(1950- )
Natural do Porto, Miguel Sousa Tavares é filho de Francisco Sousa Tavares e Sophia de Mello Breyner Andresen. Criado em Lisboa, aqui se licenciou em Direito, tendo exercido advocacia por mais de dez anos até se dedicar ao jornalismo, em fins da década de 80.
É figura de destaque na televisão portuguesa, desde que se estreou na RTP em 1978; contudo, foi enquanto membro fundador e mais tarde diretor da revista Grande Reportagem que ganhou notoriedade enquanto repórter, e foi sob a sua liderança que a revista se dedicou mais a manifestações culturais e histórias de viagens.
Na imprensa portuguesa, destacou-se ainda como cronista para revistas e jornais, dos quais se destaca o Público, para onde escreveu durante mais de uma década.
A partir da década de 90 passou por estações como a SIC e a TVI como apresentador e comentador semanal da atualidade política nacional e internacional, período que coincidiu com um significativo aumento de popularidade das suas obras literárias. Da sua vasta criação literária, destaca-se o best-seller Equador, de 2003, ano em que se estreia no romance, o qual vendeu mais de 350 mil exemplares e teve traduções em várias línguas. É autor de livros de crónicas políticas e de viagens, romances e livros de contos, como Sul. Viagens (2004), No Teu Deserto (2009), Não se encontra o que se procura (2014), e a sua mais recente obra Cebola Crua com Sal e Broa, de 2018.
Além do destaque como jornalista e escritor, Sousa Tavares é conhecido pela sua personalidade cáustica e crítica aguçada. Enquanto escritor, a sua identidade literária mora entre a reportagem jornalística e a literatura de viagens, sendo um fiel representante do binómio repórter-viajante. Destaca-se por um exercício de escrita da autenticidade, fidelidade ao real e de compromisso com o público-leitor. Procura esta autenticidade nele mesmo, nas pessoas e nos lugares por onde passa, uma qualidade característica do viajante, e que se distancia do típico turista, o qual Tavares denomina de ‘’massa amorfa’’ que existe ‘’para tudo ocupar e tudo conspurcar’’ (Tavares 2014: 49). Considera o turista símbolo da massificação da viagem, a resposta a uma compulsão e desejo vazio patrocinados pelo século atual. Ser viajante é diferente: é alguém que parte em busca de algo mais do que uma simples deslocação física, vê uma pureza diferente no desejo de deslocação, tem a ânsia de conhecer o mais profundo das gentes e locais que lhe são desconhecidos, imergindo numa experiência totalizadora das sensações. A viagem é um movimento não só de deslocação física, mas sobretudo de exploração e experiência-contacto: enquanto que para o seu trabalho como repórter interessa ter consciência de uma parte concreta e pré-definida do lugar que visita, fruto da função jornalística, o seu papel como viajante destaca-se pelo facto de este ser totalmente livre de explorar tudo o que quiser e enveredar por caminhos alternativos.
Enquanto repórter, Miguel Sousa Tavares é observador e pretende informar a partir do exato recorte da realidade e do seu registo escrito e/ou fotográfico. Contudo, rapidamente passamos da focagem num mundo exterior para um universo interior, no momento em que este confessa ser um ‘’contador de histórias’’ (Tavares 2006: 15). É entre estes dois pontos de focagem que se desenrola a sua missão jornalística, respeitando sempre as suas responsabilidades profissionais, nomeadamente no que toca ao compromisso com o leitor.
No papel de repórter e contador de histórias, Tavares autodisponibiliza-se de modo a funcionar como filtro que capta os sentimentos intrínsecos aos lugares por onde passa. Estamos perante o contacto entre o Eu e o Outro, o encontro com uma identidade pessoal baseada no conhecimento da alteridade: a viagem abre as portas a uma oportunidade de autodescoberta em que o indivíduo confronta o universo do Outro com o seu, um momento fundamental na construção da identidade individual. Repórter e viajante são duas funções de escrita que medeiam o espaço comum entre aquilo que é conhecido pelo Eu e o universo desconhecido personificado pelo Outro, e ao mesmo tempo combinam duas viagens: uma que se processa no exterior para completar uma outra que ocorre no interior. O repórter-viajante absorve e é absorvido pelo estrangeiro para escrever sobre ele, pelo que o exercício de deslocamento se torna um mecanismo dinâmico que move o Eu no espaço em direção ao Outro.
Reportagem literária e Literatura de Viagens são géneros híbridos e compósitos, construídos a partir de diferentes formas narrativas e que partilham elementos na escrita de Sousa Tavares: a inscrição no real, a vivência pessoal dos acontecimentos, o trabalho da subjetividade e da memória, e a transmissão de um testemunho real e autêntico – tudo isto conflui numa escrita totalizadora que integra ambos os discursos. As suas reportagens literárias têm um registo autobiográfico que permite a convergência de sentidos com a Literatura de Viagens, o que resulta numa exploração profunda da identidade individual. As viagens de Tavares são muitas vezes uma peregrinação individual feita enquanto repórter e escritor-viajante. Além disto, ambas as faces permitem uma viagem mental e uma jornada que confronta o indivíduo com a revelação tanto do Outro, como de si mesmo: isto significa que no momento em que o autor imerge nas paisagens físicas, as mesmas refletem sentimentos avassaladores que atuam dentro do panorama interior, mental. Diversas vezes o autor viaja no tempo até ao passado, referindo momentos da sua infância vividos com a mãe: recorda viagens a Roma que fizeram juntos e os ensinamentos que esta lhe transferiu, entre os quais o autor destaca: ‘’Miguel, viajar é olhar’’ (Tavares 2014: 39). Aprendeu que é mais valioso observar e absorver, memorizar o que se vê para depois contar, do que registar tudo freneticamente em fotografias.
Durante o tempo da reportagem, Sousa Tavares está a observar, ouvir, sentir; absorve a multiplicidade de identidades que constituem o Outro numa procura incessante pela autenticidade das experiências humanas, mostrando que a melhor maneira de nos encontrarmos connosco mesmos é através da escrita. A viagem abre as portas a uma oportunidade de autodescoberta em que o indivíduo confronta a identidade dos outros com a sua. O desejo de apropriação do Outro comprova o sucesso da fusão entre identidade e alteridade, e em Tavares isto acontece ao expressar o desejo de se tornar ‘’brasileiro do coração’’ (Tavares 2014: 107). O autor conta ter já visitado o Brasil 40 vezes desde a primeira vez que lá foi, em 1978; lamenta o amor a este povo não se igualar a outras formas de conquista da identidade, como o nascimento, mas diz que a sua maturidade se consumou graças ao Brasil, às suas paisagens, cultura e gentes.
Tavares assume ainda uma posição crítica e reflexiva em relação ao estado de coisas do seu contexto sociocultural e político, e das regiões por onde passa. Em Lagos, por exemplo, critica a ‘’ditadura dos supermercados e dos centros comerciais’’ (Tavares 2015: 98), que ‘’foi aos poucos matando os mercados e mercearias de bairro, um pouco por todo o país’’ (idem: 98). Revela ainda a desilusão de ver um mundo com cada vez menos segredos. Na obra de Sousa Tavares existem momentos marcados pela nostalgia da existência física, restando apenas lembranças. Em Não se Encontra o que se Procura, estes momentos surgem associados ao retorno a um passado pessoal, onde são exploradas as memórias com a mãe, ou coletivo: este diz respeito a espaços por onde passou a colonização portuguesa e que Tavares pisa no âmbito da sua missão jornalística, como é o caso do Brasil.
A viagem para Tavares parte de um fulminante desejo de refúgio e autorreflexão, além da missão jornalística. Durante as suas deslocações, o autor valoriza os momentos em que pode, sozinho, desfrutar dos pequenos prazeres que os lugares que visita lhe concedem, e os hábitos temporários que lhe permitem criar. O que atrai Tavares na escrita é o prazer de ser uma experiência totalmente solitária e única que não pode ser partilhada. Mas, por outro lado, revela-se também como uma espécie de ferramenta que colmata esse esse silêncio.
Passagens
Portugal, África, Brasil, Croácia, Itália, Amazónia, Turquia
Citações
Três meses mais tarde, eu estava a embarcar para África com o meu filho mais novo, para cumprir um sonho antigo e celebrar o simples facto de estar vivo e inteiro, antes que fosse tarde demais: antes que um tumor maligno me matasse a mim ou a África e não houvesse quem lhe pudesse contar as histórias dos bichos, da savana, do pôr-do-sol, das manhãs de África. Voltei e escrevi um livro sobre essa viagem, conforme era meu dever de testemunho e de agradecimento. (Não se encontra o que se procura: 14-15).
Mas com Milna foi diferente. Foi como dizem que são os amores à primeira vista. Foi como se alguma coisa vinda lá do infinito das minhas origens se reconhecesse subitamente na memória guardada nas pedras de Milna. Qualquer coisa de fenício, de grego, de romano, de turco, de venezuelano, ou uma confusão de tudo isso – o mundo a que sempre soube que pertencia e a que podia chamar ‘casa’: o Mediterrâneo. (Não se encontra o que se procura: 19).
Também já pensei em viver no Rio e, em sonhos, já me imaginei a viver em África, mas teria de ser próximo do mar – talvez na Ilha de Moçambique. Se pudesse ter uma vida paralela, gostaria de ter a vida de um caracol, carregando comigo a casa e plantando-a onde houvesse sol e silêncio, onde houvesse mar e espaço, onde houvesse tempo e distância. (Não se encontra o que se procura: 18-19).
Logo que a porta do avião se abre, o Equador toma conta de nós. O ar condicionado do Boeing é substituído por um calor espesso e húmido, acompanhado de um intenso cheiro a capim molhado que adivinhamos omnipresente. São só sete da manhã e estamos em Maio, o mês em que começa a «gravana», a estação seca, sem tornados e com uma humidade considerada «suportável». Mas, para quem vem da Europa, a sensação é a de ter entrado numa estufa a que o organismo demorará vários dias a adaptar-se. (Sul. Viagens: 113).
Vemos tanto mais quanto a nossa disponibilidade de ver: viajamos para dentro de nós, primeiro que tudo. (Não se encontra o que se procura: 40).
A razão principal é que já não há muita gente que tenha tempo a perder com o deserto. Não sabem para que serve e, quando me perguntam o que há lá e eu respondo ‘’nada’’, eles riscam mentalmente essa viagem dos seus projetos. Viajam antes em massa para onde toda a gente vai e todos se encontram. (No teu deserto: 118).
Bibliografia Ativa Selecionada
Tavares, Miguel Sousa (2018), Cebola crua com sal e broa, Clube do Autor.
— (2009), No teu deserto, Oficina do Livro.
— (2014), Não se encontra o que se procura, Clube do Autor.
— (2006), Sul. Viagens, ed. nova e aumentada, Oficina do Livro.
Bibliografia Crítica Selecionada
Baptista, Joel Machado (2010), A Gemelaridade entre a reportagem literária de Miguel Sousa Tavares e a Literatura de Viagens: a clarificação do Eu através da Revelação do Outro como via de aquisição da experiência, Lisboa, FCSH, Universidade Nova de Lisboa.
Buescu, Helena/ João Ferreira Duarte (org.) (2001), ACT3 Narrativas da modernidade: a Construção do Outro, Lisboa, Edições Colibri, Centro de Estudos Comparatistas.
Ana Isabel Rocha Santos
Estudante do MELCI (2018-2019)
Como citar este verbete:
SANTOS, Ana Isabel Rocha (2021), “Miguel Sousa Tavares”, in Ulyssei@s: Enciclopédia Digital. ISBN 978-989-99375-2-9.
https://ulysseias.ilcml.com/pt/termo/tavares-miguel-sousa/