Brandão, Raul

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Brandão, Raul

(1867-1930)

Escritor português nascido a 12 de Março de 1867 na Foz do Douro, Raul Brandão foi militar de profissão. Exerceu uma prolífica actividade jornalística, escrevendo principalmente sobre literatura e arte. É reconhecido por uma singular obra literária, a que se dedicou toda a vida, cultivando géneros tão distintos como o teatro, o conto, o romance, a história ou a memorialística. Da sua passagem pelo teatro, infelizmente efémera, saíram, no entanto, grandes obras do teatro português do século XX, de que são exemplo o Gebo e a Sombra e O Doido e a Morte. Da obra ficcional romanesca, títulos como A Farsa, Os Pobres, ou Húmus, a sua obra mais estudada, confrontam-nos com a imagem de um mundo trágico e grotesco em que o humano se debate entre o extremo desespero e uma miraculosa esperança.

Já depois de se ter casado com Maria Angelina, que seria a sua companheira de toda a vida e inclusivamente colaboradora na sua obra, Raul Brandão, de saúde frágil e aconselhado pelo seu médico, decidiu empreender uma viagem pela Europa com a mulher. Um testemunho dessa viagem encontramo-lo nas memórias de Maria Angelina, Um coração e uma vontade. A viagem começou por um cruzeiro no mediterrâneo, com passagens por Argel, Génova, Roma, Nápoles, Pompeia, Veneza, Milão, Lugano, Paris e Londres. Embora a impressão dessa viagem não tenha levado o autor à produção de nenhuma obra em concreto, é certo que a sua actividade artística sofreu alguma influência dessas belas paragens.

Mas é nas obras produzidas em viagens que fez pela costa portuguesa e pelos arquipélagos da Madeira e Açores que Raul Brandão nos aparece como o paisagista e colorista grande que é. Livros como Os Pescadores, dedicado à vida dos pescadores na costa portuguesa desde o Minho ao Algarve, ou Ilhas Desconhecidas, diário de viagem às ilhas, são a prova de que este escritor foi também um grande pintor. O facto de Raul Brandão ter inclusivamente chegado a pintar nos últimos anos da sua vida, mostra como a vertente pictórica da sua obra deve ser considerada um elemento fundamental da sua actividade artística.

 
 

Passagens

Portugal, Argélia, Itália, Suíça, França, Inglaterra

 

Citações

Esta nossa terra portuguesa vai pela costa fora sempre de braços abertos para o mar, estreitando-o amorosamente contra si. Começa em Caminha até ao forte de Âncora – de Âncora ao extremo do monte da Gelfa, e daí ao farol de Montedor, em três largas reentrâncias, que têm como pano de fundo a cadeia azulada dos montes, de onde emerge um ou outro cone transparente… Todas as povoações são viradas para o mar. O sol doira uma janela, uma eira, um espigueiro, o campo de milho alimentado a sargaço que tem os pés na água. E o biombo cor de lousa desenrola-se sempre ao lado do comboio… (Brandão 2014: 51)

Pela portinhola do comboio vou seguindo a paisagem de figueiras e de vinhas que desfila. De um lado o céu doirado e violeta, do outro todo roxo. Os nomes das estações têm um sabor a fruto maduro e exótico – Almancil-Nexe, Diogal, Marchil… De quando em quando fixo um pormenor: uma mulher passa na estrada branca, entre oliveiras pulverulentas e fantasmas esbranquiçados de árvores, sentada no burrico, de guarda-sol aberto, e dando de mamar ao filho. Terras de barro vermelho. Grupos de figueiras anainhas estendem os braços pelo chão até ao mar, deixando cair na água os ramos vergados de fruto, que só amadurece com as branduras. Uma ou outra casinha reluzindo de caiada: ao lado, e sempre, a nora de alcatruzes e um burrinho a movê-la entre as leves amendoeiras em fila, as oliveiras dum verde mais escuro e a alfarrobeira carregada de vagens negras pendentes. A mesa de Deus está posta. Estradas orladas de cactos imóveis como bronze, e a deslumbrante Fuzeta, com o seu zimbório entre árvores esguias. Ao longe, e sempre, acompanha-me o mar, que mistura o seu hálito a esta luz vivíssima. (Brandão 2014: 181)

Enquanto a gente vê terra não tira os olhos – não pode – dum resto de areal, dum ponto de violeta que desmaia e acaba por desaparecer na crista duma vaga. Um ponto e acabou o mundo. O nosso mundo agora é outro. Durante um momento calamo-nos todos a bordo. A abóbada esbranquiçada fecha-se e encerra o disco azul onde espumas afloram nos redemoinhos que nos cercam: só uma gaivota teima em nos acompanhar descrevendo círculos por cima do navio. O ruído da hélice e a vasta desolação monótona… A vida a bordo dos vapores perdeu todo o interesse da antiga navegação à vela: é a vida do hotel Francfort com porteiro e tudo. Foi-se o encanto dos velhos navios com as vergas rangendo ao vento e o gajeiro sobe-que-sobe àquele mastro real. O que vale é a agitação tremenda que não cessa, a água em vagalhões cada vez mais cinzentos e maiores (…) Mas vem a tarde, vem a noite nesta desolação amarga: o mar carrega-se e cospe-nos salpicos, paira no céu uma tinta que se entranha nas águas e as escurece. Ar lívido, água revolta e uma grandeza com que não posso arcar. (…) As estrelas nos ares agitados parecem outras estrelas, o céu e as forças desencadeadas do caos nunca as senti tão perto como hoje, nesta voz monótona que sai do negrume, nesta massa que nos mostra os dentes no alto das vagas entre as chapadas de tinta na imensa solidão desolada. Isto acaba pela treva absoluta. Está ali – está ali presente toda a noite que não tem fim. Nós bem fingimos que não vemos a solidão trágica, o negrume trágico, mas eu tenho-a toda a noite ao pé de mim. (…) A ideia da morte não nos larga: separa-nos do caos um tabique de não sei quantas polegadas. Todos os passageiros se fingem preocupados. Só acolá sob o castelo da proa (3ª classe), embrulhada num xale e sentada sobre um baú de lata, aquela mulher do povo sente como eu o terror do mar – e não o oculta. Olha petrificada. Aqui só há uma coisa a fazer, é a gente entregar-se… (Brandão 1987: 31)

 
 

Bibliografia Ativa Selecionada

Brandão, Maria Angelina (1959), Um coração e uma vontade, Coimbra, Oficina da Atlântida.
Brandão, Raul (1987), As ilhas desconhecidas, Lisboa, Editorial Comunicação.
Brandão, Raul (2014), Os pescadores, Lisboa, Relógio d’Água Editores.

 

Bruno Tiago Cabral

Como citar este verbete:
CABRAL, Bruno Tiago (2024), “Raul Brandão”, in Ulyssei@s: Enciclopédia Digital. ISBN 978-989-99375-2-9.
https://ulysseias.ilcml.com/pt/termo/brandao-raul/