Losa, Ilse

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Losa, Ilse

(1913-2006)

Oriunda de uma família de judeus alemães assimilados, Ilse Lieblich Losa (I.L.) abandonou a Alemanha nacional-socialista, em 1934, perante a iminência de deportação para um campo de concentração. Embora Portugal devesse constituir, como para milhares de refugiados na época, um mero ponto de passagem para o exílio nos Estados Unidos ou num país da América do Sul, acabou por se radicar definitivamente no Porto, onde se casou, em 1935, com o arquiteto Arménio Losa, tendo então adquirido a nacionalidade portuguesa.

Com um percurso pouco comum, adotou a língua portuguesa como forma de expressão artística, regressando à língua materna apenas cerca de 40 anos depois da estreia literária, ao decidir verter para alemão e publicar várias das suas obras inicialmente editadas em português. Sem me deter na questão se I.L. é exemplo de uma integração cultural conseguida (Becker, 1995: 129), importa destacar o interesse intercultural da sua obra. Para além de mediadora da literatura portuguesa na Alemanha, bem como da literatura de expressão alemã em Portugal – quer através de traduções para as duas línguas (e.g. Manuel da Fonseca, Alves Redol, Bertolt Brecht, Thomas Mann), quer enquanto colaboradora de periódicos e de editoras dos dois países (e.g. Fischer, Portugália) –, I.L. foi também reconhecida pela atividade de escritora. A sua produção multifacetada (romances, contos, literatura infanto-juvenil, crónicas, ensaios) valeu-lhe uma receção muito positiva, tanto por parte dos leitores como da crítica – primeiro em Portugal, logo a partir da sua revelação literária em finais dos anos 40, dando-se início a uma leitura sobretudo biografista e/ou historicista da sua obra; depois na Alemanha, a partir dos anos 90, quando as abordagens teóricas já privilegiavam o forte pendor intercultural da sua escrita. Recebeu distinções e prémios vários, tanto portugueses como alemães (e.g., Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens (1982, 1984), condecoração da República Federal da Alemanha (Ritterkreuz) (1991)). Inicialmente ignorada nos meios académicos, a sua obra foi revalorizada nos últimos anos a partir do interesse pelos estudos interculturais e das relações luso-alemãs. (De destacar as teses de Mestrado e de Doutoramento de Ana Isabel Marques (2001, 2009), nas quais colhi muitas das informações aqui apresentadas.)

O multiculturalismo e os choques culturais que desde cedo experenciou (judia assimilada na República de Weimar, au-pair na Inglaterra, perseguida na Alemanha hitleriana, “estrangeira” em Portugal) materializaram-se na sua escrita ficcional, marcada, em parte, por figuras que, vítimas de um qualquer processo de exclusão, vivem entre culturas, que observam criticamente. Não será por isso de estranhar que a obra narrativa de I. L. venha a debruçar-se sobre o encontro e a confrontação do sujeito com a alteridade estrangeira, nomeadamente com o Portugal salazarista. Já diversos contos, que antecipam/variam temas e motivos desenvolvidos nos romances, apresentam aspetos da realidade portuguesa coeva de modo muito crítico. Quanto à crónica de viagens (Ida e Volta. À Procura de Babbitt (1960) e aos romances que escreveu (O Mundo em que Vivi (1949; trad. 1990), Rio sem Ponte (1952), Sob Céus Estranhos (1962; trad. 1991)), apenas o quarto e último texto se desenrola em Portugal, tematizando o encontro e o confronto com a realidade portuguesa. Assim sendo, nele me concentrarei.

O romance narra a história de Josef/José Berger, um judeu alemão forçado a abandonar a pátria porque vítima de uma violenta agressão por um grupo de nacional-socialistas e que, embora tencionasse emigrar para os Estados Unidos, acaba por se radicar no Porto e aí constituir família. Paralelamente, é-nos apresentado um quadro da sociedade portuense em finais dos anos 30 / década de 40, bem como da vida dos refugiados no nosso país.

A estrutura narrativa é relativamente complexa. Um enquadramento narrativo (a história do nascimento do filho de Berger) envolve uma longa analepse, na qual, em quatro macrossequências narrativas e num jogo entre vários planos temporais, se recuperam algumas recordações do passado alemão do protagonista, entrelaçadas com as muitas vivências do seu destino em Portugal, entre elas o encontro e o casamento com a mãe portuguesa do seu filho.

Com um processo de integração lento e difícil, nunca acrítico nem de aceitação total, sempre com um sentimento de estranheza e com o desconforto do diferente, Berger vai contactando com diversas personagens ao longo da diegese – primeiro, sobretudo com refugiados alemães, mais tarde com portugueses, numa aproximação crescente à realidade local. Desses cruzamentos no universo diegético resulta um olhar poliperspetívico, regra geral de orientação contrastiva, sobre os dois povos e os dois países. Todavia, como sublinha Fröhlich, I.L. não logra quebrar estereótipos, dando-nos uma imagem pouco diferenciada dos dois países e dos seus habitantes (Fröhlich, 1996: 629ss.). Assim, no que toca à Alemanha, sobressai uma imagem fundamentalmente disfórica que portugueses e refugiados partilham – anti-semitismo, belicismo – e apenas pontualmente entrecortada, p. ex., pela nostalgia de um ambiente bucólico perdido, por parte dos segundos, ou por referências ao prestígio do saber alemão, por parte dos primeiros. Mais diferenciada é a perspetivação da sociedade portuguesa, mas também aqui predomina uma representação disfórica, tornada ainda mais negativa pela constelação das figuras. É que à imagem da sociedade portuense, constituída essencialmente por figuras da classe média-baixa, I.L. contrapõe os refugiados, provenientes sobretudo da burguesia instruída, numa discrepância social que, detetável tanto a nível do explícito como das alusões, “contribu[i] para enaltecer uma espécie de cosmopolitismo iluminado dos estrangeiros, ao mesmo tempo que torna ainda mais evidente o provincianismo dos habitantes locais” (Marques, 2001: 160). É verdade que, ao longo do seu processo de integração, Berger também contacta com alguns intelectuais portuenses de esquerda, assim como vai reconhecendo certas virtudes dos portugueses (e.g., solicitude, costumes brandos). Todavia, de modo geral, o país é apresentado como atrasado, pobre de recursos e de mentalidades, inculto e tacanho – o que, de resto, acarretou algumas críticas negativas de vozes portuguesas.

Talvez a proximidade da escritora aos círculos oposicionistas portugueses tenha condicionado a parcialidade do seu enfoque, interessado nos estratos socioculturais mais baixos. É também possível que a condição de refugiada tenha contribuído para uma visão desencantada, pouco propícia a um verdadeiro encontro com o Outro. O certo é que, situada entre duas línguas e várias culturas, I.L. lida criadoramente com o facto de não pertencer a qualquer delas, produzindo uma história de diálogo cultural luso-alemão que, apesar de algumas fragilidades, desperta hoje o interesse redobrado da crítica literária, crescentemente atenta a questões de interculturalidade.

 

Passagens

Inglaterra, Alemanha, Portugal, Estados Unidos.

 

Citações

Mas se o mesmo turista se vê, de repente, forçado a permanecer nesse mundo estranho para ganhar o seu pão, o pitoresco torna-se-lhe ambiente quotidiano, os habitantes passam a ser os seus vizinhos, amigos e inimigos e o caso muda inteiramente de figura. O que lhe parecera insólito e exótico ergue-se qual muro espesso entre ele e tudo o que constitui a sua vida, e por muito tempo não passa dum homem à parte, um observador sempre prestes a comparar com este mundo o seu de outrora: um comparsa que, não chegando a pisar o palco, permanece nos bastidores. (Sob Céus Estranhos, 16)

Em casa dos Lindomonte tudo era mobilado e decorado à maneira dessa burguesia alemã que não se deixara impressionar pelas campanhas da «arte racional». Havia mobília pesada de carvalho, tapetes persas, cortinados de crepe florido, sofás de couro com múltiplas almofadas espalhadas, num desalinho propositado. (Sob Céus Estranhos, 39)

Os Sousas moravam na parte mais estreita da comprida Rua da Alegria, numa casa também estreita, com fachada de azulejos, na maioria partidos. No rés-do-chão ficava uma mercearia, em cuja montrazinha moscas gordas e glutonas se deliciavam com o queijo de tipo flamengo e com a marmelada em tigelas de barro. À porta impunham-se dois sacos de batatas, bacalhau fedorento e polvos secos. (Sob Céus Estranhos, 49)

 

Bibliografia Ativa Selecionada

Losa, Ilse (1992), Sob Céus Estranhos, Porto, Edições Afrontamento [1962].
—- (1991), Unter fremden Himmeln, trad. Ilse Losa, Freiburg, Beck & Glückler.

 

Bibliografia Crítica Selecionada

BECKER, Sabina (1995), “Zwischen Akkulturation und Entkulturation. Anmerkungen zu einem vernachlässigten Autorinnentypus: Jenny Aloni und Ilse Losa”, in Claus-Dieter Krohn et al. (Hrsg.), Exilforschung. Ein internationales Jahrbuch, Bd. 13, München, edition text+kritik: 114-136.
FRÖHLICH, Monica (1996), “Länderbilder in Ilse Losas Roman Unter fremden Himmeln”, Runa. Revista Portuguesa de Estudos Germanísticos, Coimbra, n.º 26: 629-636.
MARQUES, Ana Isabel (2001), Paisagens da Memória. Identidade e Alteridade na Escrita de Ilse Losa, Coimbra, MinervaCoimbra/Centro Interuniversitário de Estudos Germanísticos.
—- (2009), As Traduções de Ilse Losa no Período do Estado Novo: Mediação Cultural e Projecção Identitária, Dissertação de Doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
NUNES, Adriana (1999), Ilse Losa. Schriftstellerin zwischen zwei Welten, Berlin, ed. Tranvía, Verlag Walter Frey.

Maria Antónia Gaspar Teixeira