Namora, Fernando

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Namora, Fernando

(1919-1989)

Fernando Namora nasceu em Condeixa em 1919. Com 18 anos, publicou o primeiro livro de poesia e, com 19, publicaria o primeiro romance, As Sete Partidas do Mundo, sobre as vicissitudes da adolescência. Iniciava-se uma obra confessional e fortemente marcada pelas experiências de vida do autor. Seria, como diz Jacinto do Prado Coelho, difícil “dissociar a obra escrita do autor cuja mão a escreveu” (1976: 289).

No início dos anos 40, com 22 e 24 anos, abre as coleções neorrealistas Novo Cancioneiro e Novos Prosadores, as quais davam voz à forma de perspetivar a função social da literatura defendida pela nova geração neorrealista.

Com 24 anos, iria exercer medicina para o interior do país; lê-se em Retalhos da Vida de Um Médico: “Com vinte e quatro anos medrosos e um diploma de médico, tinha começado a minha vida em Monsanto”. Este livro, publicado em 1949, consagraria definitivamente o autor; nele, narra as viagens do médico pelas terras próximas de Monsanto, procurando atender às chamadas dos doentes que só em situação-limite se lhe confiavam.

Em 1950, iria exercer medicina para Lisboa. Realiza, neste ano, a sua primeira viagem ao estrangeiro (França, Bélgica e Holanda). A partir de então, serão frequentes as suas viagens. Estas experiências ampliarão as perspetivas e as temáticas das suas obras.

Em 1965, abandonaria o exercício da medicina. Nesse mesmo ano, participando nos Encontros Internacionais de Genebra, recolhe elementos para um novo livro sobre a Grande Cultura e a Intelligentsia; um livro que abre um novo caminho na sua obra, entre o ensaio e a ficção: a crónica romanceada Diálogo em Setembro (1966). Lê-se no livro, “este livro mistura personagens e factos autênticos com personagens e factos imaginados, acontecendo por vezes que os episódios de invenção são vividos por gente real e os reais por gente inventada”. Nesta longa crónica, o autor alerta para a necessidade de repensar o mundo. Faz também uma espécie de psicanálise de Portugal e do seu comportamento, pois, “ao contactar com a cultura europeia, ricocheteava para a apreensão e a crítica dos costumes e problemas pátrios” (Sacramento 1967: 181-182). A partir desta experiência cultural e humana, vivida pelo autor na Suíça, o contexto português (mais presente até então) será confrontado, na sua obra, com um contexto universal.

Abandonada a atividade clínica, o escritor passa a ter mais tempo para fazer viagens ao estrangeiro. As narrativas que resultam destas viagens são, no fundo, crónicas de diversas cidades do mundo. Pierrete e Gérard Chalendar consideram que “toda a obra de Fernando Namora se pode articular em torno do tema da viagem” (1979: 152). Namora procurará tendencialmente sociedades pouco presentes na literatura portuguesa de gerações anteriores. Em 1971, resultado da visita do escritor à Rússia nórdica e à Escandinávia, publicaria Os Adoradores do Sol, o segundo livro da série cadernos de um escritor. Sob a forma de relato de viagem, o livro – um “bornal de vivências” (Namora 1988: 227) – é denso de reflexão. O autor não se circunscreve às faces visíveis de Estocolmo, de Copenhaga, de Reiquiavique ou da, então, Leninegrado; confronta mundos que ora se interpenetram, ora se afastam radicalmente.

Resultante também de uma viagem – a Nova Iorque – publica, em 1977, a narrativa Cavalgada Cinzenta, na qual, misturando relato de factos e ficção, se sente a contínua busca de conhecimento sobre a realidade humana e através da qual leva a cabo uma reflexão bastante crítica da sociedade americana. Um livro que, parafraseando José Manuel Mendes, “não cabe no espaço circular de uma viagem com princípio e fim” (apud Mendonça 1978: s/p).

Nos anos de 1980, sai o último livro resultante de uma longa viagem ao estrangeiro: a crónica URSS Mal Amada, Bem Amada (1986). Com ele, Namora não pretende reativar um discurso que a aceleração da história parecia ter ultrapassado. De facto, o escritor nunca explicitou um espírito apologético do comunismo, mas também nunca se situou no campo dos opositores mais agressivos contra o sistema. Reconhece que qualquer sistema político tem virtudes e fraquezas. Como noutros livros, onde não se veem posições políticas explícitas nem visões maniqueístas, o autor tenta compreender as realidades observadas e transformá-las em vivência própria.

No mesmo ano, é publicado o quarto volume de cadernos de um escritor: Sentados na Relva, no qual o autor dá voz às impressões que lhe deixou a Finlândia, onde participara nas Reuniões Internacionais de Escritores, bem como às impressões do convívio cultural com os mais variados intelectuais, uns muito apreciados, outro corrosivamente criticados.

Para Namora, andar, ver e escrever entrelaçaram-se frequentemente, daqui resultando depoimentos interessantíssimos sobre a sua época e confissões intelectualmente amadurecidas das suas inquietações.

Em incessante diálogo com os mutáveis tempos do século, a sua transformação literária foi-se impondo. Para Namora, pensar uma época e o homem que a vive é também pensar a linguagem e as formas que os representam.

Pautando-se por intemporalidade e universalidade, ainda que os primeiros livros tendam a ser tocados sobretudo por um mais genuíno localismo, Fernando Namora construiu a sua obra numa dialética entre aquilo que o próprio bem conhecia e vivia e a sua mundividência, entre viagens pelo mundo contemporâneo e pelo seu próprio mundo interior, não desligando o processo dinâmico da sua obra da sua experiência de vida. Aglutinou a sua voz, com a de múltiplos destinos singulares e a da multidão de qualquer lugar do mundo. Construiu a obra entre um tempo bem definido e o que, simultaneamente, está fora dele. Pierrette e Gérard Chalendar consideram que “compreender uma cultura por dentro dela e recusar-se a condicioná-la às suas próprias concepções, que são muitas vezes prismas deformadores, foi sempre o objectivo essencial da viagem para este autor” (1987: 116). Em 1987, na sua Autobiografia, Namora escreve que a sua obra é “a jornada do homem que se confessa pela voz do escritor” (1987: 9). Esta jornada terminou em Lisboa em 1989.

 

Passagens

França, Bélgica, Holanda, Suíça, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Islândia, URSS, EUA.

 

Citações

31 de Agosto de 1965. Inverno em Genebra. Chove. Não a chuva impulsiva ou colérica do Estio, que, num repente, desnuda a terra e a deixa a fumegar, mas uma chuvinha mansarrona, que tivesse chegado na sua hora e apenas lhe cumprisse obedecer ao calendário. (Diálogo em Setembro: 13)

Perturbadora a experiência dos países nórdicos, se a referenciarmos pela Suécia e pela Dinamarca, seus paradigmas convencionais. E isto apesar de irmos lá com os sentidos vacinados por toda uma legenda de exorbitâncias. (…) A Escandinávia, região de neblinas que adora o sol, é um cenário mimoso que recreia e apazigua os sentidos… (Os Adoradores do Sol: 13-14)

Se os Estados Unidos não são Nova Iorque, Nova Iorque também não é Manhattan. A prodigiosa ilha estelar, raiada de molhes voltados para a Europa, salta sobre pontes e fura sob túneis, espraiando-se por Jersey City, Brooklyn, Queens, Richmond, que sei eu; uma pluralidade de raças e de perfis citadinos, somando-se por catorze milhões de pessoas, se a área considerada for a Grande Nova Iorque. Mas bastaria Manhattan, a gigante de dorso em cordilheira, para ilustrar a coabitação de contrastes… (Cavalgada Cinzenta: 21).

E, no entanto, Lahti (…), a cem quilómetros de Helsínquia, não esteve longe do roteiro que, vai para uma década, se fixou nas minhas memórias de viageiro encartado, embora as viagens sejam para mim uma prévia fadiga e um prenúncio de degredo. (…) Uma pessoa vai à Finlândia para instintivamente cumprir uma espécie de rito, em que a Natureza é a deusa resgatada das violações a que o mundo dos bulldozers a sujeita, e não para admirar metrópoles de coração petrificado. (Sentados na Relva: 13).

 

Bibliografia Ativa Selecionada

NAMORA, Fernando (1987), Autobiografia, Lisboa, Edições O Jornal.
—-, (1988a), Fogo na Noite Escura, Mem Martins, Europa-América.
—-, (1988c), Os Adoradores do Sol, Mem Martins, Europa-América.
—-, (1989a), Retalhos da Vida de Um Médico – 1ª série, Mem Martins, Europa-América.
—-, (1990a), As Frias Madrugadas, Mem Martins, Europa-América.
—-, (1990b), As Sete Partidas do Mundo, Mem Martins, Europa-América.
—-, (1993), Cavalgada Cinzenta, Mem Martins, Europa-América.
—-, (1996), Diálogo em Setembro, Mem Martins, Europa-América.
—-, (1996), URSS Mal Amada, Bem Amada, Mem Martins, Europa-América.
—-, (2000), Sentados na Relva, Mem Martins, Europa-América.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

CHALENDAR, Pierrette & Gérard (1979), Temas e Estruturas na Obra de Fernando Namora, Lisboa, Moraes.
CHALENDAR, Pierrette e Gérard (1987), “Fernando Namora – URSS Mal Amada, Bem Amada” in Colóquio/Letras, nº 97, Maio de 1987, pp. 115-116.
COELHO, Jacinto do Prado (1976), “Fernando Namora: quando a ficção é testemunho” in Ao Contrário de Penélope, Amadora, Livraria Bertrand, pp. 289-292.
MENDONÇA, Fernando (1978), “Breve diagnose da obra de Fernando Namora” In Fernando Namora: 40 anos de vida literária, Amadora, Bertrand.
SACRAMENTO, Mário (1967), Fernando Namora, Lisboa, Arcádia.

Fernando Baptista (2014/04/04)