Ribeiro, Aquilino

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Ribeiro, Aquilino

(1885-1963)

Aquilino Gomes Ribeiro nasceu numa aldeia de Sernancelhe (Beira Alta) e toda a sua obra ecoará de uma ou outra forma esse lugar de origem. As suas viagens e exílios, num tempo de catástrofe europeia, serão, por sua vez, fundamentais para a sua formação como ser humano e como artista. Se há obra onde o local e o universal dialogam, se intersectam e confluem, essa obra é a de Aquilino Ribeiro. Contra as imagens redutoras e unifacetadas de um escritor regionalista ou ruralista, Seabra Pereira oferece-nos uma pertinente síntese da obra aquiliniana: “uma vez transposta a fase de maturação, Aquilino quase sempre consegue a integração superadora e a coerência orgânica dos seus conhecimentos das línguas clássicas, das suas aquisições cosmopolitas por viagens e estadias no estrangeiro, pelo domínio de línguas e literaturas modernas, e da sua rica experiência existencial na serra ancestral, no burgo provincial, na cidade capital ou na metrópole europeia” (Pereira 2020: 118). Este ensaísta considera também que as crónicas sobre arte escritas pelo autor terão contribuído para a “aclimatação em Portugal” das Vanguardas literárias (cf. Pereira 2019: 238) e Carina Infanta chama a nossa atenção para notáveis passagens das crónicas do tempo da Sorbonne onde emerge o “motivo moderno e modernista da cidade como paisagem vivida por dentro, como se de um ecrã mental se tratasse” (Carmo 2014: 67). Por sua vez, Jorge Reis, em Aquilino em Paris, considera que a vivência parisiense foi determinante para a recriação da língua portuguesa a partir do léxico beirão. As línguas e as suas diferenças serão, de resto, tema de alguns textos aquilinianos, articuladas com a elaboração de uma poética do romance norteada pela tese da unidade idiomática de Portugal e pelo objetivo de “nacionalizar” o romance, “indo às fontes lustrais, empregando ‘terra’ bem portuguesa” (Ribeiro 1963: 72).

As marcas das viagens e exílios de Aquilino encontram-se presentes em várias dimensões da sua prolixa obra, desde o hibridismo genológico à escrita pluridiscursiva e heteroglóssica, passando pela intriga (ora em cenários rurais ora urbanos) e pela construção das personagens de algumas novelas. A passagem por Paris inspira o relato do convívio parisiense entre intelectuais e prostitutas em Filhas de Babilónia, e as suas personagens femininas mais livres. A viagem ao Brasil (em 1952), por sua vez, levará à criação de uma nova versão do “brasileiro” de torna-viagens em Manuel Louvadeus, personagem inesquecível do romance Quando os Lobos Uivam (1958). E o seu fascínio por andarilhos e viajantes (recorrentes ou centrais nos seus textos) deve, decerto, muito às suas andanças pelo mundo.

É a partir de França que Aquilino faz um cru retrato da emigração portuguesa para esse país nos anos 30, evidenciando o quadro periférico e de “colonizado”, económica e culturalmente, de Portugal face a França. E é a sua deslocação para fora de Portugal que lhe permite recolher os mais diferentes olhares e perspetivas de outros povos sobre Portugal, na génese de várias reflexões sobre a identidade portuguesa (cf. infra Cit.), sobre os conceitos de “pátria” e “lusitanidade” ou avançar com instigantes estudos comparativos de cidades (de Paris ao Rio de Janeiro).

Em virtude da sua ação política, Aquilino viveu dois exílios: o primeiro em Paris, de 1908 a 1915, aí assistindo ao desenrolar dos conflitos europeus que culminaram na 1ª guerra mundial. O diário É a Guerra (1934) dá conta do seu antibelicismo e da crítica ao envolvimento de Portugal no conflito, não escondendo “a náusea por aquele `horrendo ataque de epilepsia universal’, o pessimismo histórico-social” (Carmo 2014: 62), que o leva ao insilio na aldeia natal. Vive um segundo exílio de 1927 a 1932, de que resultará Alemanha Ensanguentada (1935), um livro contra o esquecimento dos horrores da guerra e que constitui um autêntico “património do sofrimento”. Ambas as obras (e Volfrâmio) valeram a Aquilino o epíteto de “germanófilo”, ainda que fosse impossível negar a sua paixão por França.

Alemanha Ensanguentada, espécie de reportagem e diário de viagem, é sobretudo um requiem pela Alemanha do pós-guerra (pela Europa, em geral), e obra profética também, que anuncia o emergir de novo conflito europeu. Aí descreve com profunda sensibilidade uma terra devastada, com feridas e cicatrizes que vão desde a fome e escassez de bens elementares à onda de suicídios na Alemanha derrotada. Este livro é também um livro de homenagem aos portugueses mortos em “Lacouture, terra regada com sangue português” (p. 262), e onde um monumento de pedra, de suposta homenagem à heroicidade dos soldados lusos, indicia uma subserviência continuada aos franceses. Com indignada ironia, escreve Aquilino: “Àparte as estrofes mutiladas de Camões, não há mais voz além deste dístico no supedâneo: Hommage du Portugal à la France Immortelle / Reduit de Lacouture / 9 Avril 1918. Quer dizer: Portugal deu à França corpos, almas e dinheiro, e para coroamento de generosidade vem na terra, ensanguentada pelo seu próprio sangue, prestar-lhe mais aquele preito” (Ribeiro: 263-64).

Os escombros que descreve em Alemanha Ensanguentada não turvam a contemplação da Natureza (primordial na sua vida e obra) nem o olhar comparatista. Na viagem de carro pela Picardia, o viajante deslumbra-se com a vitalidade e a “variedade cromáticas das árvores outonais, copadas e antigas” e reflete sobre a dimensão sagrada da floresta na mitologia nórdica, em contraste com a utilitária “mata” portuguesa, a que surge nalguns romances, aliada ao tema dos baldios, que tantos dissabores lhe traria.

O vaivém entre o mundo rural e o mundo cosmopolita explicará, em parte, o olhar compreensivo sobre o mundo aldeão, atávico e anacrónico. A poética vitalista e o telurismo não são sinónimos de cegueira e de uma visão idílica do campo, como o prova o romance A Batalha sem Fim (1932) – parábola e anti-epopeia de um país primitivo, onde camponeses e pescadores rasgam dunas à procura de tesouros de outros tempos, levando a cabo um “crime ambiental”, que antecipa o que é cometido pelo Estado em Quando os Lobos Uivam (cf. Hayson 2017). Mas nem o obscurantismo nem a utopia da salvação derivada de crenças e superstições, nem os motins em que miseráveis se digladiam merecem a condenação de Aquilino. À crítica aos processos arcaicos de escavação e à ignorância da engenharia moderna contrapõe a personagem do escritor (um seu alter-ego) uma explicação: o drama do protagonista é cósmico; o que o move é o sonho. Ou, de modo aforismático: “Amplie-se a aventura da duna, e teremos a aventura da humanidade no tempo e no espaço” (Ribeiro 1932: 244).

 

Passagens

Alemanha, Brasil, Espanha, França, Inglaterra…

 

Citações

Fomos a Hendaya ver os emigrantes que chegavam de Portugal. […] Escusado perguntar-lhes se são portugueses. Intonsos, maltrapilhos, ombros erguidos, mãos nos bolsos, a tiritar dentro da andaina de cotim por cima da camisa de riscado […]. Têm todas as idades. Desde o rapazinho imberbe de dezasseis anos ao homem de cabelos brancos, no pendor da velhice, e são originários de todos os cantos do Norte de Portugal. […] Para onde vão? Não sabem. A maior parte deles vieram sem contrata [sic], os raros que a traziam de Portugal ignoram a que espécie de trabalho ficam escravizados, no desconhecimento que têm do francês, e porque ninguém, tão-pouco, os elucidou. […] Mediante a contrata que assinou com dois rabiscos ou de cruz, é um escravo que se vendeu de corpo e alma ao senhor. […] Se deserta, o patrão manda-o prender; se levanta a cabeça por doença forçoso é que o patrão o autorize […] numa palavra, não se pertence; perdeu os seus foros de cidadão; é como os negros de África. (Aquilino. Páginas do Exílio 1927-1930: 129-130)

Neste arrastado outono são como as princesas do Oriente, que se adereçavam de todas as pedrarias para o leito funerário, as árvores da Europa setentrional. […] São sinfonias de cor, refractárias à paleta mais sensual.
Compreende-se que, atrás de tão surpreendentes cortinas, haja fadas e bons génios, dados à generosa tarefa de endireitar a sina de pastoras tristes e príncipes de alma pura, mas desgraciosos. Compreende-se e aceita-se a mitologia da floresta com os seus poéticos e caprichosos habitantes, sílfides, gnomos, elches, dríades, que sei eu! Deu-nos a madre-natureza a nós meridionais, em património, o céu azul e o sol claro. Legou à floresta à gente do Norte. Consentiu-nos o regalo da mata; à mata, porém, dá-se-lhe volta; corta-se-lhe a lenha; nunca foi sagrada; nunca vieram habitar nela divindades. (Ribeiro 1935: 296-297)

Para uns somos um povo triste e melancólico, bêbedo de fado e de saudade, para outros um povo alegre sobrenadando gloriosamente acima das agruras da vida, entre um mar azul e um céu mais azul ainda. […] Que somos dotados de uma imaginação selvagem e de uma infantilidade bárbara; que somos propensos à charlatanaria, ao culto do ouropel e do palavrão oco e sonoro; que nada nos é sagrado e que o espiritual em nós é só atitude; que o nosso fundo é sensualidade e preguiça; que a nossa história é uma bela aventura de piratas e candongueiros; que os escrúpulos da honra entre nós […] Mas os Pechio, os Linck, Os Hoffmanseg exclamarão que somos o povo mais idealista do mundo, doce, brando, sensível, pacífico como uma tribu em regime patriarcal, de alma pura e cândida como uma revoada de pombas brancas […] Os moderados acoimar-nos-ão de rotineiros, supersticiosos, humildes até à objeção, honestos, posto que pobres, laboriosos, embora incultos, dotados de uma inteligência viva, mas sem consciência, volúveis – europeus destemperados pelo sangue negro.
Neste pretório em que falam todas as línguas, onde está a verdade? E porque são tão discordes?
(Aquilino. Páginas do Exílio. 1927-1930: 52)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

Aquilino. Páginas do exílio: Cartas e crónicas de Paris. 1908-1914, (1988), Recolha de textos e org. Jorge Reis, Lisboa, Vega, Vol. 1.

Aquilino. Páginas do exílio: Cartas e crónicas de Paris. 1927-1930, (1988), Recolha de textos e org. Jorge Reis, Lisboa, Vega, Vol. 2.

Ribeiro, Aquilino (1934), É a Guerra (Diário), Lisboa, Livraria Bertrand.

— (1935), Alemanha ensanguentada, Lisboa, Livraria Bertrand.

— (1958), Quando os Lobos Uivam, Lisboa, Livraria Bertrand.

— (1969), Portugueses das Sete Partidas (viajantes, aventureiros, troca-tintas) (1ª ed. 1951).

— (1963), Abóboras no Telhado, Lisboa, Livraria Bertrand (1ª ed. 1955).

— (1985), Filhas de Babilónia, Lisboa, Livraria Bertrand (1ª ed. 1920).

— (1985), A Batalha sem Fim, Lisboa, Livraria Bertrand (1ª ed. 1932).

— (1985), Estrada de Santiago, Lisboa, Livraria Bertrand (1ª ed. 1922).

 

Bibliografia Crítica Selecionada

Carmo, Carina Infanta (2014), “Aquilino Ribeiro e o caderno de uma guerra mundial a nascer”, in Navegações, v. 7, n. 1, jan.-jun., pp. 61-68 In https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/22748/1/sAquilinoRibeiro%C3%89aGuerra%20%282%29.pdf

Garcia, Frederick C. Hesse (1981), Aquilino Ribeiro: Um Almocreve na Estrada de Santiago, Lisboa, Publicações Dom Quixote.

Hayson, Peter (2017), “Obsessiva eternidade”: O fim do mundo rural, segundo Aquilino Ribeiro”, in Materiais para o Fim do Mundo 7. Porto, ILCML, pp. 5-15. DOI: 10.21747/9789899937574/fimdomundo7a1

Lopes, Óscar (1990), “Aquilino Ribeiro”, in Cifras do Tempo, Lisboa, Caminho, pp. 169-197.

Neves, A. (1996), Aquilino Ribeiro e o Brasil. Cadernos Aquilinianos (Centro de Estudos Aquilino Ribeiro), 4, pp. 85-96.

Nunes, Renato David Simões (2019), Aquilino Ribeiro Percursos de um escritor, em tempo de ditadura (1926-1963), Lisboa, Universidade Aberta, in
https://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/8425/1/TD_RenatoNunes.pdf

Pereira, José Carlos Seabra (2019), As Literaturas em Língua Portuguesa (Das origens aos nossos dias), Lisboa, Gradiva.

— (2020), “Aquilino Ribeiro”, in Cânone (org. de António M. Feijó et alli) Lisboa, Tinta da China.

Reis, Jorge (1987), Aquilino em Paris, Lisboa, Ed. Vega.

Vidigal, Luís (1988), Recensão de Aquilino em Paris e Páginas do exílio, vol. I e II, org. por Jorge Reis, in Colóquio/Letras, n. 104-105, pp. 173-175.

 

Maria de Lurdes Sampaio

Como citar este verbete:
SAMPAIO, Maria de Lurdes (2023), “Aquilino Ribeiro”, in Ulyssei@s: Enciclopédia Digital. ISBN 978-989-99375-2-9.
https://ulysseias.ilcml.com/pt/termo/ribeiro-aquilino/