Pires, José Cardoso

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Pires, José Cardoso

(1925-1998)

José Cardoso Pires das Neves nasceu em São João do Peso, Castelo Branco, mas viveu grande parte da sua vida em Lisboa. Aprendiz de marinheiro, publicista, tradutor, jornalista, editor, homem de muitos ofícios, José Cardoso Pires foi um dos mais notáveis escritores portugueses do século XX, e dos raros a ter reconhecimento crítico imediato – o que lhe valeria também, desde cedo, a vigilância da Censura. Recebeu, entre muitos outros prémios: em 1963, o Prémio Camilo Castelo Branco, com O Hóspede de Job; em 1982, o Grande Prémio de Romance e Novela da APE, com A Balada da Praia dos Cães; em 1997, Prémios Pessoa e D. Dinis, com De Profundis, Valsa Lenta e em 1998, Prémio Vida Literária da APE. Traduzidas para várias línguas, as suas obras foram objecto de adaptações teatrais, radiofónicas e cinematográficas.

Cultivando a liberdade e a independência, Cardoso Pires moveu-se sempre com grande à-vontade em todos os meios sociais: conviveu com intelectuais e artistas diversos (Alexandre O’ Neill, Júlio Pomar e outros) e mergulhou, ainda adolescente, nos universos marginais de alguns bairros lisboetas – lugares esses de aprendizagem do calão, gíria e outros sociolectos oralizantes de que a tessitura polifónica da sua prosa (também) é feita. O espírito aventureiro e a ruptura com o meio burguês a que pertencia levaram-no a alistar-se, em 1945, na Marinha Mercante. Apenas com 19 anos fez a sua incursão conradiana em território africano e conheceu de perto alguns métodos brutais da colonização portuguesa. Dos muitos vestígios dessa viagem iniciática na obra do autor são de assinalar, em 1951, num ensaio dedicado a Faulkner, reflexões irónicas acerca do silêncio do português continental sobre questões rácicas, seguidas de uma alusão à sua fugaz visão do apartheid sul-africano: “Disto me ficou a lição de que um Strange Fruit não é elemento exclusivo de uma paisagem do Mississipi.” (apud Portela Filho: 220) Expulso da Marinha em 1946 por indisciplina, Cardoso Pires será para sempre uma espécie de marinheiro em terra, em deambulação física e mental pelas ruas de Lisboa, entregue ao prazer da decifração dos sinais disseminados pela cidade. Que o mar e os rudimentos da arte de marear ficaram gravados na sua memória provam-no Lisboa – Livro de Bordo (1997), roteiro poético e pessoal de uma cidade com a qual dialoga, num discurso amoroso repleto de tropos marítimos. As suas viagens por mar inspiram-lhe ainda histórias como Viagem à Ilha de Satanás (1997), espécie de sátira, à laia de ficção científica, dos sonhos expansionistas portugueses em tempo de acesas guerras coloniais. Cardoso Pires foi, aliás, dos primeiros escritores a tematizar os dramas da descolonização e da identidade portuguesa no pós-Revolução. Veja-se, por ex., a história (pseudo) infantil “Celeste & Làlinha. Por Cima de Toda a Folha” (1979), onde a perseguição a uma boneca negra se volve em parábola disfórica da vida dos “retornados”, relegados para a periferia lisboeta.

Como muitos críticos têm salientado, Cardoso Pires narrou, radiografou e deu a ver, numa escrita cinematográfica, a sociedade portuguesa do Estado Novo: colonialista, rural, marialva, autofágica, quase paralisada pelo medo, mas em lenta metamorfose – sendo O Delfim a sua melhor alegoria. E, ao mesmo tempo, uma sociedade de viajantes, que o autor transpôs para o universo ficcional: migrantes, emigrantes, soldados em trânsito, “desocupados”, e viandantes ociosos, em deambulações circulares num país claustrofóbico.

O realismo reinventado que se anuncia em Caminheiros e outros Contos (1949), e se confirma em Histórias de Amor, O Anjo Ancorado ou em Hóspede de Job, evidencia o desvio da cultura francesa e a selecção de outros mestres: Poe, Faulkner, Caldwell, Melville, e, sobretudo, Hemingway, com o qual o jovem autor apura a sua “prosa substantiva”, a economia narrativa, a secura do estilo e a abordagem behaviorista das personagens. Mas Hemingway seria, acima de tudo, para o seu (con)discípulo, o paradigma do escritor cuja obra é indissociável da experiência vivida, tese que, aliás, Cardoso Pires defenderia no ensaio “A experiência na criação literária” (1945). A obra do autor em si mesma parece provar essa tese, pela sua constante reinvenção, a que não serão alheias as muitas deslocações feitas: o exílio em França e no Brasil (1960-61), as viagens como escritor pelo mundo fora, e, sobretudo, a sua estada em Londres como Leitor de Literatura Portuguesa e Brasileira no King’s College (1969-1971), onde conviveu com Rui Knopfli, Gabriel García Márquez e Mário Vargas Llosa. Em Londres é escrita a fábula Dinossauro, Excelentíssimo (1972), e com ela inicia Cardoso Pires um novo ciclo, ao explorar, nas colectâneas de contos, O Burro-em-Pé (1979) e A República dos Corvos (1988), o realismo mágico, o fantástico e o fabulário tradicional, sempre aliados ao modo irónico e satírico.

Nos anos 80, à revelia da febre do romance histórico da época, Cardoso Pires privilegia o real circundante e a história recente de Portugal, indagando, no romance A Balada da Praia dos Cães (1982), como um detective, sobre os mistérios da sociedade salazarista. Na mesma linha de valorização da pequena história é escrito Alexandra Alpha (1987), um fresco do período ante e pós-Revolução, sendo a crise identitária dos indivíduos tematizada através de um subtil diálogo com Pessoa e de um exacerbado jogo de espelhos, onde as fronteiras entre o real e a fantasia por vezes se diluem.

Em 1997, no magnífico De Profundis, Valsa Lenta, Cardoso Pires deixa-nos o relato de uma viagem à terra da desmemória, onde entrelaça exemplarmente as questões da voz, da memória e da identidade. Obra de cariz explicitamente autobiográfica, ela surge como o corolário natural de uma produção onde, afinal, “o auto-retrato percorre transversalmente boa parte da carreira de um escritor que nos habituámos a tomar como paradigma da objectividade” (Morão, 2002: 306).

 

Passagens

Itália, França, Brasil, Espanha, Inglaterra, Suécia, Vietnam, Cambodja, Líbano.

 

Citações

É verdade: Cabo Verde revelou-se-me, pela primeira vez, através das descrições de um marinheiro do Mindelo em escala por Lourenço Marques, nos últimos anos de guerra. 1945, portanto. Fevereiro ou Março de 1945.
Havia nesse tempo homens de todos os quadrantes a bordo dos liberties americanos que percorriam os mares vigiados, e o encontro com o crioulo português no sórdido bar Penguin não seria surpresa de maior se não fosse o halo de aventura e de imaginação que o envolvia e a todas as suas palavras. […] Falou-me de Lisboa e pôs-lhe tais cores, tais intimidades, que recriara uma cidade como só sabem fazer os bons narradores de muito mundo. Contou-me as ilhas: com melancolia, com uma gentileza de frase e uma constelação de pormenores. […] Pego neste título Morabezza, ouço um Julinho Canda e o seu ceremonial de gentilezas. […] Aprofundo mais: vou ao sonho, ao mito que o outsider do conto ‘Os Mandongues de Pudjinho Sena’ pôs em jogo para se evadir do pequeno universo concentracionário em que nasceu, vejo-o entre copinhos de grogue e conversas imaginadas pelos cais do Mindelo. E percebo como se ‘refaz’ uma realidade concreta, sem a negar mas definindo-a a golpes de engenho e fantasia. Foi assim, de resto, que Lisboa, na interpretação do marítimo cabo-verdiano, sendo fagueira, graciosa e encantada, me surgiu como um quadro de Dufy: exacta nas linhas essenciais e livre no contorno, dirigida à metáfora. (Dispersos 1. Literatura: 45-46)

A partir desta bebida o Johnny português amandou-se todo para a frente num discurso que ainda era mais errante do que os icebergs que tinha conhecido […] ‘Quantas brancas,’ perguntava ele às consciências que o ouviam, ‘quantas brancas, é um exemplo, vê a gente casadas com pretos? Raríssimas. Nenhumas. E é um erro, caraças. Um erro porque assim nunca mais se produz a raça universal.’
No travo do arroto espalmou o peso dos anéis em cima do balcão e ficou-se a abanar a cabeça. Estava realmente desiludido com a estupidez do país.
‘Ministros, ministros pretos, quantos ministros pretos tivemos nós na nossa história? Quantos juízes de cor? Quantos generais, quantos bispos, vamos lá? Eu sei, eu digo: nicles. Absolutamente nicles. Ao passo que na América houve de tudo. Senadores, banqueiros, ministros, tudo. Até presidentes pretos. Não me lembro em que época, mas houve.’ (O Burro-em-Pé: 173)

Sem nome e sem assinatura este que eu sou entre paredes de um hospital encontra-se numa paisagem anónima com gente anónima (o pessoal, os visitantes). Sem nome, vejam só. E contudo, ‘os nomes penetram-nos até aos ossos’, afirmava Hemingway, esse viajante das mortes, em The Garden of Eden. (De Profundis, Valsa Lenta: 37)

Mais dois, três dias, e iria levantar ferro da ilha dos náufragos para reviver a casa e o mundo e voltar à escrita e aos livros nas últimas linhas em que os abandonara. (idem: 57)

Já dois anos sobre isto e só hoje é que dou por encerrada a minha viagem à desmemória, arquivando-a à deriva por indícios trazidos na corrente. (idem: 63)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

PIRES, José Cardoso (1949), Os Caminheiros e outros Contos, Lisboa, Centro Bibliográfico, 1949 (Textos incluídos posteriormente em Jogos de Azar, com excepção de “Salão de Vintém”).
—- (1958), O Anjo Ancorado, 8.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 1990.
—- (1960), Cartilha do Marialva ou das Negações Libertinas, Lisboa, Ulisseia.
—- (1963), O Hóspede de Job, 8.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 1992.
—- (1968), O Delfim, 2.ª ed., Lisboa, Moraes Editores, 1977.
—- (1972) Dinossauro Excelentíssimo, Lisboa, Arcádia, (3 edições; texto reeditado ainda por outras editoras e incluído em O Burro-em-Pé e em A República dos Corvos).
—- (1977), E agora, José?, Lisboa, Moraes Editores.
—- (1979), O Burro-em-Pé, Lisboa, Moraes Editores.
—- (1982), Balada da Praia dos Cães, 2ª. ed., Lisboa, O Jornal, 1982.
—- (1987), Alexandra Alpha, 4.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 1999.
—- (1988), A República dos Corvos, 2.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 1989.
—- (1994), A cavalo no Diabo (crónicas e contos), Lisboa, Dom Quixote.
—- (1997), Viagem à Terra de Satanás (BREVE NOTÍCIA DO ACHAMENTO DA ILHA DE SATANÁS E DOS VERDADEIROS SUCESSOS QUE NELA OCORRERAM agora postos a escrito segundo os testemunhos dos navegantes e dos registos que os certificam), Lisboa, Lisboa Exp’ 98. (Dactiloscrito com correcções in Colóquio/Letras, n.º 159-160, Janeiro-Junho, 2002 (págs. não numeradas).
—- (1997), De Profundis, Valsa Lenta, Lisboa, Dom Quixote, 1997.
—- (1997), Lisboa – Livro de Bordo. Vozes Olhares, Memorações, Lisboa, Publicações Dom Quixote e Expo’ 98, 1997.
—- (2005), José Cardoso Pires. Dispersos 1. Literatura, Lisboa, Dom Quixote.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

CABRAL, Eunice (1999), José Cardoso Pires – Representações do Mundo Social na Ficção (1958-82), Lisboa, Edições Cosmos.
COELHO, Eduardo Prado (1986), “Cardoso Pires: o círculo dos círculos”, in O Delfim, 2.ª ed., Lisboa, Moraes Editores, 1977, pp. 9-24.
LEPECKI, Maria Lúcia (1977), Ideologia e Imaginário. Ensaio sobre José Cardoso Pires, Lisboa, Moraes Editores.
LOURENÇO, Eduardo (1980), “Espelho sem Reflexo”, in Corpo-Delito na Sala de Espelhos, Moraes Editores, Lisboa, pp. 13-20.
MARGATO, Izabel (1999), “O Alegorista da Cidade (uma leitura de Lisboa, Livro de Bordo – Vozes, Olhares, Memorações), in Actas do 3º Encontro de Professores de Português. Homenagem a Cardoso Pires, Porto, Areal Editores, pp. 29-37.
MORÃO, Paula (2002), “José Cardoso Pires: O Retrato em ‘Modo José’” Colóquio/Letras, n.º 159/160, Janeiro-Junho, 2002, pp. 299-312.
PEDROSA, Inês (org.) (1999), José Cardoso Pires. Fotobiografia, Lisboa, Dom Quixote.
PETROV, Petar (2000), O Realismo na Ficção de José Cardoso Pires e de Rubem Fonseca, Difel, Lisboa.
PORTELA FILHO, Artur (1991), Cardoso Pires por Cardoso Pires: entrevista de Artur Portela, Publicações Dom Quixote, Lisboa.
TORRES, Alexandre Pinheiro (1967), “Sociologia e significado do mundo romanesco de José Cardoso Pires”, in Romance: o Mundo em Equação, Lisboa, Portugália Editora.

Maria de Lurdes Sampaio