Llansol, Maria Gabriela

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Llansol, Maria Gabriela

(1931-2008)

Autora excêntrica no sentido real e metafórico do termo, Maria Gabriela Nunes da Cunha Rodrigues Llansol enveredou pelo estranhamento em várias frentes, forçando as fronteiras genológicas, colocando-se à margem dos espaços e rituais de consagração, perscrutando novos e exigentes caminhos tanto para a escrita como para a leitura.

Muito para além da circunstância do seu afastamento físico do país natal, a vivência profunda da “desterritorialização”, enquanto abandono e abdicação de limites fixos, levá-la–ia a fundar um outro sentido de hospitalidade e de comunhão com os seus “legentes”, convidados eles também a distanciar-se de códigos e topografias convencionais de pensamento.

Acompanhando a deserção do seu marido e mais fiel companheiro de odisseia espiritual, António Joaquim, Maria Gabriela Llansol viveu entre 1965 e 1975 fora de Portugal, exilada na Bélgica, onde fundou com um grupo de amigos duas escolas de inovação pedagógica para crianças de diversas nacionalidades. Primeiro, a Escola da Rua de Namur, entre 1971 e 1974, depois a “Ferme Jacob/ Quinta de Jacob – uma cooperativa de produção e ensino, em Louvain-la-Neuve, entre 1975 e 1979.

Tanto durante os primeiros 10 anos em que não veio a Portugal, como mesmo durante quase outros dez, em que o fez pontualmente, não deixou de construir o seu imaginário de interioridade des-subjetivizada, habitado pela dispersão, pela metamorfose e pelo retorno de personagens e vozes da mais exigente tradição do pensamento europeu, onde se incluem vultos como Maître Eckart, Espinoza,Nietzche, Holderlin ou Pessoa.

Numa das suas passagens por Lisboa, em 1983, Maria Gabriela Llansol anotou no seu “Diário” – Um Falcão no Punho: (…) escrevendo sobre lugares alienos, estrangeiros, dei a impressão de não estar a falar daqui.” [E continuava]: Mas eu nunca saí daqui, no sentido de que nunca abandonei o meu corpo” (Llansol, 1985: 145). E a metonímia desse corpo a um tempo enraizado e projetivo não poderia ser senão a língua sobre a qual também aí deixou escrito: “ O meu país não é a minha língua, mas levá-la-ei para aquele que encontrar” (idem: 47), como se quisesse desviar-se de alguns aproveitamentos tão rápidos quanto reducionistas da célebre máxima pessoana.

Embora a escrita llansoliana tenha sido avessa à representação mimética ou simplesmente documental (Llansol, 2001: 123), foram nela emergindo sinais da experiência de profunda habitação à distância e à margem que a autora viveu durante o exílio (quando não mesmo no pós-exílio), através de alusões à sua casa de Jodaigne ou de Herbais, nesse “extremo ocidental do Brabante”, tornado lugar inaugural, genesíaco, ou seja, “um aqui poderosamente sobreimpresso” (Llansol, 1994: 134). Importa, contudo, sublinhar que a cartografia ficcional e mutante delineada por Llansol não concorre para nenhuma mitologia do território fixo, seja ele nacional ou estrangeiro, antes se entrelaça e deslaça em pontos de fuga para “contornar lugares ocupados, (…) desdobrar sitiados caminhos” (Soares, 2000:971), deixando-se assim possuir ou diluir no “encontro inesperado do diverso”.

De resto, as referências a lugares concretos da Bélgica e /ou de Portugal surgem quase sempre cultivadas em “tom menor” e publicadas à distância do tempo, desvinculando-se conseguinte e quase sempre de qualquer anedotário autobiográfico, de efeito narcísico e/ou de proveito voyeurista, já que a esta autora, sempre interessaram os rasgos metafísicos e errantes da existência a emergirem do trabalho “gestatório” da escrita.

Ao deslocamento linguístico provocado pelas circunstâncias exílicas que levaram Maria Gabriela Llansol a conviver diretamente com a língua francesa, não será também estranha a sua atividade de tradutora, no sentido benjaminiano do termo, de que resultaram – já depois do seu regresso a Portugal – traduções de Verlaine, Rimbaud, Thèrese Martin de Lisieux, Apollinaire, Paul Éluard e Rilke.

O vasto espólio deixado pela autora de Contos do Mal Errante, cuidado agora pelo Espaço Llansol na sua casa em Sintra, ainda terá muito a revelar quanto à sua experiência de exílio, real e simbólico, transfigurado na busca incessante de um território por vir, onde “as diferentes formas de vida tentem uma outra ocupação da terra” (Llansol, 2001: 123). Isso mesmo o comprovam os Livros de Horas que começaram a ser publicados, a partir dos cadernos manuscritos da autora (Llansol, 2009 e 2010), que se têm revelado como verdadeiros “lugares seminais” da escrita llansoliana (Llansol, 2010:13), onde predominam registos pessoais e até intímos, em especial no Livro de Horas II, que acompanha os anos de 1977 e 1978, quando a autora vivia ainda na sua casa de Jodoigne.

 

Passagens

Portugal, Bélgica.

 

Citações

Herbais, 27 de Agosto de 1981
Fim de mês muito penoso. Sempre a mesma nostalgia, e a sensação do já visto. Os Capuchos, uma praia, Lisboa, deviam ser do lado de Herbais.” (Um Falcão no Punho: 51)

Mas sinto-me como alguém que viaja em país estrangeiro, por não me sentir, de modo algum, ligada a uma nação. Na Bélgica, sinto-me menos em terra alheia talvez porque está explícito que nenhum laço de origem política me liga a este país. Sem país em parte alguma, salvo no vazio em que me dei a uma comum idade. (Finita: 72)

Uma parte da minha vida ajustou-se ao pátio e à casa de Jodoigne; é recta; decorre com equidade ; outra, faz-me sair de mim, quase todos os dias; gostaria de partir para longe, e rapidamente, mas não desejaria ser confrontada a uma paisagem sem necessidade, nem razão. Desiquilibram-se as partes. (Lisboaleipzig 1, o encontro inesperado do diverso: 12)

Como se eu investigasse, no dia a dia de outrora, um fio condutor, correspondências temáticas e de preocupação, sob a forma geral da partida e da mudança: saída de Jodoigne para Herbais, e desta para Colares, e entrada em Portugal, após vinte anos. Ao reler-me, porém, essas passagens –metamorfose revelaram-me que Jodoigne foi a casa das beguinas, que Herbais foi o lugar de encontro de Infausta, de Aossê e de Bach, e que em Colares acabaram por encontrar-se os membros dispersos da comunidade, nos seus extractos de época, distintos, idênticos e evolutivos. (idem: 46)

20 de Julho de 1978, quinta.
Caminho aéreo para Lisboa. O abismo.
Não se tratava do mastro de uma cravela, mas do arqui-espaço das nuvens.

Sobe, sobe, gageiro
Àquele mastro real
Vê se vês terras de Espanha,
Areias de Portugal.

Sobe, sobe, gageiro
Àquela nuvem real
Vê se vês meus seres da Bélgica.
Areias de Portugal. (Um Arco Singular. Livros de Horas II: 221)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

LLANSOL, Maria Gabriela (1985), Um Falcão no Punho. Diário I, Lisboa, Rolim.
—- (1990), Um beijo dado mais tarde, Lisboa, Rolim.
—- (1994), Lisboaleipzig 1, o encontro inesperado do diverso, Lisboa, Rolim.
—- (1995), Lisboaleipzig 2, Lisboa, Rolim.
—- (1999), O Livro das Comunidades, seguido de Apontamentos sobre a Escola da Rua de Namur. Posfácio de Silvina Rodrigues Lopes. Lisboa, Relógio d’Água. [1977] —- (2001), A Restante Vida, Lisboa, Relógio d’Água.
—- (2005), Finita. Diário II, Posfácio de Augusto Joaquim. Lisboa, Assírio & Alvim. [1987].
—- (2009), Uma Data em Cada Mão. Livro de Horas I (Lovaina e Jodoigne, 1972-1977), Selecção, transcrição, introdução e notas de João Barrento e Maria Etelvina Santos. Lisboa, Assírio & Alvim.
—- (2010), Um Arco Singular. Livro de Horas II (Jodoigne, 1977-1978), Selecção, transcrição, introdução e notas de João Barrento e Maria Etelvina Santos. Com a colaboração de Maria Carolina Fenati, Lisboa, Assírio & Alvim.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

BARRENTO, João (2008), “A Chave de Ler”, A Dobra do Mundo, Lisboa, Mariposa Azul, pp. 32-39.
EIRAS, Pedro (2005), O texto sobrevivente (Lendo três Lugares d’ O Livro das Comunidades), Caminhos do texto de Maria Gabriela Llansol, Jade-Cadernos Llansolianos, Edições do Espaço Llansol, 5.
GUERREIRO, António (1986), “O texto nómada de Maria Gabriela Llansol”, Colóquio/Letras, 91, pp. 66-69.
LOPES, Silvina Rodrigues (1988), Teoria da Des-possessão, Lisboa, Black Sun Editores.
MOURÃO, José Augusto Mourão (1997), “Figuras da Metamorfose na Obra de Maria Gabriela Llansol”, Colóquio/Letras, 143-144, pp. 80-86.
SOARES, Maria de Lourdes (2000), “A Geografia Ficcional de Maria Gabriela Llansol: o Litoral do Mundo”, in Isabel Allegro de Magalhães et alli (coord.), Literatura e Pluralidade Cultural, Lisboa, Colibri, pp. 969-978.

Ana Paula Coutinho