Meyer-Clason, Curt

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Meyer-Clason, Curt

(1910-2012)

Curt Meyer-Clason, escritor e tradutor alemão, desenvolveu um papel relevante em Portugal sobretudo como Director do Instituto Goethe em Lisboa entre 1969 e 1976. Durante esse tempo, empenhou-se em divulgar a cultura alemã, mas permitiu também que nas instalações do Instituto se desenvolvessem actividades culturais de autores e artistas portugueses – entre peças de teatro, conferências e debates – que possibilitaram um espaço de discussão de ideias, muitas das quais em oposição ao regime ditatorial salazarista. Meyer-Clason – atravessando na sua existência praticamente todo o século XX – viveu ainda no Brasil, Argentina, França e na Alemanha natal, vindo aí a falecer em 2012 com cento e um anos.

A errância do escritor alemão por diversos pontos do globo e exercendo diferentes ofícios ao longo dos anos, demonstra aquela que era a sua vontade de “correr mundo e aprender dando umas cabeçadas” (Meyer-Clason 2013: 16). Como escreve nos Diários Portugueses, livro publicado originalmente em 1979 na Alemanha, “fiz estágio profissional num banco, (…) trabalhei depois como classificador de algodão e correspondente em Bremen e Le Havre. Ao serviço da empresa Edward T. Robertson & Son, ‘cotton-controller’ em S. Paulo (…). Na província argentina de Santa Fé cavalguei pela pampa participando na ferra de touros jovens; em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, fui gerente de uma firma de móveis. Durante um período de internamento [durante cinco anos] aprendi a ler: Rilke, Thomas Mann, Friedell, Montaigne, Pascal, Proust, Bernanos, Berdiaiev, Buber, os grandes russos et alteri. Em seguida geri negócios de trocas no comércio de géneros alimentares, no Rio de Janeiro (…). Em 1954, de regresso à Alemanha, comecei a trabalhar como leitor de uma editora, como tradutor e escritor, e conheci alguns Institutos Goethe no estrangeiro, onde fiz ciclos de conferências. (idem: 17)

Foi no seguimento do percurso descrito que Curt Meyer-Clason se viria a tornar Director do Instituto Goethe em Portugal, embora o seu primeiro contacto com a “Lusitânia” tivesse ocorrido em 1936 numa viagem transatlântica a caminho do continente americano. No Brasil, (“esse idioma de vogais claras”; idem, 16), onde viveu vários anos, encontrou-se com a Literatura e com alguns dos mais importantes autores brasileiros, de quem se viria a tornar tradutor, como Guimarães Rosa, Jorge Amado, Clarice Lispector, Mário de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Gilberto Freyre, Carlos Drummond de Andrade, João Ubaldo Ribeiro, Fernando Sabino e Ferreira Gullar, para além de outros autores latino-americanos como os incontornáveis Jorge Luís Borges, Gabriel García Marquez e Pablo Neruda, e ainda os portugueses Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós, entre outros.

No caso específico de Guimarães Rosa, desenvolveu-se entre os dois uma longa relação de amizade e de trabalho, espelhada no livro João Guimarães Rosa, Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer Clason (1958-1967). Vítor Silva Tavares, que conheceu Meyer-Clason através de José Cardoso Pires, refere numa entrevista em 2007 que o tradutor alemão foi “o homem que mais contribuiu na Europa culta para que Guimarães Rosa fosse conhecido como o gigante que é da literatura brasileira e da literatura mundial” (Tavares 2007).

Meyer-Clason, na sua já mencionada estadia em Portugal nos anos setenta, privou com muitos intelectuais e escritores portugueses, como Ruben A. – que havia conhecido no Rio de Janeiro num encontro de escritores em 1965–, José Cardoso Pires, Urbano Tavares Rodrigues, Fernando Namora, Luís de Sttau Monteiro, Carlos de Oliveira, Almeida Faria, entre outros. Alguns desses encontros, recepções e jantares são relatados nos Diários, escritos como nota João Barrento, num “tom benevolente, apesar de cirurgicamente exacto, pertinente e crítico” (apud Meyer-Clason: 400) para com os portugueses. Na opinião de Vítor Silva Tavares, na entrevista referida anteriomente, Meyer-Clason “imprimiu ao Instituto Alemão uma dinâmica cultural também sociológica, também política [e] acabou por ser muito maltratado não pela inteligentsia local, mas pelo governo alemão, em conivência com certas autoridades portuguesas.” (Tavares 2007).

Cyro de Mattos, autor também traduzido por Meyer-Clason, qualificou-o como um verdadeiro e apaixonado “construtor de pontes literárias”, e Berthold Zilly (2012), num artigo in memoriam bastante elogioso, descreve Meyer‑Clason como “o mais importante mediador entre o mundo ibero-americano e o mundo germânico no século XX, um mestre da língua alemã, um grande humanista”, tendo-se revelado ao longo da sua vasta vida “um incansável militante contra qualquer tipo de preconceito racista, social ou nacionalista, em favor da liberdade e da justiça social, um intrépido homem de letras polivalente, [e] cosmopolita.”

 

Passagens

Alemanha, Argentina, Brasil, França, Portugal.

 

Citações

No fundo, sei pouco de Portugal, sei pouco da sua história. Conheço alguns escritores, traduzi alguns livros, visitei o país uma vez. Mas falo e escrevo a sua língua, mais exactamente a língua do maior território descoberto por Portugal, o Brasil, esse idioma de vogais claras, vibrante, cantante, enriquecido pela África negra e pelo Japão, que tornou mais leve a austera sintaxe retórica do português europeu, mais fechado, mais cerrado. Gosta de prescindir de artigos e pronomes, é uma língua feita para o diálogo, que fala para o outro, gosta de alusões, jogos de palavras, expressões indirectas, e que é aberta, em vez de, como o português que tende para o monólogo, enfraquecer, ou mesmo engolir, as vogais não acentuadas, fechando as nasais, como que retraindo-se a medo, como se temesse que o outro lhe roubasse alguma coisa. (1969) (2013: 16)

Pois é, ninguém diz uma palavra sobre Portugal, sobre o seu presente soterrado, sobre o seu futuro hipotecado. Mas, quem é este Ninguém? Naturalmente, ninguém, todos e cada um dos que nem pensam nas pessoas deste país, nada têm que ver com ele, mas apenas agem como se. Como se. Os gestores da cultura das nações ocidentais olham do alto do seu camarote, pachorrentos, entediados, para o palco dos acontecimentos portugueses, a maior parte das vezes sorriem sem darem por isso, ou bocejam sem darem por isso. Falam com os Portugueses, geralmente num francês mediano, se não forem franceses, e por isso não reconhecem as suas particularidades, o seu valor específico, porque não aprofundam a língua. Assistem a tudo como a uma corrida de cavalos, sem nela participarem. Eles e todos os outros estrangeiros que se aproveitam da situação guardam obviamente para si aquilo que pensam. E os naturais do país baixam o olhar quando uma palavra impensada aborda a actualidade portuguesa, ou então atravessam o interlocutor com o olhar e deixam-lhe a liberdade de escolher entre estar a ser ignorado, posto a nu ou crucificado. Eles, todos, parecem estar de acordo numa coisa: o silêncio, e sobretudo o silêncio que oculta alguma coisa, é de ouro, para além de poupar os nervos e de ser o menor dos males e o menor dos sacrifícios. Para quê criar problemas para si, e também para os outros? A vida é tão curta e pode ser tão agradável – especialmente em Portugal. E é claro que todos «amam» este país, dizem, e isso quer dizer: as suas praias sem fim e sem gente, os seus vizinhos saborosos e baratos, especialmente o verde, os seus bordados a preços baixos, feitos à mão, as criadas submissas (encargos sociais é coisa que praticamente não existe), a grande variedade de peixes… E então, meu caro, isto não é fantástico? E as hortaliças, aqueles enormes pimentos, em travessas de estanho nas montras, parecem pinturas de Braque, e ao fundo esta luz viva de Portugal, as mais puras transparências, indescritível… Ah, se eu pudesse pintar tudo isto, este céu reverberando de aromas, é de perder a cabeça, um abismo de encantamento em que desejamos afundar-nos, sozinhos, completamente a sós, e ir desaparecendo pouco a pouco… (1971) (2013: 136-137)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

MEYER-CLASON, Curt (2002), entrevista concedida a Lígia Chiappini, in Scripta, Belo Horizonte, v. 5, n. 10, p. 369-378, 1º sem. 2002.
—-, (2013), Diários Portugueses (1969-1976), Tradução e posfácio de João Barrento, Lisboa, Edições Documenta.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

ANDRADE, Fernando Gil Coutinho de (s/d), “Traduzindo o intraduzível: considerações sobre o fazer tradutório de Curt Meyer-Clason na reescritura de João Guimarães Rosa para o alemão”, ed.ut.
BARBOSA, Fábio Luís Chiqueto (2010) Leituras do Grande Sertão: Veredas. Sua tradução alemã e a correspondência de Guimarães Rosa com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason in Signótica, v. 22, n.º 1, pp. 57-68, jan.-jun. 2010.
ESTEVES, Bernardo (2012), O jagunço de Munique.
GUERREIRO, António (2012), Experiência única, in Jornal Expresso, 28/01, p. 36.
MATOS, Cyro de Mattos (s/d), Um construtor de pontes literárias.
MILLARCH, Aramis (1977), Meyer-Clason, o tradutor.
TADEU, Filipe (2010), Tradutor Curt Meyer-Clason completa 100 anos.
TAVARES, Vitor Silva (2007), Oxigénios anárquicos, entrevista concedida a Pádua Fernandes e Fabio Weintraub.
ZILLY, Berthold (2012), Um grand seigneur do diálogo entre culturas e pessoas. In memoriam Curt Meyer-Clason (1910-2012).

Tiago Montenegro (2014/04/04)