Norte, lobriguei paisagens lunares inverosímeis que, de súbito, se despenhavam nas falésias a pino, por onde pendiam fios de gelo longos que, mais abaixo, acordavam em correntes de água viva a caírem em cachão no mar azul-violeta dos fiordes…
Viajei de trenó, ouvi línguas estranhas, carimbei montes de documentos, odiei, amei, sofri, e, por fim, já farto da mesma lua em vários céus, regressei de novo à pátria e a este andarmos todos para aqui a dizer eu tudo é uma chatice (e é verdade!)”. (“Dona Musgo”, de O Mundo dos Outros: 148).

 

Bibliografia Ativa Selecionada

Ferreira, José Gomes (1933), “Aventuras Maravilhosas de João sem Medo” in O Senhor Doutor, 1 Abril a 30 de Setembro. [História iniciada com o título “A Aldeia dos Choramigas”, e assinada com o pseudónimo Avô do Cachimbo]

— (1963), As Maravilhosas Aventuras de João sem Medo. Panfleto Mágico em forma de Romance, Lisboa, Portugália Editora (2.ª ed. Aventuras de João sem Medo (panfleto mágico em forma de romance), Portugália Editora, 1974).

— (1966), A Memória das Palavras ou o gosto de falar de mim, 2ª ed.,Lisboa, Portugália Editora.

— (1969), Tempo Escandinavo. Contos, Lisboa, Portugália Editora.

— (1970), Poesia IV, Lisboa, Portugália Editora.

— (1976), O Mundo dos Outros, 5ª ed., Lisboa, Diabril Editora (1ª ed. 1950).

— (1980), O Enigma da Árvore Enamorada – Divertimento em forma de Novela quase Policial, Lisboa, Morais Editores.

— (2017), Dias Comuns. VIII. Livro das Insónias sem Mestre, Lisboa, Dom Quixote.

Ferreira, José Gomes/ Oliveira, Carlos de (orgs.) (1958), Contos Tradicionais Portugueses, escolhidos e comentados por José Gomes Ferreira e Carlos de Oliveira; pref. de José Gomes Ferreira, ilustr. de Maria Keil, Lisboa, Tesoiros da Nossa Literatura, Iniciativas Editoriais.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

Carmo, Carina Infanta do (2006), A militância melancólica ou a figura de autor em José Gomes Ferreira, Tese Dout., Literatura e Cultura Portuguesas, Universidade do Algarve. In https://sapientia.ualg.pt/handle/10400.1/474

Dionísio, Mário (1977), “O “Poeta Militante”, prefácio a Poeta Militante. Viagem do Século Vinte em mim”, 1.º volume (3.ª ed.), Lisboa, Moraes Editores, pp. I-XXII.

Lima, Isabel Pires de / Martelo, Rosa Maria / Eiras, Pedro (orgs.) (2002), Viagem do Século XX em José Gomes Ferreira, Porto, Campo das Letras.

Pires, Maria da Natividade Carvalho (2005), Pontes e Fronteiras. Da literatura tradicional à literatura contemporânea, Lisboa, Caminho.

Sampaio, Maria de Lurdes (2011), “Traços da viagem na obra de José Gomes Ferreira”, Deslocações Criativas. Cadernos de Literatura Comparada, nº 24/25, pp. 248-284. In
https://ilc-cadernos.com/index.php/cadernos/issue/view/23

Torres, Alexandre Pinheiro, Vida e Obra de J. Gomes Ferreira, Lisboa, Livraria Bertrand, [1975].

 

Maria de Lurdes Sampaio

Como citar este verbete:
SAMPAIO, Maria der Lurdes (2023), “José Gomes Ferreira”, in Ulyssei@s: Enciclopédia Digital. ISBN 978-989-99375-2-9.
https://ulysseias.ilcml.com/pt/termo/ferreira-jose-gomes/