(1901-1975)
Tão pouco sabe o povo português de um autor que a ele devotou aquela que talvez seja a mais plena homenagem: a escrita, a que em páginas se guarda, de um estrangeiro que nos olhou de dentro e que de coração se converteu português. A Janelas Verdes, obra de Murilo Mendes aqui em análise, Luciana Stegagno Picchio chamou “um livro português, um acto de amor a Portugal” (Picchio, 2003: 7). Haverá dedicação maior do que a que se origina em afeto, não em obrigação?
Murilo Monteiro Mendes – que, do tanto que foi, em poeta brasileiro mais frequentemente se resume, segundo Laís Corrêa de Araújo (Araújo, 1972) – nasceu filho de Onofre Mendes e Eliza de Barros Mendes, em Juíz de Fora, Minas Gerais, a 13 de maio de 1901. Nesta memória de infância e juventude, arquivou cuidadosamente a passagem do cometa Halley, em 1910, e, sete anos mais tarde, a fuga do colégio interno para assistir aos espetáculos do bailarino russo Nijinski: como nascentes de deslumbre pelo mundo. A elas se agarrou como se poesia e delas fez uso como se musas da arte. Os estudos que iniciou na terra natal e que prosseguiu no colégio de Niterói conduziram-no naturalmente, em 1920, ao Rio de Janeiro, cidade da alegria e da vida, que o inspiraria às primeiras tentativas de criação: aí principiou o seu trabalho literário, ao publicar inúmeros poemas em revistas modernistas. Talvez destas primeiras ligações advenha a sua conexão a uma chamada Segunda Geração Modernista que o autor, contudo, sempre negou, numa recusa insistente – mas infelizmente pouco conseguida – de se apartar de qualquer estilo, género ou conotação. Assim defendia convictamente a bandeira da liberdade criadora – fiel, unicamente, a personalidades e valores. Em 1930, fez chegar ao público a sua primeira obra, Poemas. Antes de mais escritor, atravessou, embora por períodos de tempo não muito longos, outras áreas em nada à primeira semelhantes: telegrafista, auxiliar de contabilidade, notário, entre outras. No entanto, por cansaço da vida ou alma de viajante, preteriu o conforto de uma vida em terra conhecida em favor da descoberta do novo e, entre as décadas de 40 e 50, mudou-se para a Europa que intentara conhecer ainda do outro lado do Atlântico. A sua primeira incursão por um continente que tanto o fascinara fez-se de breves e saltitantes passagens por países como a Bélgica e a Holanda até se fixar, em 1957, em Roma, como professor de literatura e cultura brasileiras, premissa a partir da qual percorreu a Europa em conferências e se tornou referência assídua em crónicas e trabalhos literários.
Entre passagens buliçosas e longas viagens, descobriu Portugal, país ao qual dedicou a alma e do qual fez segunda casa, raízes intensificadas pelo casamento com Maria da Saudade Cortesão, filha do médico, político e escritor português Jaime Cortesão, personalidade com a qual desenvolveu a mais pura amizade – a que se alimenta da admiração. Sem descendentes, de família ausente que não a portuguesa, entregou-se intensamente à produção literária que iniciara com Poemas, legando uma obra tão vasta quanto vária, da qual se destacam, em diversos géneros: História do Brasil (1932), Tempo e Eternidade (1932), O Discípulo de Emaús (1944), Janela do Caos (1948), Tempo Espanhol (1959) e A Invenção do Infinito (2002) e Janelas Verdes (2003), as duas últimas póstumas. Uma obra que se fez de uma experimentação muito própria da realidade, de um mundo imaginado, de um puzzle de formas e estilos, num discurso que se pondera a si próprio antes de fluir. O autor escreve tanto aquilo que vê quanto aquilo que imagina. Vê para além do visível e sente a necessidade de o colocar em palavras. Observa através da escrita, numa obra urgente de se construir, e, no seu texto Microdefinição do Autor, Murilo Mendes faz saber: “Sinto-me compelido ao trabalho literário: pelo desejo de suprir lacunas da vida real; pela minha teimosia em rejeitar as “avances” da morte (…); pelo meu congénito amor à liberdade (…); pelo meu não reconhecimento da fronteira realidade-irrealidade” (Mendes, 2003: s/p). Neste nosso país que escolheu amar, faleceu, no Estoril, a 13 de agosto de 1975, e nele permanece.
Nada nos ensina mais sobre o nós que somos do que olharmo-nos através do outro. É no encontro com a perspetiva do outro, no confronto com o que o outro pensa, que melhor nos descobrimos e redefinimos. Em Janelas Verdes colocamo-nos em frente do espelho que é a visão de um viajante brasileiro sobre Portugal e os portugueses. Os primeiros passos do autor no nosso país datam de 1953, momento em que aqui lecionou literatura brasileira, todavia a obra somente seria terminada em 1970. Dirigia-se ao povo português sobre o qual escreveu e pretendia, primordialmente, aqui ser publicada, contudo foi-o primeiramente no Brasil, por motivos que se supõem de ordem editorial. Apenas após a morte do autor, em 1989, alcançou o público português, conquanto numa versão parcial, distinta da que o autor havia concebido. A edição completa foi publicada tão-só em 2003.
Uma obra que inicialmente se apresenta como mero relato de um viajante brasileiro sobre um país e o seu povo transforma-se página a página num tributo, num canto de homenagem, numa declaração de amor a Portugal e aos portugueses. Trata-se de uma veneração apenas possível se através da afeição, não da mera contemplação; uma expressão respeitadora de um belo que o olhar estrangeiro mais fácil e espontaneamente perceciona.
Janelas Verdes: um título que o português naturalmente associaria ao imponente edifício do Museu de Arte Antiga de Lisboa e que assim confinaria a obra a um espaço fechado, a uma visão diminuta. No prefácio à obra, Luciana Stegagno Picchio refere: “Mas, para ouvidos brasileiros, “Janelas Verdes” é sinónimo de rua lisboeta, fachadas de casas de azulejos, com suas persianas pintadas de verde, abertas para o sol entrar, fechadas para proteger a intimidade do lar. Uma vista de fora para dentro, do aberto para o fechado” (Picchio, 2003: 7). Ainda em notas adicionadas à obra, o autor desengana o leitor, redirecionando o título para as ruas e os passeios portugueses, o povo português, uma abertura para os outros, uma atitude de acolhimento. Uma perspetiva aberta, ampla, comunicativa, viva. A edição de 2003 – tão mais próxima do que Murilo havia traçado – divide-se em duas partes (dois “setores”) e um apêndice, correspondendo ao que o próprio autor reconheceu como falta de coesão, de homogeneidade. No primeiro setor, o leitor encontrará a cidade imaginada, que não mais é do que um meio muito próprio – em jogo realidade versus irrealidade – de olhar o mundo. Um conjunto de cidades e lugares tão portugueses quanto Guimarães, Porto, Lisboa, a Serra do Marão, as Berlengas e Freixo de Espada à Cinta, que desfilam em mais do que simples observação: em conhecimento profundo, em visita atenta, em desejo de maior descoberta.
No segundo setor, o autor dedica-se a retratos de escritores e artistas portugueses – de Gil Vicente e Mariana Alcoforado a Eça de Queirós e Florbela Espanca – que, por sua vez, são novas dedicatórias a outras personalidades – de Mário Soares e Maria Barroso a Sophia de Mello Breyner e o sogro Jaime Cortesão – num labirinto de nomes e histórias que transmitem, como qualquer leitor concordará, a mais bela das admirações. Em apêndice, foram acrescentados manuscritos do autor – nos quais se inclui o já mencionado texto Microdefinição do Autor – e outros textos maioritariamente em verso que o poeta designou de Murilogramas. Assim se compreende uma certa fragmentação de que falávamos, como se de um trabalho de colagem se tratasse, como uma manta de retalhos que Murilo vai construindo e desconstruindo em pausa e recomeço. A obra resulta de uma montagem de observações, de discursos, de relatos, de retratos, de dedicatórias, de tudo um pouco que o autor vai absorvendo do mundo que contempla em estupefação. Numa linguagem que, conquanto simples e em tentativa constante de aproximação ao português de Portugal, vai pausando para respirar, rever-se e reescrever-se, Murilo desfia, segundo Elsa Pereira (Pereira, 2003), diferentes géneros, discursos e técnicas – da prosa à poesia, da ficção à realidade.
Ao longo das páginas que se desfolham, a obra comporta uma evolução tanto indiscutível quanto indescritível: de uma contemplação em êxtase para uma observação crua e dura. Em momento algum Murilo permite que o afeiçoamento ao objeto lhe tolde a clareza com que o perspetiva. Uma característica unifica o discurso: uma fidelização no relato que só é praticável quando lhe precede uma admiração intrínseca pelo que é relatado. Relembro: haverá homenagem mais bela?
Passagens
Brasil, Portugal, Bélgica, Holanda, Espanha, Itália.
Citações
O passeio às margens do Douro, com alguns pontos arcádicos intactos, remetendo-nos à época do prestígio da “natureza”, conclui-se, no regresso, por um impacto: a visão do bairro da Ribeira, trágico panfleto se movendo contra o egoísmo humano e a estrutura da sociedade capitalista. Ali, a miséria começa no ventre da mulher grávida, na futura criança em breve exposta à chuva, às moscas, à sujeira, e termina no velho descalço, roto, esfaimado. (Janelas Verdes, p. 23)
Deixo a dissonante Setúbal, seu ar de temporal adiado, uma torneira (de hotel) que não funcionava, talvez implicasse comigo; suas pós-sereias de mãos fora da moda, olhos bem no lugar dos olhos, netas retardatárias das sereias amigas de infância de Bocage; suas conversas e conservas. Vou ruminando, pensamenteando, curiosando, flautizando coisas; afundo-me nas delícias cinematográficas do gerúndio. Respiro: talvez o nosso último álibi. (idem, p. 110)
Em compensação Dom José, todo verde, levanta-se da base de sua estátua, inclinando-se em sinal de reverência à luta grandiosa e anónima das mulheres portuguesas que, nascidas do povo, amam e vivem para o povo; e que, ainda ao morrer, trabalham, sonhando sempre com uma casa de janelas verdes, na cidade ou no campo. (idem, p. 126)
(…) e, querendo dessacralizar a temática e as fórmulas, quase sempre convencionais ou ridículas, “Portugal pequenino”, “Portugal dos meus avós”, procedi com extrema liberdade e desenvoltura. Espero, entretanto, que tenha deixado aqui a marca do meu afecto. (idem, p. 193)
Bibliografia Ativa Selecionada
MENDES, Murilo (2003), Janelas Verdes, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições.
Bibliografia Crítica Selecionada
ARAÚJO, Laís Corrêa de (1972), Murilo Mendes, Rio de Janeiro, Editora Vozes.
— (1972), Murilo Mendes – nota biográfica, introdução crítica, antologia, ideário crítico, depoimentos bibliográficos, Rio de Janeiro, Editora Vozes.
FERRAZ, Eucanaã (2003), “Em Portugal com Murilo Mendes”, in MENDES, Murilo, Janelas Verdes, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições.
FRIAS, Joana Matos (1999), “Murilo Mendes e o Cosmotexto Ideogramático”, in Revista da Faculdade de Letras: Línguas e Literaturas, vol. XVI, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, pp. 125-142.
— (1998), Tempo e negação em Murilo Mendes, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Dissertação de mestrado em Estudos Portugueses e Brasileiros.
PEREIRA, Elsa (2004), “A cidade, sob o signo da invenção: Janelas Verdes, de Murilo Mendes”, in Terceira Margem – Revista do Centro de Estudos Brasileiros, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, nº 5, pp. 35-42.
PICCHIO, Luciana Stegagno (2003), “As Janelas Verdes de Murilo Mendes”, in MENDES, Murilo, Janelas Verdes, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições.
Inês Santos Silva – Estudante do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes (2016/02/04)