(1921-2008)
«A liberdade é para mim um conceito básico de existência. Sem a liberdade não se podia viver, não se podia ser, não se podia estar» (ARAGÃO 1994: 0:28). São estas as palavras que inauguram o documentário produzido pela RTP, em 1994, em torno da vida de António Aragão. Poeta, pintor, escultor, historiador, nasceu a 22 de setembro de 1921, na freguesia de São Vicente, na Ilha da Madeira. Licenciou-se em Ciências Históricas e Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e diplomou-se em Biblioteconomia e Arquivismo pela Universidade de Coimbra. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, tendo estudado etnografia e museologia em Paris. Frequentou o Instituto Central de Restauro, em Roma, e estagiou no laboratório de restauro do Vaticano. A deslocação transformou-se, desde logo, quer numa forma de descoberta e de busca por novos conhecimentos, quer num veículo para alcançar a liberdade que, dado o contexto político ditatorial que assolava o Portugal da época, não podia exercer: «Viver em Paris era gritar em voz alta esse sentido de liberdade de que eu necessitava quando estava aqui» (idem: 8:54).
Com efeito, as várias deslocações empreendidas por António Aragão influenciaram não apenas a construção da sua obra, como a produção poética dos seus pares, cujos percursos se encontram, igualmente, marcados por várias viagens de caráter profissional, artístico e académico. De resto, o apreço por uma lógica de cocriação, pelas potencialidades do trabalho coletivo e por um certo sentimento de pertença a uma comunidade encontra-se explícito no texto «Movimento e Intervenção» (1965), no qual o poeta afirma que «o indivíduo que cria qualquer coisa, cria não apenas para os outros mas com os outros» (Aragão 1965: s.p.).
Durante o período em que viveu em Roma, Aragão produziu a sua primeira obra poética, intitulada Poema Primeiro (1962): «Fiz o meu primeiro livro em Roma. O primeiro livro foi publicado em Portugal, nas coleções Pedras Brancas, mas que eu gostei de o ter feito. E depois esse convívio lá, em liberdade, essa maneira de exprimir-me agora em… Pela palavra, foi para mim salutar» (ARAGÃO 1994: 27:34). Foi também em Itália que teve oportunidade de contactar com os procedimentos cibernétcos e combinatórios desenvolvidos por Nanni Balestrini, experiência que se encontra relatada no texto «A Arte como “campo de possibilidades”» (1963) e que, tal como destaca Bruno Ministro, viria a «influenciar Herberto Helder na criação de um conjunto de poemas por meio de processos de produção textual combinatória que culminarão na edição do livro Electronicolírica» (MINISTRO 2014: 7).
O regresso a Portugal representou, assim, o início dos diálogos que viriam a culminar na organização e consequente publicação dos Cadernos de Poesia Experimental. No primeiro número (1964), coorganizado com Herberto Helder, Aragão publicou «Roma nce de Iza mor f ismo», «Poema fragmentário» e «Poesia encontrada». Já no segundo (1966), no qual aos organizadores se juntou Ernesto de Melo e Castro, publicou «Mirakaum». Interessa, neste sentido, recordar uma carta endereçada a Ana Hatherly, a 1 de setembro de 1975, na qual Herbeto Helder dá conta do modo como o contacto com novas experiências criativas influenciou Aragão: «Quanto ao assunto da Poesia Experimental 1, que posso eu dizer? Lembro-me que eu andava às voltas com o Dorfles e o Bense, e estava muito interessado em experiências com computadores, o que não era viável cá, coisas que fiquei a saber depois de umas conversas com um engenheiro da IBM. Entretanto, o Aragão veio de Roma falando obsessivamente de Umberto Eco. Líamos e discutíamos o que se estava a fazer em Itália, sobretudo» (apud Hatherly 2011: 97).
Perante um contexto político que estrangulava a liberdade criativa, António Aragão co-organizou e colaborou, também, em vários outros eventos basilares para a dinamização e internacionalização do Movimento da Poesia Experimental Portuguesa. Destaque-se, a título de exemplo, as exposições Visopoemas e Orfotonias, ambas realizadas em 1965. No âmbito das publicações, participou em Hidra 1 (1966), Operação 1 (1967) e Hidra 2 (1969). Participou, igualmente, em várias exposições coletivas internacionais, entre as quais se pode referir poesia visual, fónica, espacial y concreta (1965), em Espanha, e Arlington Quadro / Quadlog (1968), que reuniu contribuições de poetas experimentais e concretos portugueses e britânicos, realizada em Inglaterra. Durante esta década, publicou, ainda, Folhema 1 e 2 (1966) e Mais Exactamente Pr(o)bl(emas) (1968).
Nos anos 70, publicou Poema azul e branco (1970), Poema vermelho e branco (1971), Um buraco na boca (1971) e Os bancos: antes da nacionalização (1975), sendo, contudo, importante destacar a sua participação na XIV Bienal de São Paulo, com a exposição OVO/POVO (1977). Para este evento, deu-se um encontro entre António Aragão, E. M. de Melo e Castro, Ana Hatherly e Silvestre Pestana, registado em vídeo e cuja transcrição surge documentada no livro PO.EX: textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa. Nesta conversa, Aragão destaca frequentemente o cariz internacional do Movimento da Poesia Experimental Portuguesa: «além dessa incidência sobre as raízes nacionais, nós criámos como que uma relação ecuménica dentro da poesia internacional. É que eu não conheço a maior parte das pessoas que me mandam poemas de toda a parte do mundo, desde brasileiros, americanos, italianos, até japoneses, etc. No entanto há uma comunicação tão grande, e nós somos essa poesia levada lá, como a deles que vem até cá» (ARAGÃO 1981d: 23).
Os meios tecnológicos ganham progressiva expressão na obra de António Aragão a partir de 1980. O recurso às potencialidades da máquina fotocopiadora dá origem aos três volumes de Electrografias, que viriam a ser publicados apenas na década de 90, à sua contribuição em Joyciana (1982), publicado com Ana Hatherly, Alberto Pimenta e Melo e Castro e nas edições de Filigrama 1 (1981) e Filigrama 2 (1982), cuja circulação se deu por meio da rede de arte postal. Desenvolveu, igualmente, breves experiências no campo da vídeo-arte e publicou as obras Metanemas (1981), pátria. couves deus. etc. (1982) e, com Alberto Pimenta, os 3 farros: descida aos infermos (1984). Participou em várias exposições nas principais cidades Europeias, nos Estados Unidos da América e no México.
Fundou a editora e galeria Vala Comum, em Lisboa, na década de 90 e, durante esse período, dedicou-se à reedição e reescrita de algumas das suas obras. Publicou, em 1992, Textos do Abocalipse e continuou a expor intensivamente a sua obra quer dentro, quer fora do país.
A par das suas recorrentes deslocações, Aragão contribuiu, de um modo incontornável, para a divulgação do património e da história madeirenses, possuindo uma ampla obra nesse âmbito. Foi responsável pelas escavações do convento quinhentista da Nossa Senhora da Piedade, em Santa Cruz e, no domínio da etnografia, juntamente com Jorge Valdemar Guerra e Artur Andrade, efetuou recolhas ao nível da música tradicional da Madeira e do Porto Santo.
Passagens
Portugal, França, Itália, Inglaterra, Espanha, Brasil, México
Citações
Recentemente contactámos em Itália com Nanni Balestrini e a sua poesia electrónica. Ele próprio nos explicou tudo que se passava e imediatamente fomos seduzidos pela experiência em língua portuguesa.
Com a colaboração do poeta N. Balestrini e dum programador de cérebro IBM construímos mais de três mil variações do mesmo grupo de versos. A regra da partida forneceu um princípio que originou a possibilidade. Em seguida o cérebro IBM tentou todas as combinações.
É indiscutível o alto nível lírico de alguns poemas. Aqui o homem fabrica o próprio calculador de possibilidades colocando-se depois como fruidor atento perante o milagre do imprevisível. (ARAGÃO 1981a: 105)
Bom, primeiro que tudo, antes de aparecer a revista, eu saí de Portugal, inseri-me noutro contexto que não era o contexto português, um contexto onde se viviam determinadas vivências e se faziam determinadas experiências de tipo criativo, sobretudo França e Itália, e aí eu concebi uma nova maneira de recriar aquilo que tinha deixado para trás e que era uma tradição da poesia portuguesa. Quando passados tempos chego novamente a Portugal encontro tudo na mesma, estratificado, politicamente inacreditável, e então eu vi que a gente chega aqui e realmente sufoca. Dá-se um encontro ocasional com mais um poeta e começo a falar: – «É pá, isto aqui não se passa nada, estamos enquadrados numa situação política terrível que se reflecte na actividade criativa; temos de fazer qualquer coisa, isto não pode continuar assim». E em dada altura começamos a elaborar um projecto. Para já, há uma coisa que é importante referir, que é a relação que houve depois entre nós e os elementos que cá havia e que já iam fazendo qualquer coisa, que iam fazendo Poesia Experimental. (ARAGÃO 1981d: 18)
Eu penso que se podia dizer que os dois aspectos são importantes, um endógeno outro exógeno, e que ambos movimentaram realmente um determinado procedimento criativo: um, por carência interior, outro, por encontro com outras formas criativas; e foi então que se deu a sua dimensão de possibilidade. (ibidem)
Por outro lado, há uma coisa que sucedeu com a Poesia Experimental que me parece bastante importante, que é uma sintonia um pouco fora do normal que se passava cá no nosso país, quer dizer, uma sintonia com o que se passava nos outros países. Pela primeira vez, penso eu, portanto falando numa relação arqueológica com o que se tem passado para trás com outros movimentos, pela primeira vez conseguimos naturalmente uma sintonia da nossa vida com os novos processos e os novos meios de comunicação, etc., ou seja, com o que se passava noutros países. Anteriormente, como se sabe, os movimentos que se passavam na Europa chegavam cá tarde e mal e por vias muito pouco vivenciais. Nesta ocasião realmente a Poesia Experimental conseguiu sincronizar, daí o facto de aparecerem dois cadernos de poesia não só de portugueses como de poetas de toda a parte… (idem: 22)
Há uma coisa que me parece importante: é que no seguimento do que estavas a dizer e das pesquisas da Ana [Hatherly], além dessa incidência sobre as raízes nacionais, nós criámos como que uma relação ecuménica dentro da poesia internacional. É que eu não conheço a maior parte das pessoas que me mandam poemas de toda a parte do mundo, desde brasileiros, americanos, italianos, até japoneses, etc. No entanto há uma comunicação tão grande, e nós somos essa poesia levada lá, como a deles que vem até cá. Acho isso muito interessante, na medida em que essa abertura de fronteiras não implica uma desnacionalização, nem corresponde a um nosso desenraizamento de cá. Mas ao mesmo tempo há uma fuga para além dessas fronteiras que nos têm estado sempre fechadas através dos tempos… (idem: 23)
Claro, gosto de viajar. É outro aspeto onde gasto os proventos das coisas que faço. (…) Já é a terceira vez que estou em bienais no México. (ARAGÃO 1994: 12:11)
Fiz o meu primeiro livro em Roma. O primeiro livro foi publicado em Portugal, nas coleções Pedras Brancas, mas que eu gostei de o ter feito. E depois esse convívio lá, em liberdade, essa maneira de exprimir-me agora em… Pela palavra, foi para mim salutar. Foi para mim bom. E foi outro encontro, com outra forma de expressão, de realizar-me. Isto não quer dizer que… o longe, Portugal, a gente sonhava sempre que um dia havia de mudar aquele regime de ditadura fascista, havia de mudar. Onde eu vivia já nem se falava em fascismo, em Itália. (idem: 27:34)
Bibliografia Ativa Selecionada
ARAGÃO, António (1965), “Movimento e Intervenção”, in Poesia Experimental – Suplemento do Jornal do Fundão. Disponível em: <https://po-ex.net/taxonomia/transtextualidades/metatextualidades-alografas/antonio-aragao-intervencao-e-movimento>
— (1968), Mais exactamente p(r)o(bl)emas, Funchal, Edição de Autor.
— (1971), Um buraco na boca, Funchal, Comércio do Funchal
— (1975), Os bancos: antes da nacionalização, Funchal, Edição de Autor
— (1981a [1963]), “A Arte como «campo de possibilidades»”, in PO.EX: textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa, Lisboa, Moraes Editores. 102-105. Disponível em: <https://po-ex.net/taxonomia/transtextualidades/metatextualidades-alografas/antonio-aragao-a-arte-como-campo-de-possibilidades/>
— (1981b [1965]), “A poesia começa onde o ar acaba”, in PO.EX: textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa, Lisboa, Moraes Editores. 39. Disponível em: <https://po-ex.net/taxonomia/transtextualidades/metatextualidades-autografas/antonio-aragao-a-poesia-comeca-visopoemas/
— (1981c), Metanemas, Lisboa, Edição de autor.
— (1982), pátria. couves. deus. etc., Lisboa, &etc.
— (1985) “A escrita do olhar”, in Poemografias: perspectivas da poesia visual portuguesa, Lisboa, Ulmeiro. 175-188.
— (1992), Textos do Abocalipse, Lisboa, Pf.
— (1994), “Documentário sobre António Aragão”, in RTP [autoria da jornalista Maria Luísa]. Disponível em: <https://po-ex.net/taxonomia/transtextualidades/metatextualidades-alografas/rtp-maria-luisa-antonio-aragao/>
ARAGÃO, António / Alberto Pimenta (1984), os 3 farros. descida aos infermos, Lisboa, Danúbio.
ARAGÃO, António / Ana Hatherly / E. M. de Melo e Castro / Silvestre Pestana (1981d [1977]), “Mesa Redonda (transcrição)”, in PO.EX: textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa, Lisboa, Moraes Editores. 17-25.
Bibliografia Crítica Selecionada
HATHERLY, Ana (2011), “António Aragão – um ano depois”, Margem 2, 28, Funchal, Edição da Câmara Municipal do Funchal – Departamento de Cultura da C.M.F. 94-97.
MELO E CASTRO, E. M. de (1995), “António-Escrita-Aragão”, in Voos da Fénix Crítica, Lisboa, Edições Cosmos. 171-176.
MINISTRO, Bruno (2014), Um buraco na boca: edição crítica do romance experimental de António Aragão. Dissertação de Mestrado em Edição de Texto, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Inês Cardoso – 1º Ano DELCI 2017/2018