(1944- )
Pascal Mercier é o pseudónimo literário do professor de filosofia e de filosofia da linguagem Peter Bieri, que com o seu nome real tem publicado numerosos estudos científicos e obtido reconhecimento académico.
O seu percurso biográfico e profissional revela-se todo ele marcado por ruturas e deslocamentos: aos dezanove anos abandona a sua cidade natal, Berna, fugindo, como ele próprio explica, da «estreiteza suíça» e da «estreiteza da família». Estuda indologia, anglística, grego e filosofia em Londres e em Heidelberga; seguem-se anos de investigação em Berkeley e Harvard, e depois a lecionação em diferentes universidades alemãs, até se instalar em Berlim como professor da «Freie Universität» (Universidade Livre), lugar do qual se reforma prematuramente em 2007, desencantado com a vida académica.
Verdadeiramente apaixonado pelas línguas, Bieri aprendeu, ainda na escola de Bielefeld, latim, grego, francês, inglês, hebraico e sânscrito. Mais tarde chegaria a vez do italiano, do espanhol e até do português. Foi o estudo de indologia e a descoberta da profundidade do pensamento indiano que o levaram a orientar o seu estudo para a filosofia, mas é na filosofia da linguagem que encontra um dos temas privilegiados da sua investigação e lecionação. “Não conheço nada mais bonito no mundo do que uma boa frase”, diz Bieri/Mercier, e a linguagem e o pensamento filosófico serão temas prediletos dos romances que começa a escrever aos quarenta e cinco anos.
Eventualmente preocupado com a reação da comunidade universitária a esta ruptura com o discurso académico e a substituição deste pela ficção, Peter Bieri esconde a sua identidade atrás de um pseudónimo literário. Apenas em 1998, aquando da publicação de Der Klavierstimmer (O Afinador de Pianos) que se seguiu ao seu romance de estreia Perlmanns Schweigen (O Silêncio de Perlmann) (1995) é tornado público o verdadeiro nome do autor.
A relação de Mercier com Portugal surge no seu terceiro romance, dado à estampa em 2004, o qual se vem a revelar um enorme sucesso; “Nachtzug nach Lissabon” irá ocupar os «tops» de vendas alemães durante cento e quarenta semanas. Actualmente traduzido em mais de vinte e cinco idiomas e com mais de dois milhões de exemplares vendidos, o romance é publicado em versão portuguesa, de autoria de João Bouza da Costa, pela Dom Quixote, em 2007, com o título Comboio nocturno para Lisboa. Mercier escrevera o romance em Lloret del Mar, na Costa Brava, e durante o período de escrita deslocou-se quatro vezes a Lisboa, onde permaneceu sempre cerca de uma semana, a observar e a fotografar a cidade que conhecia já de viagens turísticas anteriores.
A fábula desenrola-se em três planos diegéticos que se entrecruzam e interligam, num imbrincado jogo de espelhos. O romance abre com a súbita e inusitada perceção por parte de Raimund Gregorius, um pacato professor de línguas clássicas num liceu de Berna, cinquentão calado e solitário, de que chegou o momento de quebrar com a sua rotina quotidiana e partir. Elementos desencadeadores desta decisão são o encontro com uma rapariga que Raimund salva de uma aparente tentativa de suicídio e que lhe diz ser a sua língua mãe o português, bem como a leitura de algumas linhas de um volume de pensamentos do escritor português Amadeu Inácio de Almeida Prado e ainda os seus alunos, cuja juventude lhe torna clara a limitação do seu próprio futuro. No dia seguinte, parte no comboio nocturno para Lisboa, onde irá perseguir as pistas que lhe permitirão reconstituir a vida do médico, escritor e resistente antifascista Almeida Prado, morto há mais de trinta anos, que se torna protagonista da segunda linha diegética. Ao mesmo tempo, Raimund familiariza-se com a língua portuguesa, o que lhe vai permitir decifrar os escritos de Almeida Prado, cuja parcial transcrição no romance constitui uma verdadeira “obra na obra”. O contacto com os textos do autor português e a recolha dos seus dados biográficos são simultaneamente uma expedição ao Portugal salazarista e à Lisboa do nosso tempo e ainda uma incursão nos cantos mais recônditos do espírito do poeta português e do viajante suíço.
No que respeita à deslocação, ela plasma-se não só nas relações entre espaços geográficos e culturais. Inscrita desde logo no título profundamente polissémico, a deslocação e o movimento revelam-se elementos estruturantes também ao nível das figuras, dos acontecimentos históricos e, ainda, ao nível do literário e do estético.
Entre Berna e Lisboa, passando por Paris e Salamanca, entre Isfahan (Pérsia) e Finisterra, entre a contemporaneidade e os anos 40 e 50, entre o regime salazarista e o terror nazi, entre um professor suíço em fuga da rotina do seu país natal e um médico lisboeta, resistente antifascista, morto no início dos anos 70 e os seus respetivos mundos, entre a língua alemã e a portuguesa, entre a prosa ficcional e o registo diarístico, epistolar ou documental, entre ficção e realidade, entre a posmodernidade e a modernidade, entre Pessoa, Tabucchi, Saramago, Noteboom e Mercier, as relações são de contaminação e de especularidade, ora de distorção ora de inversão, e de mútua iluminação. O romance “português” de Mercier revela-se, de facto, um bom exemplo de texto que Ottmar Ette apelidou “literatura em movimento”.
Passagens
Berna, Londres, Heidelberga, Berkeley, Harvard, Marburgo, Berlim (durante um ano é Professor convidado em Barcelona; nos anos 90, fez diversas viagens de lazer e investigação a Portugal).
Citações
O livreiro que entretanto se aproximara, lançou um olhar ao livro e leu o título em voz alta. Gregorius ouviu apenas um caudal de sons sibilantes; as vogais engolidas e quase inaudíveis pareciam constituir somente um pretexto para articular uma e outra vez o ritmo sussurrante do che.
– Sabe falar português?
Gregorius sacudiu a cabeça.
– Um Ourives das Palavras. Não acha um título bonito?
– Tranquilo e elegante. Como prata baça. Pode repeti-lo novamente em português?
O livreiro repetiu as palavras. Para além das palavras em si, podia notar-se o prazer que ele sentia em pronunciar os seus sons aveludados. Gregorius abriu o livro e folheou-o até o texto começar. Depois entregou-o ao outro, que lhe lançou um olhar surpreso e afectuoso, antes de começar a ler. Gregorius fechou os olhos enquanto escutava. Depois de ler algumas frases o livreiro parou.
– Quer que traduza?
Gregorius disse que sim com um movimento de cabeça. E então escutou o fluir de frases que provocaram nele um efeito anestesiante, pois pareciam ter sido escritas propositadamente para si; e não só para ele, mas sim para ele naquela precisa manhã em que tudo havia mudado.
De mil experiências que fazemos apenas conseguimos transpor uma para a linguagem, e mesmo essa de uma forma fortuita e sem o apuro que merecia. Entre todas as experiências mudas, permanecem invariavelmente ocultas aquelas que, imperterivelmente, transmitem à nossa vida a sua forma, o seu colorido e a sua melodia. (2007: pp. 27-28)
Bibliografia Ativa Selecionada
MERCIER, Pascal (2007), Comboio Nocturno para Lisboa, Lisboa, Publicações Dom Quixote.
Bibliografia Crítica Selecionada
OLIVEIRA, Teresa Martins de (2009), «Espaço e movimento em O Comboio Nocturno para Lisboa», in Miscelânia em Honra de Maria Manuela Delille, Coimbra (no prelo).
SILVA, José Mário (2008), “O Ouro das Palavras“, Expresso, Suplemento “Actual”, 8 de Abril.
—- (2008), “Lisbon Story“, Expresso, Suplemento “Actual”, 8 de Abril.
Teresa Martins de Oliveira (2011/11/14)