(1922-1994)
No catálogo da exposição Salette Tavares – Desalinho das linhas, Rui Torres salienta o modo como a obra de Salette Tavares resulta de um frequente cruzamento entre prática criativa e teorização, aspetos centrais de uma vida inteiramente dedicada à escrita e à arte. Às palavras propostas pelo ensaísta para se referir à poeta – “Intelectual culta, informada e (in)formadora” (TORRES 2010: 5) – poder-se-á, efetivamente, acrescentar outra: viajante.
Nascida em 1922, na cidade de Lourenço Marques (Maputo), Maria de La Salette Tavares mudou-se para Sintra em 1933 e viveu em Lisboa até à data do seu falecimento. A deslocação torna-se, assim, parte integrante de um imaginário ao qual Salette Tavares regressa recorrentemente: «O maior privilégio da vida foi a infância» (TAVARES 1985: 262). Perante uma poesia que assenta, frequentemente, na valorização das potencialidades de jogo e do culto do brincar, não deixa de se tornar pertinente recordar que “Ourobesouro” foi, na realidade, um brinquedo da poeta aos 12 anos. A conceção desta palavra, ou, se preferirmos, do seu “primeiro poema”, em 1934, viria a dar origem ao processo de espacialização num objeto de cristal e ouro (1963). Por outro lado, é na mesma altura que Salette Tavares desenvolve o que descreve como sendo uma «Ligação vital aos Jardins de Sintra» (ibidem). O profundo interesse pelo património artístico português levaria a poeta a escrever Sintra no Jardim da Esmeralda, uma leitura estética do Manuelino na paisagem, na arquitetura e na poesia que permanece, até hoje, inédita.
Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Lisboa, com uma tese intitulada Aproximação do Pensamento Concreto de Gabriel Marcel (1948) e, durante a frequência do curso, aprendeu espanhol com Manuel Albar, dando início aos estudos sobre pintura e às visitas a museus de diferentes países. No ano de 1949 estudou em Paris, cidade na qual frequentou diversos cursos, entre os quais destaca «três Seminários com Jeanne Delhomme. Curso de Heidegger com Jean Valle. Curso na Escola do Louvre com René Huygue» (idem: 263). Prosseguiu a sua formação em Estética e Teoria da Arte, estabelecendo, igualmente, diálogos profícuos com Maurice Merleau-Ponty e Gabriel Marcel.
A partir de 1950, foi professora de História do ensino liceal, fez fotografia e iniciou importantes investigações com barro e olaria, que viriam a dar origem aos primeiros objetos de poesia espacial. Publicou, em 1957, o seu primeiro livro de poesia, intitulado Espelho Cego e ganhou, ainda no final desta década, uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian para fazer uma especialização em Estética, em França e Itália. Durante este período, trabalhou não apenas com Mikel Drufenne e Étienne Souriau, mas também com Gillo Dorfles, figura que viria a reconhecer como crucial para o «aprofundamento dos conhecimentos de arte, dos artistas e dos especialistas ligados à Estética» (idem: 264).
A década de 60 revelou-se particularmente decisiva no percurso criativo de Salette Tavares, tendo escrito Poemas do Soporífero, que permanecera inédito até à sua inclusão em Obra Poética 1957-1971, e publicado as obras Concerto em Mi Maior para Clarinete e Bateria (1964), 14563 Letras de Pedro Sete (1965) e Quadrada (1967). Viajou, em 1964, para os Estados Unidos da América, onde visitou Nova Iorque, Chicago e Filadélfia, «cidades que lhe permitiram alimentar o seu gosto pela arquitetura» (ALVES / ROSAS 2014: 15). Durante esta estadia, estabeleceu contacto com Philip Johnson, Frank Lloyd Wright e Mies Van der Rohe, visitando, ainda, vários museus e coleções particulares. O regresso a Portugal constituiu a oportunidade de lecionar Estética na Sociedade Nacional de Belas Artes, estando as lições correspondentes, sem ilustrações, publicadas na revista Brotéria. Um livro intitulado A Dialética das Formas, que representa uma versão mais completa dessas mesmas lições, esteve composto em 1972, mas permanece inédito até hoje.
Durante este período, tornou-se uma figura incontornável da Poesia Experimental Portuguesa, grupo que desde cedo se integrou num movimento internacional, «muito por mérito próprio dos seus intervenientes, que sempre demonstraram a iniciativa dialogante necessária à sua divulgação fora de Portugal» (TORRES 2014: 25). Tendo participado em diversas atividades promovidas pelo grupo, Salette Tavares publicou no primeiro número dos Cadernos de Poesia Experimental (1964), organizado por António Aragão e Herberto Helder, um conjunto de poemas unificado pelo título “Brin Cadeiras”. Integrou a exposição coletiva “Visopoemas” (1965) e, nesse contexto, participou também no happening “Concerto e Audição Pictórica”, “escândalo para muito parvo” (TAVARES 1995: 19), realizado juntamente com Jorge Peixinho, António Aragão, E. M. de Melo e Castro, Mário Falcão, Clotilde Rosa e Manuel Baptista, na sala de exposições da Galeria Divulgação. Em 1966, participou no segundo número dos Cadernos, conferindo ao nome da sua primeira colaboração um novo formato: “Brincade Iras / irras / B irras”.
No ano de 1971, publicou Lex Icon, obra cuja edição italiana se encontra prefaciada por Gillo Dorfles e, dois anos mais tarde, viajou para a Alemanha, onde visitou cuidadosamente todo o Barroco e Rococó do Museu Nacional da Baviera. Durante este período, tornou-se presidente da AICA portuguesa, participou na Bienal de Veneza e apresentou, em 1979, uma exposição retrospetiva intitulada Brincar, na Galeria Quadrum.
Embora Obra Poética 1957-1971, publicada em 1992, ofereça uma delimitação temporal muito específica, o certo é que a produção de Salette Tavares não se confina a esse período. Com efeito, Poesia Gráfica (1995) e Poesia Espacial / Spatial Poetry (2014), editadas a partir de exposições póstumas, contribuem de um modo preponderante para um entendimento mais aprofundado da obra da poeta, integrando já um vasto número de trabalhos de poesia espacial “fabricados” por tipógrafos, oleiros, relojoeiros e tecelões. Trata-se de uma poesia também em deslocação, que integrou diversas exposições no estrangeiro.
Salette Tavares foi ainda responsável pela tradução dos Pensamentos de Pascal e de As maravilhas do cinema de Georges Sadoul, contribuindo, igualmente, de um modo empenhado, para a divulgação da Teoria da Informação de Abraham Moles, da análise estruturalista da arquitetura e da Estética Nova de Worringer.
Passagens
Moçambique, Portugal, França, Itália, Suíça, EUA, Espanha, Alemanha.
Citações
1945-46, aprendo Espanhol com o grande filólogo Manuel Albar. Estudos sobre pintura espanhola com Lafuente Ferrari (Goya e Arte Moderna) e Camon Aznar (Murillo, Velasquez e Zubaran). Cursos de Literatura e Artes Plásticas. Estudo a Pintura do Prado. (…) [1947,] Ida à Suissa. Visita de estudo ao Museu de Basileia e ao Goethe Annung. (TAVARES 1985: 262-263)
1964, vou à América trabalhando no Museu de Nova York, em todos os departamentos, especialmente com o meu amigo e conservador daquele Museu o poeta Frank O’Hara. Estudo a Arquitectura Moderna de Nova York, orientada por Philip Johnson. Visito colecções particulares. Em Filadélfia, com o Arquitecto português Hestnes Ferreira, que se doutorou ali e trabalhava no atelier de Louis Cahn, vejo arquitectura moderna e o Museu de Filadélfia, onde encontro a grande colecção de Marcel Duchamp, com cuja poética me identifiquei em toda a minha obra. Em Chicago, trabalho em todos os Departamentos do Instituto de Arte, e estudo sem falhar uma, toda a arquitectura da cidade, incluindo a dos parques, porque consigo coordenar a localização de cada edifício, com um texto de um arquitecto com quem trabalhei, que sobre cada um tinha indicações precisas. Fui ainda a Racin ver a Fábrica Johnson de Frank Lloyd Wright. Fiquei ligada ao atelier de Mies Van der Rohe. (idem: 265)
Viagem à Alemanha, Itália e 1º encontro com Barcelona. Descoberta da grande pleiade de arquitectos em que Gaudi está integrado. (idem: 267)
Riram-se muito os poetas brasileiros que me visitaram interessados pelo que fizemos, frente a certa crítica em que gravemente censuravam as brincadeiras (com coisas sérias). E até me informaram do que pensam quando se é capaz de insultar alguém chamando-lhe barroco. Não entender o Barroco, para um brasileiro é bom sintoma de se ser falsamente culto. (TAVARES 1995: 18)
Assim não é de admirar que estes poemas, aqui ignorados, começassem sem darmos por isso, a dar a volta ao mundo. Vocação itinerante de portugueses. Livros, jornais, revistas, exposições, ensaios, que nos dedicam, ainda no correr do ano de 75. (ibidem)
Não sei, Ana [Hatherly], que mais lhe diga. Fiz edições de poemas experimentais outros e alguns dos publicados nos Cadernos, que foram só dois e tanta importância cultural parecem ter tido. No entanto, é bem verdade que as grandes solicitações nos vêm sempre lá de fora. É uma poesia que em geral não precisa de tradução. Sobretudo aquela em que os aspectos sonoros ou visuais são mais importantes. (idem: 19)
Em casa de meus Pais havia
grandes chávenas de loiça para fazer chichi.
No museu de Arte Moderna em Nova Iorque há
uma chávena de pêlo mas não vi
nenhum penico. Para Duchamp fico
na secção de Design a esperar vê-lo.
(TAVARES 1992: 429)
Bibliografia Ativa Selecionada
TAVARES, Salette (1948), Aproximação do Pensamento Concreto de Gabriel Marcel, Lisboa, Boa Nova.
— (1967), “Teoria da Informação e Abraham A. Moles”, Brotéria, 84. 152-173.
— (1969), “Arquitectura, semiologia e mass media”, Brotéria, 88. 196-220.
— (1985), “Curriculum Vitae”, in Poemografias: Perspectivas da Poesia Visual Portuguesa, Lisboa, Ulmeiro. 262-268.
— (1989), “Algumas questões de Crítica de Arte e de Estética na sua relação”, Colóquio Artes, 82. 42-29.
— (1992), Obra Poética: 1957-1971, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
— (1995), Poesia Gráfica, Lisboa, Casa Fernando Pessoa.
— (2014), Poesia Espacial / Spatial Poetry, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
Bibliografia Crítica Selecionada
ALVES, Margarida Brito / Patrícia Rosas (2014) “Salette Tavares: Uma obra de arte não é um pastel de massa tenra”, in Poesia Espacial / Spatial Poetry, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. 13-23.
DORFLES, Gillo (1992), “Prefácio à Edição Italiana de Lex Icon”, in Obra Poética 1957-1971, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda. 403-413.
HATHERLY, Ana / E. M. de Melo e Castro (orgs.) (1981), PO.EX: textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa, Lisboa, Moraes Editores.
MELO E CASTRO, E. M. de (1967), Dialéctica das Vanguardas, Lisboa, Livros Horizonte.
— (1995), “Visões do Espelho Cego”, in Voos da Fénix Crítica Lisboa, Livros Cosmos. 177-184.
PICCHIO, Luciana Stegagno (1992), “Brin-cadeiras para Salette Tavares”, in Obra Poética: 1957-1971, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
TORRES, Rui (2006), “Transposição e variação na poesia gráfica e espacial de Salette Tavares”, Aletria – Revista de Estudos de Literatura, 14, Minas Gerais, UFMG. 267-284.
— (2010), “Salette Tavares: Desalinho das linhas”, in Catálogo da Exposição Salette Tavares – Desalinho das linhas, Lisboa, Centro Cultural de Belém. 5-9.
— (2014), “Salette Tavares e a Poesia Experimental Portuguesa”, in Poesia Espacial / Spatial Poetry, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. 25-35.
Inês Cardoso – 1º Ano DELCI 2017/2018