(1930)
J. Rentes de Carvalho, aquele que é seguramente o intelectual holandês mais português e o intelectual português mais holandês, foi obrigado por razões políticas a sair de Portugal na década de 50, tendo passado a residir em Amsterdão em 1956, depois de viver no Rio de Janeiro, em São Paulo, Nova Iorque e Paris. Embora conte já com mais anos passados no Reno dos Países Baixos do que em Portugal, Rentes de Carvalho é o primeiro a considerar essa lógica aritmética irrelevante, se não mesmo ofensiva, em termos de consciência identitária. Mais importante para si é o facto de o português ser a sua língua materna – à qual, aliás, nunca renunciou enquanto instrumento de pensamento e de criação literária – e de ela estar intimamente associada ao “carimbo indelével” das suas experiências de infância e juventude repartidas entre Vila Nova de Gaia (onde nasceu) e Estevais (Trás-os-Montes) donde é originária a sua família e onde, nos últimos anos, o escritor tem passado grandes temporadas de uma vida repartida entre “duas pátrias”.
Jornalista, assessor de imprensa e adido comercial, Rentes de Carvalho trabalhou desde sempre com a escrita, tendo ao longo dos anos mantido uma colaboração regular com revistas e jornais na Holanda (Volkskrant, Literair Paspoort, Maatstaf…), no Brasil (O Estado de São Paulo, O Globo, O Cruzeiro…), em Portugal (Diário Popular, Expresso, Letras & Letras…) e na Bélgica (Le Soir, Ons Erfdeel).
A sua estreia literária deu-se em 1968, com o romance Montedor, escrito em Amsterdão, mas publicado em Portugal e sobre o qual António José Saraiva teceria, já na altura, um rasgado elogio ao salientar que nascera “um novo pícaro” e uma “nota nova” na partitura literária nacional, com sinais tanto de Camões como de Fernão Mendes Pinto (op.cit.: s/p). Mais do que fazer um pormenorizado retrato social da época, o romance incorpora no protagonista o atavismo de um país povoado por indivíduos com algum desejo de mudança, leia-se, de partir para outras paragens, mas finalmente presos a um certo atavismo “de pedra e cal atrás do balcão”, limitando-se a ver os outros passar (idem: 208). O contraste entre aqueles que foram ficando, que mantiveram o poder e/ou que se se acomodaram ao instituído, e aqueles que emigraram em busca de melhores paragens viria a marcar também o romance seguinte, intitulado O Rebate (1971), de novo centrado na paisagem raiana de Trás-os-Montes. O autor incluiu ainda, no final, uma série de “anotações” que davam já o tom daquele que viria a tornar-se o timbre incisivo da consciência crítica que atravessa toda a obra de Rentes de Carvalho. O escritor assume-a como uma forma de lealdade, desde logo ao país que o viu nascer (in Ler, 38, 1997: s/p) e cuja realidade sociocultural ele nunca deixou de acompanhar, mesmo se à distância física e com uma orgulhosa independência em relação a todo o tipo de gregarismo, de poder instituído ou de ilusões pré-formatadas.
Ainda que no início, e ao contrário da generalidade dos emigrantes ou exilados, Rentes de Carvalho tenha passado muitos anos sem grandes anseios de regressar ao país natal, a regularidade das suas incursões a Portugal era garantida pelo pensamento e pela escrita, segundo um ângulo de observação de quem, tanto em Portugal como na Holanda, nunca se sentiu «nem visita nem hóspede» (Rentes de Carvalho 2009: 48).
O espelho que o autor foi devolvendo de Portugal nunca foi propriamente de molde a granjear a fácil simpatia dos seus compatriotas, pelo que não é de estranhar que tenha sofrido durante longos anos do silenciamento e do segregacionismo no campo literário português, como costuma aliás acontecer a escritores exilados ou expatriados. Contudo, J. Rentes de Carvalho é simultaneamente dos poucos portugueses, senão mesmo o único caso, para quem foi sempre mas fácil publicar no país de residência do que no país de origem. À exceção dos dois primeiros romances, todos os outros livros começaram por ver a luz na Holanda, em tradução neerlandesa; alguns continuam inéditos em português e um dos casos de maior e simbólico “décalage” entre as duas edições é Portugal, a Flor a Foice (2014), que o escritor escreveu e publicou na Holanda, em 1975, no rescaldo da Revolução dos Cravos. A heterodoxia do seu olhar sobre esse período revolucionário resulta do desassombro sem embaraços com que então se reportava a acontecimentos e atores da História de Portugal, denunciando sucessivos oportunismos, com destaque para aqueles que estavam a suceder-se à época e de que o escritor podia testemunhar diretamente, ou através da leitura atenta daquilo que a imprensa portuguesa e estrangeira iam reportando.
Mas se é verdade que o seu olhar, forçosamente idealizado de Portugal porque confundido com o tempo da infância, nunca se deixou ofuscar completamente pela ilusão de um paraíso perdido, tão pouco se lhe poderá apontar uma atitude de fácil deslumbre ou de elogiosa subserviência relativamente ao país e à cultura que o acolhem há mais de cinquenta anos. Sem se deixar intimidar por um destacado antecedente nas observações sobre a Holanda, na voz de Ramalho Ortigão a assumir o papel de atento e informado «viajante latino» de Oitocentos, Rentes de Carvalho cedo investiu na radiografia crítica da Holanda, levando-o a publicar já em 1972 Waar die andere God woont. Essa faceta de ‘analista externo’ valer-lhe-ia aliás um lugar de destaque nos círculos culturais neerlandeses, da imprensa à televisão. De notar que o facto em si não só traduz a argúcia e a vivacidade da escrita deste autor, como a confiança e a cumplicidade do seu editor neerlandês, além de revelar a curiosidade dos holandeses por um também pequeno país de que pouco ou nada sabiam, e de transparecer a sua abertura à (auto-)crítica, inclusive vinda de um «estrangeiro». Ainda assim, não deverá esquecer-se que se tratava de um «estrangeiro de elite», reconhecido e legitimado pela Academia, já que Rentes de Carvalho foi, de 1964 a 1988, professor de Literatura Portuguesa na Universidade de Amsterdão.
A condição liminar do autor de Com os Holandeses (2009), própria de quem está sempre «entre» um lugar de partida e um lugar de chegada, e cujos sentidos tendem a ser reversíveis com o passar do tempo, fá-lo comungar da indelével consciência contrapontística que Edward Said sugestivamente identificou no exilado (Said,2000). Bastará para tanto atentar nos seus textos diarísticos mais recentes (O Tempo Contado, Pó, Cinza e Recordações, além do blogue pessoal – Tempo Contado – que manteve entre 2007 e 2015), assim como nos seus romances onde, regra geral, existem sempre personagens que circulam, física e mentalmente, não só entre Holanda e Portugal, como é o caso, de A Sétima Onda, com as impressões de um narrador-fotógrafo vindo da Holanda, a quem calhará assistir à Revolução dos Cravos, ou que se se deslocam entre vários outros espaços geográficos, não raro enredados no tráfico (Mentiras e Diamantes, 2013) e no contrabando (A Coca , 1994), que podem ser entendidas como formas-limite, obscuras e perigosas, de trânsito, negociação e máscaras.
Deste que é um mediador cultural por excelência entre os Países-Baixos e Portugal, continua ainda inédito em português, entre outros textos, o Guia de Portugal para amigos, que conta já com mais de uma dezena de edições. É através desse olhar que milhares de leitores neerlandeses têm descoberto, se não mesmo fixado, esta ponta ocidental da Europa, assim como, para o leitor português, a paisagem holandesa (particularmente os seus traços humanos e sociais) ficará indelevelmente associada à lucidez arguta de Rentes de Carvalho.
Passagens
Portugal, Países-Baixos, Brasil, França, EUA.
Citações
Palavriado. Há os que passam e os que vêm passar. Tu vês passar. Pior: ficas de pedra e cal atrás do balcão. De lá é que hás-de enxergar os que não param em meias medidas, os que não tomam por atalhos. (Montedor: 208)
Memória. Gente minha. Na estação, em Paris. Na rua de Amsterdam. Em Neckar-am-Rhein.
– Então também é português?
A vaga desconfiança de que os engano, como se eu não pudesse ser.
– E também cá está? Trabalha?
Aceno que sim e não digo mais. É vergonha ter um passadio melhor.
– Já fomos à terra duas vezes.
Calo-me, para não mentir. Eu não fui: Até ao dia em que a saudade não suportou mais.
E agora estou aqui no alto do monte, escondido, ignorado, reconhecendo os lugares, as casas, as hortas, os pedaços de vinha, como se os olhos pudessem soldar o passado ao presente e apagar a dor. (O Rebate: s/p)
Ao desembocar do túnel, numa paisagem sensacional de rochedos gigantescos e arbustos ressequidos, reencontrámos o Douro, pouco mais que um fio de água no fundo do vale. Aqui e além uma vela de rabelo, barcos vardas nos areais, povoações brancas nas encostas gente a trabalhar nos vinhedos, que a partir dali pareciam estender-se por toda a parte. (O Milhão: 191)
Que mais me ficou? O banho na varanda, numa tina de água fria. O cheiro dos lençóis de linho e o da palafa fresca das enxergas. (idem: 98)
Podem dizer com razão, e eu concordo, que coisas dessas sucedem em toda a parte. Pois é. Simplesmente acontece que nestes anos todos me cansei de ouvir apregoar que os holandeses parecem feitos douta massa e dispor de virtudes que os outros não têm.
Vê-los bater no peito e apontar-nos com o dedo, nós, estrangeiros e ainda por cima meridionais, indígenas de terras sem vergonha e sem honra, dá-me vontade de rir. Como também rio quando, falsamente contritos, a esconder desajeitadamente o orgulho por trás de uma modéstia de pechisbeque, os vejo fingir que se confessam e se acusam de imperfeições.
O dilema existe para mim há muito tempo: dum lado a necessidade de dizer o que penso deles, como me sinto perante eles, a vontade de exprimir um ponto de vista que, segundo constato, é partilhado pela maioria dos estrangeiros que vivem aqui, e que em muitos aspectos está longe do colorido idílico das publicações turísticas, ou das impressões superficiais decorrentes duma visita curta.
Por outro lado repugno magoar e, porque não confessá-lo?, tenho encontrado entre este povo quem me impressione pelo altruísmo, pela honradez, pela dedicação como que se consagra às causas mais diversas, pelo verdadeiro interesse com que se sacrifica. (Com os Holandeses, 2009: 22-23)
Amsterdam não precisa de mim para lhe cantar a beleza. Os canais, a torres, as casas apertadas nos bairros pobres e as outras, senhoriais à beira de água, falando de fortunas passadas e presentes, têm tido melhores poetas, melhores pintores. (…)
Todavia, sinto para com a cidade como que uma dívida de gratidão. Vivendo nela há tanto tempo, se não ouso chamá-la minha, bem me poderá ser desculpado que fale dela como se seu filho fosse. (idem: 97)
Nem a baía de Guanabara, nem Nova Iorque vista de avião ao anoitecer, nenhum Paris, nenhuma Roma, a Amazônia, as Pirâmides, o deserto, nada disso que viria depois e é grandiosos, me deixou uma impressão tão viva e duradoura como a da paisagem que se avistava das janelas da casa em que nasci.
Mais tarde dei-me conta de que a razão profunda do meu fascínio não era tanto a inegável beleza da vista, mas o facto de dali, como defronte dum gigantesco ecrã tridimensional, poder testemunhar do burburinho de mil vidas. (Ernestina: 135-136)
Veneza tem aqueles palácios recheados de grandeza, os canais espectaculares, as pontes românticas, a basílica, a praça de San Marco, mas, nem de longe, nada disso sofre comparação com a paisagem da minha infância.
As gôndolas envernizadas e os caíques humildemente pintados com sobras de tinta são de mundos diferentes, para não falarmos do casaco esgarçado do homem que nos levava a remo, e, no outro pólo, os uniformes vistosos dos gondoleiros. Contudo, da primeira vez que lá fui, Veneza decepcionou-me. Aquele navegar ao rés do casario era facto assente desde tempos imemoriais, continuado sem surpresa ao longo dos séculos; enquanto na manhã em que me vi a ir de barco pelas ruas por onde antes caminhara, o meu mundo deu uma reviravolta. (idem: 185)
Bibliografia Ativa Selecionada
RENTES DE CARVALHO, José (1968), Montedor, Lisboa, Prelo.
—- (1971), O rebate, Lisboa, Prelo.
—- (1984), A sétima onda, Lisboa, Estampa.
—- (1999), O milhão: recordações e outras fantasias, Lisboa, Escritor.
—- (2000), A coca, Lisboa, Escritor.
—- (2001), Ernestina, Lisboa, Escritor.
—- (2009), Com os Holandeses, Lisboa, Quetzal.
—- (2014), Portugal, A Flor e a Foice, Lisboa, Quetzal.
—- (2015), Pó, Cinza e Recordações, Lisboa, Quetzal.
Bibliografia Crítica Selecionada
Ler. Lisboa: Círculo de Leitores Primavera/Verão, 38, 1997. [com dossier sobre Rentes de Carvalho] Letras & Letras, Porto, 88, 3 de Fevereiro 1993. [com dossier sobre Rentes de Carvalho] VENÂNCIO, Fernando Venâncio (1997), «“A ignição desregulada” de Rentes de Carvalho», Ler, 38, pp.96-99.
SAID, Edward (2000), Reflections on Exile and Other Essays, Cambridge, Mass: Harvard University.
SARAIVA, António José (1968), Prefácio a Montedor, Lisboa, Prelo, s/p.
Documentário
VASCONCELOS, António-Pedro / Ferreira, Leandro (2015), J. Rentes de Carvalho – Tempo contado, RTP.
Ana Paula Coutinho (2015/08/04)