Lucas Pires, Jacinto

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Lucas Pires, Jacinto

(1974-)

Jacinto de Almeida Garrett Lucas Pires nasceu no Porto em 1974, sob a égide do auspicioso 25 de abril, e vive em Lisboa. Filho mais velho de Francisco Lucas Pires e de Maria Teresa Bahia de Almeida Garrett, segue, numa primeira etapa, o percurso académico de seu pai, ao licenciar-se em Direito pela Universidade Católica de Lisboa, mas é na literatura que mais se tem destacado, entre outras artes, como, por exemplo, o cinema, tendo inclusive estudado na New York Film Academy.

Afirmando-se, reconhecidamente, como um criador em deslocação pelos mais diversos territórios interartísticos – cinema, teatro, encenação, música –, é com particular enfoque na literatura que JLP tem firmado os seus pilares, desde a reta final da década de 90. Responsável por uma considerável produção multifacetada, conta já com mais de vinte obras publicadas, entre romances, contos, literatura de viagem e infanto-juvenil, crónicas ou guiões fílmicos, tendo obtido uma receção bastante significativa, tanto por parte dos leitores como da crítica portuguesa e estrangeira. Neste contexto, foram-lhe atribuídos vários prémios, entre os quais, o Prémio Europa – David Mourão-Ferreira (2008), pela Universidade de Bari/Instituto Camões e o Grande Prémio de Literatura DST (2013), com a obra O verdadeiro ator (2011), publicada nos Estados Unidos pela Dzanc Books (trad. Jaime Braz e Dean Thomas Ellis). Em espaço académico, a sua obra tem sido já objecto de atenção em alguns estudos críticos, de resto, aqui citados.

Todavia, a obra do escritor, dramaturgo, cineasta e também viajante, não se confina apenas ao palco literário, numa interessante confluência interartes, cruzando os universos teatral e cinematográfico, zonas onde também deixa a sua assinatura, numa expressiva produção no panorama artístico.

Neste quadro de influências recíprocas, pressentidas na deslocação criativa de JLP pelas diversas artes, merece particular realce a escrita de peças de teatro para diferentes grupos e encenadores, nomeadamente a sua colaboração enquanto membro da companhia de teatro Ninguém, com a publicação da obra Igual ao mundocinco peças de teatro (2018), a sua participação no cinema, com a realização de três curtas – CinemaAmor (1999), B.D. (2004) e Levantamento (2014) – e ainda de uma longa-metragem, Triplo A (2017).

De facto, não deixa de ser significativo notar que em JLP a ficção narrativa é, de um modo geral, percorrida por um conjunto de traços de escrita marcadamente cinematográfica que contribuem para dar a ver um certo retrato da contemporaneidade portuguesa nas suas múltiplas faces, formas e sentidos, conferindo-lhe uma identidade própria. São disto exemplo, entre outros, livros que retratam o ambiente urbano artificial e violento, ou tão-só a cidade como “não-lugar” (Augé 2005: 67), onde as personagens estão entregues à solidão e ao isolamento – Azul Turquesa (1998) –; aqueles em que a poesia e o cinema esbatem as fronteiras temporais e sociais – A Gargalhada de Augusto Reis (2018) –; outros que dão voz e visibilidade a figuras perdidas no labirinto citadino, em busca do seu caminho – Do Sol (2004) –; outros ainda que retratam personagens dominadas por uma angustiante demanda amorosa e ontológica – Para Averiguar do seu Grau de Pureza (1996). Trata-se então de uma considerável produção ficcional, em que o autor de ofício múltiplo, confirma uma vigorosa e diversificada incursão nas malhas da escrita, nas quais, a narrativa de viagem ocupará um lugar especial, com a publicação de Livro Usado (2001), obra em que me centrarei.

Com efeito, é em Livro Usado (2001) que JLP toca habilmente o território poroso da literatura de viagem, livro em que consolida a sua condição de escritor-viajante, numa ressumbrante deslocação pelo Japão do início do século XXI, espelhando a vertigem do Oriente, materializada nas imagens construídas a partir do olhar do viajante ocidental, plasmadas numa escrita porosa e fina, quase poética, assente numa “frictional literature” (Ette 2003: 3), entre declinações fílmicas ou tão-só fotogramas, captados pelo olhar arguto do também cineasta.

Embora o título do livro não indicie o tema da viagem, certo é que nas suas páginas, o sujeito viático apresenta-se como um espectador atento das paisagens físicas e humanas, focando-se, minuciosamente, na realidade sociológica e geográfica contemporânea japonesa, desvelando traços de índole cultural, religiosa, identitária, imagológica, artística, ontológica, entre outros, numa inscrição de relato fragmentado.

Deste modo, conduzida pela voz do viajante-textual, a narrativa ergue-se a partir da sua deslocação e deambulação de cidade em cidade, filtrada pelo seu olhar que recai sobre as figuras e os lugares, numa estimulante deslocação pela escrita. Por conseguinte, dada a sua natureza fragmentária e dúctil, torna-se, pois, possível a deteção de alguns processos isomórficos, coincidentes com estratégias fílmicas e potenciais representações de viagens, em torno de uma interessante relação entre literatura e cinema (Soares 2019), numa complexa incidência intermedial já que “(…) a narrativa é condição inalienável do fenómeno cinematográfico.” (Bello 2001: 25).

Não por acaso, a lente do narrador-cineasta-viajante oferece uns breves momentos ou fragmentos do seu encontro com o Outro, principalmente, em algumas situações em que se cruza com figuras polifacetadas, recortadas da realidade, como, por exemplo, quando conversa com a senhora Kyoto acerca do seu desejo de visitar Lisboa “(…) porque, [esta] aos quatro anos, em Quioto, viu um bar chamado Lisbon e as letras luminosas a acender e a apagar na noite fascinaram-na e marcaram-na” (Pires 2004: 99), ou com Sato, antigo jovem soldado, que testemunhou o clarão da bomba atómica em Hiroxima (idem: 119), de entre um vasto e expressivo desfile de personagens e cenários, igualmente interpeladores, desenhando um retrato da sociedade nipónica atual.

Se é certo que a paixão pelo Oriente assoma em Livro Usado, é também verdade que nesta obra, JLP retrata a viagem por um Japão contemporâneo entre viagens, numa encantada(dora) deambulação pelo espaço físico e pelos trilhos da escrita viática-fílmica, num país onde as imagens do Outro são o espelho do olhar de um sujeito-textual, que reúne um conjunto de fragmentos aparentemente dispersos, organizados com mestria e subtileza, nesse labirinto de aventuras, mistérios e travessias, onde a multidão é também a personagem principal.

Resta apenas acrescentar que nesta sua única obra de literatura de viagem, JLP, mais do que dar a ver imagens literárias de um Japão multifacetado, a partir do olhar “(…) de um ocidental, ou melhor, de um português em trânsito, ora no meio da multidão, ora na paz e no silêncio dos templos, e da natureza” (Soares 2018: 212), assume-se também como um testemunho vivaz de incursões por uma escrita porosa onde se mesclam artes outras, num intensa experiência on the road, corporizada num registo proteiforme que tão bem caracteriza a poética do género e onde comparecem obras e/ou autores em sintonia com o espaço percorrido, como, por exemplo, Wenceslau de Moraes, Henri Michaux, entre outros.

Confirma-se assim que para além da reescrita da viagem realmente acontecida nessa interpeladora manipulação da palavra-imagem-filme, o maior mérito de Livro Usado é “deixar o sujeito viático (re)pousar o seu olhar nas paisagens geográfica e humana ou tão-somente num puro ato de flânerie, contribuindo assim para uma interessante partilha de individuação do espaço.” (Soares 2018: 232).

Muito em síntese, parece claro que JLP assoma então como um criador em deslocação por cartografias afetivas decorrentes da viagem física, mas também pelo território do discurso interartes, afirmando-se como escritor, dramaturgo, cineasta, viajante entre outros ofícios no panorama interartístico, e que tem vindo a despertar o interesse da crítica e do espaço académico.

 

Passagens

Portugal, Japão

 

Citações

De repente Tóquio: subir as escadas do metro para a rua e dar com a noite de prédios altos e néon e ecrãs e milhares de pessoas passando em todos os sentidos. (Livro Usado, 7)

Um homem de óculos e gravata anda pela rua à caça de estrangeiros para praticar o seu inglês: «Where are you from? Portugal? Oh! Lisbon, Coimbra, Porto, Cape Roca… Cape Roca, yes? Obrigado! Um, dois, três, quatro, cinco! Brazil, Angola, Mozambique, East Timor, Macau!… Vasco da Gama, Bartolomeu Dias, Rosa Mota… Rosa Mota?…» (idem: 26)

No grande cruzamento em triângulo milhares de pessoas atravessando para lá e para cá, entre a estação e os prédios altos com ecrãs gigantes, e sobre elas a noite e a loucura: a multidão faz-se de movimentos contraditórios, gente que vem, gente depressa, gente devagar, mas nunca deixa de ser um só corpo, um só pulsar: num instante todos passando, cruzando, indo, e logo a seguir tudo parado, os rostos na berma do passeio, quietos à espera, e depois outra vez todos atravessando – e no meio do corpo negro da multidão, contra ele, um ou outro rosto como pontos acesos, de repente travessando para cá e para lá, sempre sem parar. (idem: 43)

Fico horas encostado à grande coluna na entrada da estação de Shinjuku, com o caderno aberto na mão esquerda e a caneta na mão direita, a escrever (frases quebradas, riscadas), tentando o impossível de perceber um povo a partir dos mais pequenos gestos, dos acasos mais precisos, daquilo que é difícil dizer, e a multidão entra no átrio enorme e passa e não para de passar; (…) agora já não estou na entrada da estação, encostado à coluna como um detective, estou fora, na rua, em Shibuya, Ginza, Ueno, Ikebukuro, Asakusa, Akihabara, Roppongi, Yotsuya, Daikan-Yama, Jyugaoka, Nishi-Ogikubo, estou na rua e toda a Tóquio é uma multidão a avançar para mim, (…).” (idem: 155-156)

No dia da sua morte, Wenceslau de Moraes – tendo como que um pressentimento – acordou de noite cheio de sede. Levantou-se e foi ao poço do jardim buscar água (imagino-o muito velho, com o olhar directo que tem nas fotografias, dois pontos pretos, fortes, acima das barbas monumentais, e modos magros de japonês, a avançar aos poucos, passo a passo). Abriu a porta de correr com cuidado, para não fazer barulho, e saiu; sentiu no rosto o ar da noite – sem palavras pensou que isso fazia-o um pouco mais feliz – e avançou para o poço; mas tropeçou na escuridão. Morreu de acidente, a cabeça contra uma pedra, como um homem novo. (idem: 120)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

PIRES, Jacinto Lucas (2004), Livro Usado, Braga, Círculo de Leitores.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

AUGÉ, Marc (2005), Não-Lugares. Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade, trad. de Miguel Serras Pereira, Lisboa, 90 Graus Editora.

BELLO, Maria do Rosário Leitão Lupi (2001), Narrativa Literária e Narrativa Fílmica: o caso de Amor de Perdição, http://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/1296, consultado em 2 de janeiro de 2019.

CUNHA, Mónica Lisa M. de Morais Guerra da (2004), Sucessos na Literatura. Regras, Receitas e Surpresas na Literatura Portuguesa Contemporânea, Dissertação de Mestrado em Teoria da Literatura, Faculdade de Letras, Universidade Nova de Lisboa.

ETTE, Ottmar (2003), Literature on the Move, translated by Kattharina Vester, New York, Rodopi.

SOARES, Maria Dulce de Almeida Pinto (2018), Entre vozes e espelhos: um olhar sobre a Literatura de Viagens portuguesa contemporânea. Tese de Doutoramento em Estudos Literários, Culturais e Interartísticos, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Maria Dulce de Almeida Pinto Soares

 
Como citar este verbete:
SOARES, Maria Dulce de Almeida Pinto (2019), “Jacinto Lucas Pires”, in Ulyssei@s: Enciclopédia Digital. ISBN 978-989-99375-2-9.

Lucas Pires, Jacinto