Costa, Horácio

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Costa, Horácio

(1954- )

De seu nome completo, José Horácio Almeida Nascimento Costa. Nasceu em 1954, no Brasil, na cidade de São Paulo. Poeta, tradutor, crítico, investigador, professor universitário. Formado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP), fez mestrado em Artes, na New York University, e é doutorado em Filosofia pela Yale University. A sua tese de doutoramento, sobre o período de formação de José Saramago (editada em Lisboa, em 1997 e, na cidade do México, em tradução castelhana, em 2004), é um dos muitos ensaios sobre a literatura portuguesa, brasileira e sul-americana, reunidos parcialmente em Mar Abierto, de 1998. Horácio Costa é também tradutor e divulgador de poetas de língua espanhola e inglesa, nomeadamente de José Gorostiza (2003), Octavio Paz (1988, 2008), Xavier Villaurrutia, Blanca Varela e Elizabeth Bishop. Como poeta é autor de 28 poemas 6 contos (edição do autor de 1981), Satori (1989), O Livro dos Fracta (1990), Quadragésimo (1999), ou Ciclópico Olho (2011), cruzando as fronteiras dos géneros poéticos, cultivando o poema longo, como em O Menino e o Travesseiro (1993 e 2003), ou a narrativa brevíssima, em The Very Short Stories (1991). Ganhou o Prémio Jabuti de Poesia, em 2014, com o livro de poemas Bernini, uma revisitação do barroco. A antologia poética organizada por Haroldo Campos em 2004 (Fracta) é um excelente exemplo da sua diversidade lírico-narrativa. Regressou ao Brasil depois de uma longa permanência no estrangeiro, primeiro nos Estados Unidos, depois no México, onde lecionou por muitos anos na Universidad Nacional Autónoma do México. Atualmente é professor de Literatura Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).

Muitos poemas de Horácio Costa falam precisamente desta vida exterior-interior dispersa: são fragmentos-memórias de viagens e misturam palavras em português, inglês, espanhol, japonês, árabe. Não é pois sem ironia que Horácio Costa utiliza a palavra “paisagem” para designar o espaço urbano, a cidade, Babel em construção, onde os marcos enterrados no terreno são frequentemente provisórios, delimitando imperfeitamente um espaço de gentes em passagem, vinda de muitos outros “países”, gente que fala outras línguas e percorrerá ainda caminhos distantes. No espaço abrangido pelo olhar, sujeito a um ponto de fuga, sobressai a recusa de um espaço demarcado: “Viajo/ prismas de vidro tua constante/ cidade que é viaduto para alguma coisa” (Costa, 2004: 14). Esta recusa de uma cidade-reduto/ cultura-confinada, pode ter até argumentos “biográficos” que derivam do hábito de alguém sentir tudo em toda a parte. É poeta, investigador, professor, tradutor, e nessas várias funções atravessou já, mais ou menos regularmente, muitas fronteiras: “esse dizer em outra língua é uma abertura a outras identidades, uma outra forma de perceber o mundo e transfigurá-lo por meio da linguagem” (Hatoum, 2004: 250). Mas não nos parece ser somente esta a função da sua glossofilia. Da multidão das línguas sai também um gosto apurado, de quem se assina o único mudo em Babel já num poema de 1977: “– Desenvolvi muito, ultimamente, minha capacidade/ auditiva, nesta Torre” (Costa, 2004: 18). Talvez o problema deste habitante de Babel “foi ter visto/ Tantas reproduções com tão pouca idade./ Paragens fabulosas que murcharam,/ Palácios e suas escadarias comidas/ Pelos anos. Parques, estatuárias congeladas./ Páginas e páginas. Acervos estanques./ Rostos de turistas apressados/ Que pouco acrescentaram à banalidade/ Essencial a todo espaço. Não é esta/ Minha geografia encantada./ (Costa, 2004: 25). Dirá como tradutor: “Eu prefiro que minhas traduções sejam sempre bilíngues. A experiência de leitura da poesia não é a da prosa ou a do ensaio, e nela a questão da língua joga um papel maior. Daí, o oferecer ao leitor essa experiência completa me parece o mais ético e prazeroso a fazer” (Costa, 2012: 215-6). Acrescentará como investigador, refletindo sobre o conceito de “neobarroco”, incentivado pelo crítico Haroldo de Campos, editor de Horácio Costa: O conceito quer corresponder a uma necessidade “morfológico-cultural” da arte contemporânea dos países da América Latina, formatados pela sobreposição ou mistura de raças, pelo cruzamento complexo de línguas e símbolos culturais: “Interessam-me o barroco e o neobarroco porque vejo aí uma origem muitas vezes escamoteada de nosso ser histórico atual, e que me atrai por razões temperamentais. Interessa-me o dizer complexo” (Costa, 2012: 218). A mesma complexidade que o levará a estudar revisitações pouco prováveis entre a literatura brasileira e a norte-americana, entre um “pós-modernista” como Saramago e um “modernista” como Pessoa (cf. Costa, 1989: 41-8). Ou entre o sexo masculino e o sexo feminino, questionando pontualmente a heterossexualidade, e sempre as fronteiras do desejo, v.g., do homoerotismo (cf. Costa, ed., 2010).

Severo Sardy viu, desde logo em Satori, um dos seus primeiros livros, um “Arcimboldi sintático, “cujos fragmentos – palavras – são sempre reconhecíveis e não obstante conseguem integrar uma careta figural” (Sarduy, 2004: 223). Irlemar Chiampi sublinharia, em O Livro dos Fracta, uma apropriação da metáfora dos fractais para reproduzir uma estética do fragmento, da fração, capaz de repetir ad nauseam, infinitamente, uma ordem do caos (Chiampi, 2004: 228). Com efeito, Horácio Costa inscreve-se, “sistematicamente”, numa estética avessa ao sistema dicotómico da oposição pertinente: não gosta de antíteses, quando muito busca os oximoros. Até os poetas-animais e os animais-poetas figuram num mesmo bestiário (Costa, 2014: passim). Em cada coisa, “estes cruzamentos de raças, ideias, dobraduras, nossos membros unidos, duas bússolas, todas as sensações imantadas” (Costa, 2004: 27). Acasos, viagens, leituras, educação, formação, sexo, nacionalidade, intenção, tudo parece contribuir para uma compreensão, e uma expressão, do híbrido. “O Centro está em toda a parte”: assim intitulará Horácio Costa a apresentação de A Palavra Poética, o livro que resultou do encontro de 17 escritores latino-americanos, “despidos de qualquer intento ou desiderato homogeneizador” (Costa, 1992: 25). Este parece ser um princípio estético e ético que podemos generalizar a toda a obra de Horácio Costa: explica grande parte das suas opções como poeta, investigador, professor, ou tradutor. Um pouco à semelhança de Derrida, já que ambos parecem sublinhar uma gramatologia “desconstrutivista”, estratégia ética, mais do que sistémica, contra um pensamento filosófico, reflexivo, que leva o ser pensante a fechar-se nos próprios conceitos. Em Satori pode ler-se o poema “Excrito na aula de Jacques Derrida”: nele, se cruza a voz do filósofo com uma cidade que “quase dorme depois/ da chuva”: “A alteridade é percebê-la/ em stillness, enquanto avança a noite/ e se corrompem as palavras”. A “Desconstrução” de Derrida, (remetendo para o conceito deDestruktion” de Heidegger) é, como a Babel de Horácio Costa, uma negação e uma afirmação, uma necessária e constante re-construção da “realidade” equivalente, no final, a um jogo: a interpretação de uma infinidade de pegadas, limitada à formulação de uma hipótese nunca plenamente verificável. Uma “Teoria de Tudo (T.D.T)”, em que “Nada-se-cria-nada-se-perde-tudo-respira-na-natureza. E isto é certo Qfwfq/ atiça o legionário, na máquina lacrada inventamos de novo: as palavras que/ o Verbo disse são duas, três, depois de todas criadas a soma será sempre nada” (Costa, 2004: 70). Necessário pois será falar de uma tensão tópica entre Espaço e Lugar: o ser que confunde o Espaço com o Lugar, limita o Espaço e confunde-o com as marcas que delimitam o seu Lugar… Ilude assim a necessidade de traduzir ou confrontar. Maria Luiza Berwanger da Silva referiu já a pertinência de estudar a presença de Derrida, no pensamento de Horácio Costa, até por ele reafirmar “o eixo intertextualidade/tradução/representações do Outro” (Silva, 2007: 50). Não será também de negligenciar a sua importância para os estudos comparatistas numa época em que o conceito de Literatura-Mundo repõe a questão linguística (v.g., Damrosch, 2011)? O próprio Horácio Costa se teria afastado cada vez mais de um comparatismo de pendor ainda nacionalista ou pseudo-cosmopolita, ainda que ele tivesse sido útil, numa determinada fase, para fundamentar um alargamento do lugar: “Creo que ya pasamos la fase de escribir précis de literaturas o lo que sea”. E continua Horácio Costa, valorizando agora a possibilidade de escrever “en mar abierto”: “Con el avance del comparatismo, hay una creciente y fecunda tendencia a diálogos sectoriales entre lenguas, autores, sectores, tendencias, etc. El pensamiento totalizador sufre recortes todos los días” (Daniel, [s.d.]: 69). Na obra de Horácio Costa, parecem-nos ainda pouco sublinhados os contributos para uma diferente conceção dos estudos comparatistas, já que Horácio Costa parece ver neles uma compreensão diferente da forma como representamos as nossas dicotomias, por palavras ou por imagens: “Sí, porque percibir es pensar” (Costa, 1990: 39). Como se estrutura a perceção das coisas na nossa mente? Haveria, segundo alguns, uma sequência “normal”, a do pensamento do caos para a ordem. Segundo outros, poder-se-ia opor a essa normalidade uma sequência inversa, isto é, da ordem para o caos. Num texto de Horácio Costa sobre a pintura de Shirley Chernitsky, a questão assim colocada reproduz ainda pré-conceitos, muito próximos daqueles que a tabela pitagórico-aristotélica enunciava. Uma percepção de raiz positiva: “[…] el relato comprehensible, jerárquicamente expuesto y que excluye detalles”? Ou uma percepção negativa: “[…] el relato desconstruído en el que todo pulula, en el que el menor aspecto es tan significante como el todo”? Horácio Costa tenta responder a estas perguntas: talvez cada um prefira – por razões ideológicas, genéticas ou biográficas – uma, ou outra, destas vertentes. Mas não seria rigoroso afirmar que as pessoas “normais” optam mais pela primeira, por oposição aos “artistas” que optariam pela segunda (cf. Costa, 1990: 39). Descartando precisamente o recurso ao imaginário e as discurso surreal, e preocupando-se com a re-presentação linguística dessa dicotomia, pergunta-se se “no existiria por ahí una tercera via, un camino menos normativo de conformación del pensamento, menos sujeto a este programa repetitivo, en el que un término lleva a su contrario circularmente y en cuyo âmbito la misma duda sobre la processividad “normal” no es menos repetitiva y circular?” (Costa, 1990: 43).

Com efeito, a questão não pode resumir-se ao pensamento poético, ainda que caiba aos artistas exemplificar a complexidade. Sob muitos aspetos e por muitas razões, o pensamento não pode abandonar um desejo de compreensão que impõe a ordem discursiva. Mas ele não deve confundir, sob a mesma designação de disposição, a fase retórica da elocução (expressão das ideias posteriormente organizada pelo trabalho do texto) com a fase retórica da invenção (a busca das ideias previamente ordenadas pela memória individual ou coletiva). Sujeitos que estamos a uma tópica dicotómica, é fundamental denunciá-la como projeção de um pensamento animal, pouco complexo. Se o discurso representa por antíteses o que a nossa perceção organizou por oposição, importa que a reflexão linguística – movida por interesses éticos, estéticos, ou retóricos – procure uma terceira via. Aquela que é construída com palavras peregrinas, estrangeiras, metafóricas, traduzidas, arrastadas. Aquela em que um caos suspenso procura a ordem ou em que a ordem encontra um caos suspenso. Ela é talvez a melhor forma de nos enamorarmos do Caos: “El caos en vilo es orden” (Costa, 1990: 39).

 

Passagens

Brasil, México, Portugal, EUA, etc…

 

Citações

um melro entrou no meu coração
sei lá o que é um melro
Melrose Park fica perto de Nova York
não me lembro de melros nas cantigas de amor & amigo
um melro cepandant
entrou no meu coração
que festa faz
o melro que eu não conheço
no meu coração! […]
(Costa, 2016: 34)

O chofer do táxi ouve uma rádio que eu nos n
Anos de México não sabia sequer que existia
Jazz FM
Tem a tez indígena e fala de sua mulher e da época
Dourada do cine mexicano e, bem, do
Jazz
Menciono que quando cheguei ao México
Em mil novecentos e oitenta e três queria ouvir
Jazz
O presidente López portillo tinha quebrado o país
Mas em San Ángel um certo senhor Calatayud tocava
Jazz
Era um clube chamado El Nueva Orleans
Que maravilha pensei eu vou poder ouvir
Jazz
Nos fins das noites ele tocava bossa nova
Para brasileiro nenhum botar defeito quando ouvia
Jazz […]
(Costa, 2016: 37)

Declaração post-mortem do único mudo em Babel
– Desenvolvi muito, ultimamente, minha capacidade
auditiva, nesta Torre.
(Costa, 2004: 18)

Micropaisagens, não micropolíticas,
I will never forget. Espremiam-se
entre o asfalto, que insistes em chamar
“macadame”, e o granito dos paralelepípedos
que delimitam a calçada pela qual
passeamos nossas penas.
Murchezitas, amarillinas, dois pontos
de micro-crisântemos, ikebanas ready-made,
que não necessitam nenhum mestre zen
para afiançarem-se. Les fiançailles
du hazard et du jazz: à sombra milimétrica,
Satchmos produzem melopeias guturais,
consomem-se dinastias, Tebas são constantemente
construídas e derrocadas.
Elfos esturricados, nós, em busca
de significados e ilhas e vales dos mortos. […]
(Costa (2004: 194)

 

Bibliografia ativa selecionada

COSTA, Horácio (1981). 28 Poemas 6 Contos, São Paulo, ed. autor.
—– (1987). The Very Short Stories, São Paulo, Iluminuras.
—– (1989). Satori, São Paulo, Iluminuras.
—– (1989). Sobre a Pós-modernidade em Portugal: Saramago revisita Pessoa, Colóquio/Letras. 109, Maio 1989, pp. 41-48
—– (1990). O Livro dos Fracta, São Paulo, Iluminuras.
—– (1992). A Palavra Poética na América Latina…, ed. H. Costa, São Paulo: Memorial
—– (1994). O Menino e o Travesseiro, São, Paulo, Geração.
—– (1997). José Saramago: o período formativo, Lisboa, Caminho.
—– (1999) Quadragésimo, São Paulo, Ateliê [1.º ed. México, 1996].
—– (2004). Fracta. Antologia Poética, sel. Haroldo de Campos, São Paulo: Perspectiva
…….(2010ª). Mar Aberto: ensaios de literatura brasileira, portuguesas e hispano-americana. São Paulo, Lumme Editor.
—– (2010b). Relatos do Brasil homossexual: fronteiras, subjetividades, desejos, org. H. Costa, São Paulo, EDUSP.
—– (2012). Entrevista [a Geylson Alves]. Cadernos de Tradução, n.º 29, p. 213-222, Florianópolis.
—– (2014). 11/12. Onze Duodécimos, São Paulo: Lumme Editor.
—– (2016). A Hora e a Vez de Candy Darling, Goiânia, Martelo.
TARACENA, Bertha/ COSTA, Horácio (1996). Relato Separado S. Chernitsky Separated Story, s.l.: Ed. La Giganta/ Museo José Luis Cuevas.

 

Bibliografia crítica selecionada

CASEY, Edward S. (1997). The Fate of Place. A Philosophical History. Berkeley/ Los Angeles/ London, University of California Press.
CHIAMPI, Irlemar (2004). O Poeta Reconstrói a Ciência com seus ‘Fracta’, in Fracta. Antologia Poética/ Horácio Costa, org. H. de Campos, São Paulo, Perspectiva, pp. 226-231.
DAMROSCH, David (2011). Hugo Meltzl and « The Principle of Polyglottism », in The Routledge Companion to World Literature, London/ New York: Routledge.
DANIEL, Cláudio (s.d.). Horácio Costa: El arte del viento em un proceso laberíntico (cuestionario). Tsé Tsé, Buenos Aires, n.º 14, pp. 63-75.
HATOUM, Milton (2004). Uma Geografia Sensível, in Fracta. Antologia Poética/ Horácio Costa, org. H. de Campos, São Paulo, Perspectiva, pp. 247-256.
MILÁN, Eduardo (2004). Situação dos Fracta, in Fracta. Antologia Poética/ Horácio Costa, org. H. de Campos, São Paulo, Perspectiva, pp. 224-225.
SARAMAGO, José (1994). Prefácio, in Fracta. Antologia Poética/ Horácio Costa, org. H. de Campos, São Paulo, Perspectiva, pp. 232-235.
SARAMAGO, José (1995). Cadernos de Lanzarote. Diário II, Lisboa, Caminho.
SARDUY, Severo (2004). Um Arcimboli Textual, in Fracta. Antologia Poética/ Horácio Costa, org. H. de Campos, São Paulo, Perspectiva, pp. 221-223.
SILVA, Maria Luiza Berwanger da (2007). Presença Italiana na Literatura Brasileira, TriceVersa Revista do Centro Ítalo-Luso-Brasileiro de Estudos Lingüísticos e Culturais, Assis, v.1, n.1, maio-out. 2007, pp. 45-60, disponível online: www.assis.unesp.br/cilbelc (acesso em 20/04/16).

Maria Luísa Malato