(1932-1984)
1964 foi um ano marcante para Lisboa no cinema. Acolheu a estreia de Belarmino de Fernando Lopes, o primeiro filme a sair do pátio interior da comédia à portuguesa e a mostrar a rua como um espaço vivo, onde moram todas as personagens “para quem” Belarmino fala. Mas foi também em 1964 que Alain Bornet e Pierre Kast filmaram na capital portuguesa, respectivamente, Le Pas de Trois e Le Grain de Sable. E François Truffaut o seu La Peau Douce.
A Lisboa de Truffaut, porém, é muito diferente da de Lopes. É uma cidade subjectiva, filmada sempre através do filtro emocional de Pierre Lachenay e da sua improvável amante que, em território neutro, se oferecem a uma aventura amorosa. É uma cidade que vive de interiores e de espaços de transição e de efemeridade: o avião apanhado uma vez, o quarto habitado uma noite e o restaurante que serve de palco a uma conversa, onde a paixão nasce com um ímpeto fulgurante e sombrio, prenunciando já o final trágico de uma ligação melancólica e acossada. De Portugal vemos muito pouco: o aeroporto da Portela, a calçada da Avenida da Liberdade, o Elevador da Bica, um postal turístico da região do Douro, o Elevador de Santa Justa e o cartaz do Algarve que pauta o enquadramento do casal no restaurante A Quinta. Não encontramos, assim, nem os cenários pitorescos que tinham trazido a Portugal Ray Milland para o seu Lisbon (1956) ou Henri Verneuil para Les Amants du Tage (1955), nem a fascinante luz branca que seduziria, décadas mais tarde, Alain Tanner em Dans la Ville Blanche (1983) ou Wim Wenders em Lisbon Story (1994). A procura de uma imagem desoladora, anónima e banal para a cidade e a introdução de elementos caracterizadores pouco rigorosos, como o facto de todos os habitantes desta cidade do cinema falarem Português do Brasil, constituem caminhos eficazes para o retrato de Nicole, que está, por profissão, em constante viagem e, por temperamento, em invariável desorientação. É, contudo, neste território anódino que o desejo nasce, proporcionando ao perito em Balzac uma fuga à sua vida burguesa e previsível. Ironicamente, é o opressivo e moralista Portugal de 1964 que Truffaut elege para palco de transgressão, como se qualquer espaço alheio constituísse uma antítese à arena sufocante que era a Paris onde se movia Pierre Lachenay. Jean-André Fieschi, na sua crítica ao filme publicada no mês da estreia nos Cahiers du Cinéma, sublinha o anonimato de Portugal trabalhado por Truffaut, comparando-o às desorientações espacio-temporais conseguidas por Bresson em Pickpocket (1959):
Chez Bresson, […] le voyage du pickpocket se réduisait à une page de journal intime entre deux plans de gare de Lyon, contraction au profit du seul itinéraire “spirituel”. Or, Truffaut filmant Lisbonne n’en montre guère plus que Bresson ne filmant rien du tout, et si Desailly se rend à Reims, c’est pour s’entendre reprocher de ne pas prendre le temps d’en goûter “le sourire”. Lisbonne et Reims sont d’ailleurs des jalons essentiels du récit : si l’on y accompagne les personnages, c’est pour que le pittoresque disparaisse d’autant mieux d’avoir été un instant sollicité. La progression dramatique s’y résout donc en ouvertures et fermetures de portes – de voitures, d’ascenseurs, de chambres -, en va-et-vient, en gestes ébauchés, en une résolution analytique littérale qui constitute l’espace essentiel de la dédramatisation. (FIESCHI, 1964: 49)
André Téchiné ainda vai mais longe, defendendo, no texto “D’une distance l’autre”, que todo o filme de Truffaut é um ensaio sobre a distância. Nele, afirma que a deslocalização é um produto da velocidade do mundo capitalista, renovado pela revolução tecnológica crescente e simbolizado, em La Peau Douce, pelas viagens de avião Paris-Lisboa e Lisboa-Paris. A história de amor vivida entre Pierre e Nicole seria constituída, assim, por reboots sucessivos e velozes da relação, ditados pelos novo espaços geográficos anonimamente ocupados pelo casal de amantes:
Trajectoire se faisant et se défaisant, La Peau Douce nous parle de distance. [… C]’est non seulement un documentaire sur l’aviation mais sur la vitesse. Car l’abolition partielle ou plutôt apparente des distances géographiques renouvelle trop précipitamment les décors. Il faut à chaque escale recommencer une nouvelle approche, coordonner de nouvelles distances […]. Et ce passage d’un lieu à l’autre (du Portugal à Paris via l’hôtel de la Colinière) comme de l’attente (après la conférence sur Gide) au repos (à la campagne) restitue une durée ni fragmentaire ni uniforme, mais proprement incertaine (les distances étant fausses.). (TÉCHINÉ, 1964: 50)
Se a viagem e a deslocalização interessaram Truffaut em La Peau Douce, interessá-lo-iam ainda mais no seu filme subsequente, Fahrenheit 451 (1966), adaptado do romance homónimo de Ray Bradbury. O projecto, financiado pela Anglo Enterprises e pela Vineyard Film, obrigou Truffaut a uma deslocação física aos Pinewood Studios em Inglaterra, onde rodou integralmente a longa-metragem, cuja narrativa, no entanto, se situava num país fictício de geografia não identificada. Como em La Peau Douce, o intuito da localização exógena não é o do retrato socio-cultural mas sim o de uma construção de uma paisagem outra, exclusivamente diegética e maximamente filtrada pela subjectividade das personagens e, aqui, concebida com a linguagem da ficção científica. Mas a jornada a Inglaterra foi também psicológica e intelectual, obrigando o cineasta a trabalhar com técnicos e actores estrangeiros e, sobretudo, em inglês, uma língua que mal dominava. A experiência foi dolorosa e, a partir de então, a não ser no périplo exigido pela narrativa geograficamente partilhada de L’Histoire d’Adèle H. (1975), que obrigou a uma passagem pelos Barbados, Ilhas do Canal e Senegal, Truffaut sempre filmou em França. Contudo, duas outras experiências de cariz diverso marcariam fortemente a vida internacional do cineasta. A primeira, a participação, como actor, em Close Encounters of the Third Kind (1977) de Steven Spielberg, cujo carácter épico e colossal Truffaut descreveu no seu texto “En tournant pour Spielberg”:
Je rentrai en France à l’automne pour commencer L’Homme qui Aimait les Femmes à Montpellier, mais je ne tardai pas à recevoir des nouvelles de Spielberg. Il avait besoin de moi en Inde, à Bombay, où je ne pus le rejoindre qu’en mars 1977 car il n’était pas question d’interrompre mon propre tournage. Toujours souriant, inchangé, infatigable, Spielberg organisa à toute allure une grande scène d’action avec les figurants et des villageois hindous. Alors il me dit que son film était au montage, que le puzzle s’ajustait bien mais qu’il aimerait encore tourner une scène ou deux, peut-être au Mexique, peut-être à Monument Valley, le désert popularisé par John Ford… Dans l’euphorie de ce très agréable tournage indien, je répondis que j’étais d’accord, que j’aimais décidément beaucoup l’idée que ce tournage serait sans fin. “Je me suis habitué, dis-je à Steven, à l’idée qu’il n’y aura jamais un film intitulé Close Encounters mais que vous êtes un type qui fait croire qu’il tourne un film et qui réussit à grouper beaucoup de gens autour de sa caméra pour accréditer cette immense blague. Je suis content de faire partie de cette blague et je suis prêt à vous rejoindre de temps à autre n’importe où dans le monde pour “faire semblant” de tourner un film avec vous. (TRUFFAUT, 1987: 47-48)
A segunda, a realização da monumental entrevista a Alfred Hitchcock que daria origem ao Hitchcock/Truffaut, ainda hoje considerada como uma das mais importantes obras sobre o cineasta que a geração da Nouvelle Vague, que orgulhosamente se auto-adjectivava “hitchcocko-hawksienne”, tanto louvou.
A deslocação e a viagem foram, por fim, elementos extremamente presentes no trabalho de Truffaut na sua relação com a orfandade e a distância emocional, que o cineasta bem conhecia, fruto da sua juventude revoltada e da adopção, física e intelectual, por André Bazin. Assim, mesmo quando a movimentação no espaço não implica uma passagem a uma paisagem estrangeira, é sempre, no cinema de Truffaut, uma procura de um lugar de antítese, de negação da claustrofobia sentida no ponto de partida. Atesta-o a fuga à inundação em Une Histoire d’Eau (1961), a única co-realização com Jean-Luc Godard, e acima de tudo, a evasão constante de Antoine Doinel, que começa na última cena de Les Quatre Cents Coups (1959) e que só terminaria, vinte anos mais tarde, em L’Amour en Fuite (1979).
Porém, a deslocação de Truffaut a Portugal não é apenas significativa no âmbito da obra do realizador, mas também fulcral como incentivo ao despertar da Nova Vaga em Portugal. Pierre Kast explica, no seu artigo “Lettre de Lisbonne”, como a rodagem de La Peau Douce foi fundamental para o arranque do movimento liderado por Paulo Rocha, Fernando Lopes, Fernando Matos Silva, António-Pedro Vasconcelos e José Fonseca e Costa:
Un petit pays. Peu de salles. Peu de ressources. Une production cinématographique annuelle jusqu’alors très faible. Puis il se passe quelque chose. Un faisceau de circonstances: un film français se tourne au Portugal, avec des moyens artisanaux, un jeune homme, sorti de l’IDHEC, mêlé à cette production, décide de faire des films à d’autres jeunes gens, ses amis, avec des budgets limités. Résultat, il naît une nouvelle vague portugaise. En un an, cinq films terminés, entrepris, ou en cours. Le premier film de la série vient de sortir, avec un grand succès. La position du jeune producteur est consolidée. Il a l’intention, et les moyens, de continuer, l’intention de résister à la tentation d’importer, d’implanter des superproductions du type américan, sachant qu’à long terme, il en périrait. Un bilan finalement exemplaire. (KAST, 1964: 41)
Nesta carta portuguesa publicada no número 153 dos Cahiers du Cinéma, o filme francês é, naturalmente, La Peau Douce, o “jeune homme, sorti de l’IDHEC” António da Cunha Telles, as “autres jeunes gens” a geração do Cinema Novo e o “premier film” Os Verdes Anos de Paulo Rocha. O contacto com Truffaut durante a rodagem foi precioso para Cunha Telles e ajudou a importar, de forma inteligente e transfiguradora, a estética da Nouvelle Vague, que o autor francês tinha fundado em Paris, com Godard, Chabrol, Rivette e Rohmer, cinco anos antes. Por outro lado, proporcionou a apropriação e adaptação de mecanismos de crítica social e política que, embora dissimulados, enformaram o tom dos filmes do Cinema Novo antes do 25 de Abril, de Belarmino (1964) a Perdido por Cem… (1973).
Passagens
França, Portugal.
Citações
Bibliografia Ativa Selecionada
TRUFFAUT, François & SCOTT, Helen (1966), Hitchcock/Truffaut, Paris: Gallimard.
TRUFFAUT, François (1987), Le Plaisir des Yeux, Paris: Flammarion.
Bibliografia Crítica Selecionada
DRAZIN, Charles (2011), French Cinema, Nova Iorque: Faber & Faber.
FIESCHI, Jean-André (1964), “Le sourire de Reims”, Cahiers du Cinéma, 157, Julho 1964, pp. 47-50.
JEANCOLAS, Jean-Pierre (1995), Histoire du Cinéma Français, Paris: Armand Colin Cinéma.
KAST, Pierre (1964), “Lettre de Lisbonne”, Cahiers du Cinéma, 153, Março 1964, p. 41.
SADOUL, Georges (1965), Dictionnaire des Cinéastes, Paris: Microcosme / Éditions du Seuil.
SADOUL, Georges (1965), Dictionnaire des Films, Paris: Microcosme / Éditions du Seuil.
TÉCHINÉ, André (1964), “D’une distance l’autre”, Cahiers du Cinéma, 157, Julho 1964, pp. 50-51.
David Pinho Barros