Kundera, Milan

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Kundera, Milan

(1929-2023)

Considerado uma das grandes vozes da literatura mundial contemporânea, finalista do Prêmio Nobel de Literatura em 2014 e deslocado de formas múltiplas, Milan Kundera (1929-2023) foi um escritor e romancista proveniente de Brno, cidade localizada na região da Boêmia, da antiga Tchecoslováquia e atual República Tcheca, e mundialmente conhecido pela obra A insustentável leveza do ser (1984). Em sua trajetória literária, Kundera se movimentou por entre variados gêneros, sendo eles ensaios, poemas, contos, peça de teatro e romances. A começar pela publicação de ensaios de crítica literária para revistas tchecas como a Literarni Noviny e a Listy, nos anos em que esteve lecionando disciplinas referentes à literatura mundial, no corpo docente de cinema na Academia de Praga a desembocar no romance com a publicação de livros, nos quais o deslocamento, exterior e interior, é explorado e refletido, principalmente naqueles escritos ao longo do seu exílio na França, devido às represálias que enfrentou após as suas críticas sobre o advindo da Primavera de Praga.

A título de uma cronologia do despertencimento, tema que perpassa suas reflexões intelectuais, percebe-se em Kundera, muito antes de experienciar o exílio, o que o professor e teórico Alexis Nouss, em Pensar o exílio e a migração hoje (2020), considera como uma condição exílica – caracterizada como aquela na qual o ser, vivenciando ou não algum deslocamento, sente-se exilado. Em conformidade com a escrita, a sua trajetória pessoal também é marcada pelo movimento, uma vez que o sujeito político Milan Kundera foi expulso por algumas vezes do Partido Comunista Tcheco por tendências individuais que tensionavam com a proposta sócio-política partidária.

A movimentação entre exterior e interior na sua escrita é, inclusive, possível de ser observada, durante o período que antecedeu o exílio, por meio de uma gradação em torno do conteúdo de seus livros de poesia publicados na República Tcheca, no início de sua atuação como professor no corpo docente de Cinema da Academia de Praga: Homem jardim claro (1953), Maio passado (1955) e Monólogos (1957). Há um certo caminho sendo traçado entre a poesia voltada para o exterior, de cunho sócio-político, e a poesia voltada para o interior, de cunho individualista e erotizante – tal percepção é resgatada pelo trabalho de análise e recepção das poesias kunderianas realizado por Jan Culik, em seu artigo Man, a wide garden: Milan Kundera as a young Stalinist (2007).

Outra movimentação literária perceptível também diz respeito ao período em que o escritor escreve a sua coletânea de contos, Risíveis Amores (1969), que saem primeiramente publicados em revista para depois serem lançados como um só livro. Esse livro pode ser considerado como transitório e fronteiriço na escrita kunderiana, uma vez que, a partir daí, ocorre um afastamento progressivo e calculado da poesia (livros que ficam restritos à República Tcheca e não são traduzidos) enquanto que se inicia a escrita dos romances – gênero que ele mesmo reconhece como seu, ao afirmar que prefere ser referido como romancista ao contrário de escritor.

A temática do deslocamento surge logo em seu primeiro romance, A brincadeira (1967), livro que apresenta reflexões sobre os rumos negativos que o totalitarismo, com seu ideal de harmonia e coletividade, pode assumir – Ludvik, personagem principal, é expulso do Partido Comunista e direcionado a uma prisão militar em função de uma carta quem contém um jogo irônico de palavras. Anos mais tarde e em meio a desavenças políticas, ainda mantendo na escrita um certo tom de deslocamento observado na construção da ironia e do despertencimento, ele lança os romances A valsa dos adeuses (1972) e A vida está em outro lugar (1973) – os quais foram posteriormente banidos de livrarias e bibliotecas tchecas.

Nesse clima de insatisfação e, devido a um convite de trabalho na Universidade de Rennes, Milan Kundera parte para a França, em 1975, e efetiva o seu exílio, em 1980, quando recebe a cidadania francesa. Após a mudança provocada pelo movimento exílico exterior, ele ainda publica O livro do riso e do esquecimento (1979), A insustentável leveza do ser (1984) – seu livro mais conhecido, e A imortalidade (1990), ambos romances com a versão original em tcheco e que abordam também o deslocamento por meio de uma crítica à historicidade e suas decisões em torno do que deve ou não ser lembrado.

A partir de 1995, com o romance A lentidão, Kundera passa a ter a publicação de seus romances posteriores realizada originalmente em francês¹, a saber: A identidade (1997), A ignorância (2000) e A festa da insignificância (2014)². Esse deslocamento é mais profundo por se tratar de uma mudança de uso da linguagem: por mais que o romancista viesse de uma família erudita, fosse um intelectual e, portanto, tivesse acesso e domínio do francês, ao decidir tornar originais as suas publicações de romances e ensaios nesta língua, ele recusa o uso da língua materna tcheca. Esta ação produz um movimento que direciona para o entendimento de que Kundera, ao adotar o francês como idioma oficial de seus romances, visa maior alcance de sua escrita naquela que é considerada como uma das grandes línguas da literatura mundial.

No entanto, por mais significativa que fosse a mudança produzida pela adoção do francês, o romancista continuou tematizando o deslocamento de tal modo que, com a nova língua escrita e a possibilidade de se escrever sobre a França em seus livros, Kundera ainda faz uso de inúmeras menções à República Tcheca. Tendo em vista esse entendimento, observa-se a construção de uma escrita despertencida e irônica, que habita o entre, o limiar, o fronteiriço – reflexo por si só de uma condição exilada, produto de um movimento que se iniciou muito antes da consumação do exílio em 1975 e que se intensificou após isso.

Os romances escritos em francês partem de uma condição de movimento – seja para um castelo no fim de semana, seja para uma praia, seja no retorno ao país do qual se exilou, seja da própria noção de individualismo – que se potencializa na construção de uma diversidade de personagens e de tempos que se relacionam feito variações, termo empregado pelo escritor em seus romances e ensaios e que faz referência a compreensão de que todas as obras de um romancista são variações de um só tema: Foi somente relendo as traduções de todos os meus livros que me dei conta, consternado, dessas repetições! Depois, consolei-me: todos os romancistas só escrevem, talvez, uma espécie de tema (o primeiro romance) com variações. (A arte do romance, 1988: 120).

A partir dessa trajetória, em uma aplicação das considerações ensaísticas kunderianas aos romances do mesmo autor, A Brincadeira seria o romance que origina outras variantes, as quais tematizam o deslocamento e o despertencimento, interior e exterior, simbólicos nos quais Milan Kundera se inscreve e a partir dos quais escreve. A linguagem e, por consequência a literatura, torna-se seu país de origem e de pertencimento, uma vez que as movimentações visam não mais as chegadas ou os retornos e sim as partidas.

Notas
¹ Quanto a sua produção ensaística, desde o primeiro livro de ensaios, A arte do romance (1986), o autor escreve originalmente em francês e isso se estende aos outros três livros posteriores: Os testamentos traídos (1993), A cortina (2005), Um encontro (2009).
² Além de se aventurar em romances e ensaios, Kundera possui também, em sua trajetória literária, uma peça teatral inspirada em Diderot chamada Jacques e seu mestre, homenagem a Denis Diderot em três atos (1981).

 

Passagens

República Checa, França

 

Citações

Em grego, retorno se diz nóstos. Álgos significa sofrimento. A nostalgia é, portanto, o sofrimento causado pelo desejo irrealizado de retornar; Para essa noção fundamental, a maioria dos europeus pode utilizar uma palavra de origem grega (nostalgie, nostalgia), e também outras palavras com raízes em sua língua nacional: añoranza, dizem os espanhóis, saudade, dizem os portugueses. Em cada língua, essas palavras possuem uma conotação semântica diferente. Muitas vezes significam apenas a tristeza provocada pela impossibilidade da volta ao país. Nostalgia do país. Nostalgia da terra natal.(A ignorância: 8-9)

Quando Linhartova escreve em francês, continua a ser uma escritora checa? Não. Passa a ser uma escritora francesa? Também não. Está alhures. Alhures como outrora Chopin alhures como mais tarde, cada à sua maneira, Nabokov, Beckett, Stravinsky, Gombrowicz. […] Seja como for, depois do seu texto radical e luminoso já não se pode falar do exílio como se falou até agora. (Um encontro: 121)

Já nas primeiras semanas de exílio, Irena tinha sonhos estranhos: está num avião que muda de rota e aterrissa num aeroporto desconhecido; homens de uniforme armados, a esperam no fim do corredor; suando frio, ela reconhece a polícia tcheca. Outra vez, ela está passeando na cidade francesa quando vê um estranho grupo de mulheres em que cada uma dela, com uma caneca de cerveja na mão, corre em sua direção, chama-a por seu nome em tcheco e ri com uma cordialidade pérfida, e Irena se dá conta de que está em Praga, ela grita, acorda. Martin, seu marido, tinha os mesmos sonhos. Todas as manhãs contavam um ao outro o horror do retorno ao país natal. Depois, conversando com uma amiga polonesa, também ela exilada, Irena compreendeu que todos os exilados tinham esses sonhos, todos, sem exceção; a princípio ficou emocionada com essa fraternidade noturna entre pessoas que não se conheciam, mais tarde ficou um pouco irritada: como é que a experiência tão íntima de um sonho poderia ser vivida coletivamente? o que seria então alma única? Mas perguntas sem respostas de nada adiantam. Uma coisa era certa: milhares de exilados, na mesma noite, sonhavam o mesmo sonho. O sonho de exílio: um dos fenômenos mais estranhos da segunda metade do século XX. (A ignorância: 15)

Vista dali, Praga é uma grande faixa verde de quarteirões pacíficos, com pequenas ruas balizadas com árvores. É a essa Praga que ela é afeiçoada, não àquela, suntuosa, do centro; a essa Praga nascida no final do século passado, a Praga da pequena burguesia tcheca, a Praga de sua infância, onde, no inverno, ela esquiava por aquelas pequenas ruas que subiam e desciam, a Praga onde as florestas dos arredores, na hora do crepúsculo, entravam inopinadamente para espalhar seu perfume.
Sonhadora, ela caminha; durante alguns segundos entrevê Paris, que, pela primeira vez, lhe parece hostil: geometria fria das avenidas; orgulho do Champs-Elysées; rostos severos de mulheres gigantes, de pedra, que representam a Igualdade ou a Fraternidade; e em nenhum lugar, nenhum lugar, um único toque dessa intimidade amável, um só sopro desse idílio que ela respira aqui. Aliás, durante todo o seu exílio foi esta imagem que ela guardou como emblema do país perdido: as pequenas casas com jardins que se estendiam a perder de vista numa terra ondulada. (A ignorância: 86-87)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

Kundera, Milan (1978), O livro do riso e do esquecimento, tradução Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, São Paulo, Círculo do Livro.

— (1988), A arte do romance (ensaio), tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Vera Mourão, Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

— (1990), A imortalidade, tradução Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Anna Lucia Moojen de Andrada, Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

— (1995), La lenteur, Collection Blanche, Paris, Gallimard.

— (2000), L’identité, Collection Folio, Paris, Gallimard.

— (2003), L’ignorance, Collection Blanche, Paris, Gallimard.

— (2008), A insustentável leveza do ser, tradução Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, São Paulo, Companhia das Letras.

— (2009), A identidade, tradução Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, São Paulo, Companhia das Letras.

— (2009), Un encuentro, Barcelona, Tusquets Editores S. A..

— (2011), A lentidão, tradução Maria Luiza Newlands da Silveira e Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, São Paulo, Companhia das Letras.

— (2012), A brincadeira, tradução Tereza Bulhões Carvalho da Fonseca e Anna Lucia Moojen de Andrada, São Paulo, Companhia das Letras.

— (2012), Risíveis Amores, tradução Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, São Paulo, Companhia de Bolso.

— (2015), A ignorância, tradução Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, São Paulo, Companhia de Bolso.

— (2023), Um ocidente sequestrado ou a Tragédia da Europa Central, tradução João Duarte Rodrigues, Amadora, Publicações Dom Quixote.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

Barbosa, Verônica M. (2012), A questão da identidade em Milan Kundera, Projeto de pesquisa de Iniciação Científica, UNB.

Barroso, Maria V./ Richard, Rosimara (2011), Pertencer ou não pertencer ao círculo: narrativas do exílio em Milan Kundera, in CPGL- III Colóquio da Pós-Graduação em Letras, Assis-SP. CPGL- III Colóquio da Pós- Graduação em Letras, v. 01: 01-17.

ČeŠka, Jakub (2022), The Fundamentals of Milan Kunderas Poetics, Renyxa, No.12: 222-250.

Culik, Jan (2007), Man, a wide garden: Milan Kundera as a young Stalinist, Blok, miedzynarodowe pismo poswiecone kulturze stalinowskiej i poststalinowskiej. University of Glasgow.

Grube, Ingridh A. (2017), “O kitsch totalitário e a literatura de Milan Kundera como expressão de resistência” (Online). II Congresso Internacional de Estudos da Linguagem, Ponta Grossa, UEPG. Disponível em: https://proceedings.science/ciel-2017/trabalhos/o-kitsch-totalitario-e-a-literatura-de-milan-kundera-como-expressao-de-resistenc?lang=pt-br Acesso em: jan 23.

Silva, Lorena do Rosário/ Palma, Anna (2021), “A figuração do exílio no ciclo francês de Milan Kundera”, Literatura E Autoritarismo, (25). https://doi.org/10.5902/1679849X63335

 

Lorena do Rosário Silva

Como citar este verbete:
SILVA, Lorena do Rosário (2023), “Milan Kundera”, in Ulyssei@s: Enciclopédia Digital. ISBN 978-989-99375-2-9.
https://ulysseias.ilcml.com/pt/termo/kundera-milan/