(1949)
Nascido em Beirute, a 25 de fevereiro de 1949, Amin Maalouf é, a vários níveis, um ser de fronteira. Criado no seio de uma comunidade greco-católica ou melquita, foi desde cedo testemunha de duas tradições rivais na família. Marcadamente influenciado pelo pai, jornalista mas também poeta, ensaísta e artista, Amin Maalouf seguiu-lhe os passos e, depois dos estudos em Ciências Económicas e Sociologia, ingressou como jornalista no diário An-Nahar, de Beirute, escrevendo em língua árabe, e viajou como repórter por vários países.
Em abril de 1975, testemunhou o início da guerra do Líbano e, após um ano de medo e tensão, saiu do país, via Chipre, e instalou-se em Paris, onde ainda vive, alternando a sua morada com a ilha d’Yeu, na Bretanha, onde se refugia para escrever. Membro da Académie Française desde 2011, Amin Maalouf tem a sua obra traduzida em mais de vinte línguas e tem-na repartido entre a ficção, o ensaio e os libretos de ópera. A ficção é, ainda assim, o território mais acalentado, pela mediação simbólica que ela permite, na figuração de mundos.
A sua viagem exílica para França, onde se radicou, foi apenas mais uma travessia, desta feita mais dolorosamente mapeada, dentre as que desde sempre constituíram o seu percurso de vida. Descendente de nómadas, Amin Maalouf atribui à itinerância um importante papel na reconfiguração identitária, de tal forma que viajar, experimentar a lonjura e o desenraizamento se tornaram tópicos fundamentais na sua ficção, levando-o a afirmar “Je parle du voyage comme d’autres parlent de leur maison” (apud Ette, 2009:147). A experiência da viagem tornou-se de tal forma basilar no seu pensamento que conduziu a um peculiar conceito antropológico, o de que os homens se definem por um itinerário.
Invertendo ou dissipando os sentidos da conceção pós ou sobremoderna do espaço, Maalouf defende o desapego do lugar histórico como passo fundamental para a libertação de si e a abertura ao outro. Sair, partir, descolar do seu nicho matricial e conhecer outros territórios é, numa primeira fase, conhecer os contornos de uma geografia íntima, através de um percurso de autoconhecimento. É pelo confronto com territórios outros (geográficos, humanos e culturais), que o indivíduo se vai envolvendo progressivamente num processo dialético e simultâneo de consciencialização da sua individualidade e de superação e esvaziamento dessa individualidade, para, posteriormente, se alargar e abrir ao espaço do outro, evitando assim cristalizações culturais e identitárias que se arriscam a transformar-se em Identités Meurtrières (Maalouf, 1998).
É assim que, nas obras de Maalouf, a travessia e a viagem são tópico fundamental, estratégia ficcional que faz as personagens descolarem do seu chão fundador e ganharem perspetiva sobre si e a sua cultura, num processo de reconfiguração sempre latente. Mani, personagem de Les Jardins de Lumière, percorre todo o império Sassânida no século III; em Samarcande, Omar Khayyam atravessa toda a Pérsia e o império russo; no século XV, Hassan, ou Léon l’Africain, sai da sua Granada natal, conhece o Egito e vários países africanos, vive em Roma e vai acabar os seus dias em Tunis; Baldassare Embriaci é um libanês com antepassados genoveses que, em Le Périple de Baldassare, viaja por Constantinopla, norte de África, Lisboa, Amsterdão, Londres e se instala em Génova, onde não conhece ninguém mas onde se sente em casa; por sua vez, Le Rocher de Tanios faz-nos conhecer um adolescente do século XIX que deixa as montanhas libanesas em busca de territórios mais consentâneos com a sua sede de horizonte e de espairecimento existencial; em Origines, também no século XIX, os antepassados do autor viajam e repartem-se por vários países, dos Estados Unidos à Austrália; percorrendo Les Échelles du Levant, também Ossyane oscilará entre o Líbano natal e a França.
Todos estes protagonistas mostram como, pela desidentificação ainda que apenas relativa, ou pela superação de uma identidade cristalizada, o indivíduo poderá abrir corredores relacionais com o outro, na convicção de que a desterritorialização, que não é necessariamente operada através da deslocalização, age sobre o indivíduo como um estremecimento de coordenadas que permitirá uma reorientação de perspetiva e uma reconfiguração de horizontes culturais e identitários, através de desfocagens e refocagens progressivas que abrem para novas oportunidades e para novos riscos (Tomlinson, 1999:128).
Convicto do potencial descentrador da viagem, é também por isso que Maalouf, embora não renegando o chão matricial, prefere o termo “Origens” a “Raízes”, numa conceção rizomática deleuziana, recusando atavismos e essencialismos, em favor do espairecimento, da expansão e da libertação, pelo diálogo e pelas capacidades de renovação e de transformação que estes comportam.
Em Origines, Maalouf serve-se do nomadismo dos seus antepassados e dos seus múltiplos cruzamentos entre religiões, pátrias e ideologias como uma plataforma de reflexão de base pessoal e confessional, uma espécie de serão de família aberto ao leitor, que traz para o romance um importante quinhão de credibilidade. Embora este romance seja de teor assumidamente autobiográfico, e essa pareça ser uma tendência das primeiras obras dos escritores desterritorializados em busca de uma qualquer necessidade de afirmação (Mendes, 2006:239), esse não é o caso de Maalouf, pois que Origines é já o seu sétimo romance. Esta obra, segundo o autor, ter-se-á imposto no seu percurso de vida como tributo identitário a que se obrigou, e que documentou com cartas e rascunhos do seu avô Botros, figura que o autor elege como emblemática da questão da alteridade, e do quanto essa experiência íntima pode ser conflituosa e fraturante.
Fronteiriço entre culturas, minoritário, Maalouf partilha e assume com outros escritores desterritorializados o potencial de agente intercultural, de passeur, germinador de reflexão e de reconfiguração de mundos. É assim que, pela literatura, vai tecendo pontes entre culturas, equacionando a História, reconfigurando mitos e lançando novos olhares sobre o percurso das civilizações, numa estratégia que quer interpeladora e iluminadora da atualidade.
Passagens
Egipto, Líbano, França.
Citações
Não é próprio da nossa época fazer de todos os homens, de algum modo, migrantes e minoritários?
(…)
Além disso, o estatuto de migrante já não é apenas o de uma categoria de pessoas arrancadas ao seu meio natal, adquiriu hoje valor exemplar, é ele a primeira vítima da conceção tribal da identidade. Se só uma pertença conta, é então absolutamente preciso escolher, e deste modo o migrante vê-se partido, esquartejado, condenado a trair a sua pátria de origem ou a sua pátria de acolhimento, traição esta que viverá inevitavelmente com amargura e com raiva. (As Identidades Assassinas: 49-50)
Fronteiriços» de nascimento, pelos acasos da sua trajetória, ou ainda por vontade deliberada, podem pesar nos acontecimentos e fazer pender a balança num sentido ou no outro. Aqueles de entre estes que possam assumir plenamente a sua diversidade servirão de «estafetas» entre as diversas comunidades, as diversas culturas, e representarão de algum modo o papel de «cimento» no seio das sociedades em que vivem. (idem: 47)
Dieu n’a pas voulu que mon destin s’écrive tout entier en un seul livre, mais qu’il se déroule, vague après vague, au rythme des mers. A chaque traversée, il m’a délesté d’un avenir pour m’en prodiguer un autre ; sur chaque rivage, il a rattaché à mon nom celui d’une patrie délaissée. (Léon l’Africain: 87)
La route apporte la connaissance et la richesse (…) Quand on vit dans un lieu inaccessible, mais loin des routes (…), n’ayant aucun échange avec d’autres contrées, on finit par vivre comme des bêtes, ignorant, démuni et effarouché. (idem: 157)
Promenant son regard autour de lui, le secrétaire d’État remarqua l’icône et la croix copte sur le mur. Il sourit, en se grattant ostensiblement la tête. Il avait de bonnes raisons d’en être intrigué : un Maghrébin, habillé à l’égyptienne, mariée à une Circassienne, veuve d’un émir ottoman, et qui ornait sa maison à la manière d’un chrétien ! (idem: 260-261)
Lorsque l’esprit des hommes te paraîtra étroit, dis-toi que la terre de Dieu est vaste, et vaste Ses mains et Son Cœur. N’hésite jamais à t’éloigner, au-delà de toutes les mers, au-delà de toutes les frontières, de toutes les patries, de toutes les croyances. (idem: s/p)
De ma bouche, tu entendras l’arabe, le turc, le castillan, le berbère, l’hébreu, le latin et l’italien vulgaire, car toutes les langues, toutes les prières m’appartiennent. Mais je n’appartiens à aucune. Je ne suis qu’à Dieu et à la terre, et c’est à eux qu’un jour prochain je reviendrai. (idem: s/p)
Tous ceux qui ont émigré, tous ceux qui se sont rebellés, et même tous ceux qui ont rêvé d’un monde moins injuste, l’ont fait d’abord parce qu’ils ne trouvaient pas leur place dans le système social et politique qui régissait leur patrie. (Origines : 173)
Ce n’est pas ainsi que se prend la décision de partir. On n’évalue pas, on n’aligne pas inconvénients et avantages. D’un instant à l’autre, on bascule. Vers une autre vie, vers une autre mort. Vers la gloire ou vers l’oubli. Qui dira à la suite de quel regard, de quelle parole, de quel ricanement, un homme se découvre soudain étranger au milieu des siens ? Pour que naisse en lui cette urgence de s’éloigner, ou de disparaître. (Le rocher de Tanios: 279-280)
Est-ce donc vers le passé qu’il regardait, plutôt que vers l’avenir ? Il n’est pas facile de trancher. Après tout, l’avenir est fait de nos nostalgies, de quoi d’autre ?
Cet âge où les hommes de toutes origines vivaient côte à côte dans les Echelles du Levant et mélangeaient leurs langues, est-ce une réminiscence d’autrefois ? Est-ce une préfiguration de l’avenir ? Ceux qui demeurent attachés à ce rêve sont-ils des passéistes ou bien des visionnaires ? (Les Echelles du Levant : 49)
Bibliografia Ativa Selecionada
MAALOUF, Amin
Ficção
(1986), Léon l’Africain, Paris, J.-C.Lattès
(1988), Samarcande, Paris, J.-C. Lattès
(1991), Les Jardins de Lumière, Paris, J.-C. Lattès
(1993), Le Rocher de Tanios, Paris, Grasset & Fasquelle
(1996), Les Echelles du Levant, Paris, Grasset & Fasquelle
(2000), Le Périple de Baldassare, Paris, Éditions Grasset & Fasquelle
(2004), Origines, Paris, Grasset & Fasquelle
Romance-ensaio
(1983) Les croisades vues par les arabes, Paris, Jean-Claude Lattès.
Ensaios
(1998), Les Identités Meurtrières, Paris, Grasset & Fasquelle
(2009), Le Dérèglement du Monde, Paris, Grasset & Fasquelle
Libretos de ópera
(1992), Le Premier Siècle Après Béatrice, Paris, Grasset & Fasquelle
(2001), L’amour de loin, Paris, Grasset & Fasquelle
(2006), Adriana Mater, Grasset & Fasquelle
Bibliografia Crítica Selecionada
AUGÉ, Marc (2005), Não-Lugares – Introdução a uma antropologia da Sobremodernidade, Lisboa, 90 Graus Editora, Lda.
BUREAU, Stéphan (2007), “Entretien avec Amin Maalouf”, in L’Encyclopédie de la Création, juin 2007, Contact TV Deux Inc.
DELEUZE, Gilles ; GUATTARI, Félix (1980), «Introduction : Rhizome», in Mille Plateaux, Paris, Les Éditions de Minuit.
DIAS, Maria José Carneiro (2009) Amin Maalouf: a literatura como mediação entre Oriente e Ocidente, tese de mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 19 de dezembro de 2009.
—- (2011) «Amin Maalouf: le chemin vers l’autre se fait en voyageant – l’itinéraire comme stratégie de reconfiguration identitaire», in Revista Intercâmbio, 2ª Série, nº 4, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
—- (2011) “Os homens definem-se por um itinerário: a viagem como possibilidade de reconfiguração identitária em Amin Maalouf”, comunicação apresentada no colóquio “Construção de Identidades, Globalização e Fronteiras”, realizado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 11 de novembro de 2011.
CORM, Georges (2002), Oriente Ocidente – A Fractura Imaginária, Paris, Éditions de la Découverte & Syros.
ETTE, Ottmar (2009), “Nos ancêtres sont nos enfants. Les voyages à l’envers dans l’œuvre de Amin Maalouf”, in Voyages à l’envers [Segler-Messner, Silke – org.], Strasbourg, Presses Universitaires de Strasbourg, pp. 125-149.
HALL, Stuart (2006), Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais, Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais.
LAZURE, Stéphanie (2007), “Écrire au confluent des appartenances – Dossier de Recherche”, in L’Encyclopédie de la Création, juin 2007, Contact TV Deux Inc.
MENDES, Ana Paula Coutinho (2000), “Representações do Outros e Identidade: um estudo de imagens na narrativa de viagem – I – Imagologia Literária: Contornos históricos e princípios metodológicos”, in Cadernos de Literatura Comparada, nº 1, Porto, FLUP, pp. 93-100.
TOMLINSON, John (1999), Globalization and Culture, Paris, Polity Press.
Maria José Carneiro Dias (2015/08/02)